Foto de Todd Breese |
Em Novembro passado, a minha pele apresentava o tom do
deserto. Cristina elogiava o meu bronzeado “cor de canela”. Uma chilena que,
como eu, passava uns dias em San Pedro de Atacama. Aí fui desde La Paz, onde
Todd – um australiano que também fez a Estrada da Morte – acirrou o
desejo de tocar, cheirar e contemplar o deserto de Atacama. “Se queres ter um
vislumbre desse lugar inigualável tens de ir a San Pedro de Atacama”. Eu tinha
apenas a intenção de ir a Arica e regressar ao Peru. Mostrou-me as suas
fotografias: não hesitei – marquei duas noites no hostel Pachamama.
No seu ‘Livro’, J. Luís Peixoto afirma que “um pouco de vida
se gasta em cada sentimento”. Todavia, o que senti naquela cidade desértica foi
bem distinto. A experiência telúrica que vivi desde os primeiros instantes
gerou um sentimento de tal modo intenso, que me atrevo a afirmar que foi das
poucas vezes que me senti realmente viva: a VIVER.
‘Planeara’ ficar apenas duas noites na cidade do deserto –
fiquei um semana! –, por isso, logo no dia em que cheguei fui ao Vale da Lua
com um guia: o Orlando. As suas feições de índio espelhavam as suas raízes
incas. Amante da sua herança cultural, o jovem de olhos escuros e brilhantes
deixou escapar uma certa amargura ao referir-se à presença dos espanhóis, em
especial do Padre Gustavo Peige. As ruas baptizadas com o nome do missionário
explorador, assim como do museu da cidade eram, para Orlando, uma afronta face
às consequências da invasão espanhola. Talvez fosse esse um dos motores da
paixão com que vivia a sua missão. Estudava e procurava saber o mais possível sobre a geografia do deserto:
era seu desejo que aqueles que contratavam os seus serviços tivessem pelo menos
uma ideia da origem da beleza que o deserto de Atacama exibia de forma
escandalosa. Fazem-me sentido as palavras de Kenneth White em “A estrada azul”;
o viajante afirmava precisar sair da história para entrar na geografia.
Caminhar por entre as formações rochosas do Vale da Lua era
como sentir a ausência de gravidade do satélite da Terra. Aliás, Orlando era da
opinião que tinha sido ali que Armstrong teria aterrado em 1969. O ar seco e
quente aquecia o meu coração, ao mesmo tempo que as mãos roçavam nas rochas
cristalizadas de sal e em cada passo consciente pelos corredores labirínticos
das paredes que o tempo sedimentou.
Nesse fim de tarde que terminou contemplando o pôr-do-sol no
Vale da Morte confirmava, pelos sentidos mais abertos que nunca, o quão
infinitamente vasta é a Natureza e o quão pequena sou. Um grão de areia na
imensidão do deserto. Arrebatada, aspirava integrar a totalidade no planalto de
onde avistávamos os vulcões transformarem-se em sombras, à medida que os raios
de sol se tornavam cada vez mais rasos até desaparecerem na linha do horizonte.
Sentada no topo
de uma escarpa, as recordações de outros desertos assomavam. Como as dunas de
Merzouga do Sahara (onde estive em Agosto de 2009 com o Z.), cuja suavidade dourada
e macia contrastava com os rochedos pontiagudos de Atacama. Nos dois desertos o
silêncio era a sensorialização mais forte. O azul turquesa do céu rasgado pelo
rosa choque dos flamingos: outro elemento que me adentrou. O mesmo senti no
deserto de Guajira, em Junho deste
ano.
O espaço sem limites e o efeito da inclinação do sol, sobre
as inúmeras tonalidades das formações rochosas do Vale do Arco-Íris, ao segundo
dia em San Pedro de Atacama, fizeram-me duvidar da minha convicção em ser
ateia. Verde, cor de ferrugem e mesmo azul, as cores que se gravavam nas minhas
retinas... para sempre.
Ao terceiro dia em Atacama integrava um grupo para ir ao
famigerado Salar de Tara. Foi de joelhos a tremer que desci da carrinha que nos
transportou ao lugar da solidão, ao lugar sagrado do silêncio. As falésias e as
escarpas desenhadas pelos ventos despertavam-me do que me parecia ser um sonho.
A brisa seca e morna tocava o meu rosto como uma mão apaziguadora.
Sob os raios de sol mais luminosos que nunca, o meu olhar
não sabia onde poisar: se no verde resplandecente da vegetação rasteira do
oásis, se no rosa das asas dos flamingos, se nas águas brilhantes onde as aves
se deleitavam, se no azul ofuscante que transformava um instante numa vida
inteira: “Já posso morrer” – a minha voz interior que compreendia a perfeição
da Natureza divina.
Foto de Todd Breese |
As pernas oscilavam, o coração batia numa arritmia
assustadora, os olhos alagavam-se tentando conter um pranto de regozijo
extemporâneo (?). Sem que me apercebesse do movimento a concretizar-se,
observei-me então ajoelhada perante a beleza quase dolorosa, de tão intensa, do
Salar de Tara.
Reverência e rendição. Como não? Os meus sentidos captavam
uma paisagem surrealista, cuja espessura da atmosfera me era insuportável reter.
Não cabia em mim o êxtase que invadia o meu ser.
Nesse dia assombroso emergia a gratidão mais profunda de
viver. Crescia a confiança na existência, pela confirmação ratificada por cada
segundo, por cada inspiração. Senti-me invadida pelo estranho sentimento de
perdão. Ah... a vida inteira num instante incomparável. A convicção de estar no
lugar certo, à hora certa: nada a mudar, apenas e tanto a desfrutar... com
gratidão por SER!
Novembro, 2015
Matosinhos, Portugal
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