Na mesma manhã de Agosto que cheguei ao albergue 13 Cielos
em San Cristobal de las Casas, México, reencontrei Juanjo. Conheci o jovem
adulto de Barcelona dias antes em Oaxaca. Viajava há sete meses. Começou na
Argentina; terminaria o seu périplo daí a duas semanas em Cancun, de onde tinha
o voo de regresso a casa. Recebera um telefonema do pai dias antes: “já tens o
bilhete de volta!” Foi um soco no estômago, disse entredentes, ao mesmo tempo
que se ria de si próprio. O seu humor pareceu-me genuíno; de quem sabe rir de
si mesmo e de quem está confortável em ser como é. O seu desconforto devia-se à
incerteza do futuro em Barcelona. Apenas sabia que começaria uma pós-graduação
em Janeiro próximo. Juanjo gosta de viajar; nunca sabe como será o dia
seguinte. Todos os dias são diferentes. “Hoje estamos a caminho de San Juan
Chamula, amanhã quem sabe”.
Antes
de apanharmos o colectivo para essa vila, sobejamente conhecida e recomendada
em todos os livros e sítios virtuais de
viagem, detivemo-nos na catedral de San Cristobal. Não posso dizer muito dessa
catedral. Entrei em tantas ao longo de mais de cinco meses, que essa era mais
uma. Na verdade, são poucas as que tiveram o poder de se armazenar na minha
memória. Dessa, em San Cristobal de las Casas, recordo a fachada cor de tijolo
e o exterior. De um lado, a praça Zocalo e, do outro, um largo muito amplo,
onde quase sempre havia muita gente. Sobretudo indígenas – muitos Maias nessa
região do México – a vender o seu artesanato e outros bens menos tradicionais.
De facto, uma das imagens que mais me marcou no andador (rua pedonal) principal
da cidade foi a quantidade de crianças (muito novinhas desde os três anos,
talvez) a venderem pastilhas elásticas, rebuçados, chupa-chupas e tabaco. A minha
tristeza era resultado apenas da minha perspectiva? Aquelas crianças contribuíam
para o parco sustento de uma família numerosa – o argumento de Juanjo. Brincar
e estudar são verbos que não vi praticar.
É na região de Chiapas que está sediado o movimento Zapatista,
sendo esse departamento do México onde mais se luta pela integração dos
indígenas e pelos seus direitos. Inclusivamente, existe um albergue para
voluntários que queiram contribuir para o desenvolvimento dessas comunidades
locais. Alberto, o madrileno que conheci juntamente com Juanjo, aí se hospedou
durante dois meses. Professor de Ciências Naturais numa escola secundária em
Madrid, aproveitou as suas férias para fazer voluntariado em Chiapas, no
México.
Conheci
os dois espanhóis em Oaxaca, cidade onde fiz
uma excursão com o objectivo de ir às ruínas de Mitla – uma localidade de
origem Zapoteca. Reconheci o sotaque de Espanha nos dois rapazes – o pretexto
para entabular conversa. Esse dia em Oaxaca foi muito
bem passado. Além dos dois rapazes,
o grupo que se formou era constituído por Mónica, instrutora de yoga de
Monterrey; estava de férias no sul.
Nessa excursão
pelos arredores de Oaxaca, a primeira paragem foi em Santa Maria del Tule, a
fim de contemplar a Árbol del Tule: uma árvore com mais de dois mil anos, com
um tronco de 58 metros de circunferência. A maior que alguma vez vi. Aquela que
recordava como tendo o tronco mais largo era de Palermo, quando estive de
férias na Sicília em 2002, com as minhas queridas amigas S. e M.A. Ao contrário
do que aconteceu em Palermo, não havia gente a tentar abraçar a árvore. Estava
protegida das mãos humanas por uma cerca. Tentava adivinhar as figuras que o
tronco desenhava com o seu relevo. Caras de homens, deuses, corpos de
mulheres...
Em Mitla, o tempo que passámos na vila em ruínas
não foi muito. A chuva não estava para grandes explorações. Quando a chuva
amainou já estávamos no mercado que apoia as ruínas zapotecas. Paragem
obrigatória para degustar uma michelada.
Preferi observar, limitando-me a bebericar para provar o que adivinhava ser
demasiado estranho para mim. Michelada
é uma mistura de sumo de limão, gelo, molhos (bem) picantes e (muita) cerveja.
O copo é polvilhado por várias especiarias bem ‘chilli’. Digamos que não é bem
o meu estilo.
As degustações
não se ficaram por aqui. A excursão incluía a visita a uma fábrica de Mezcal – aí sim, bebi vários
cálices dessa bebida típica. Tantos quantos os sabores. Não os contabilizei. O
grupo ficava mais animado e a empatia crescia. A proximidade futura com os espanhóis
era promissora. Com Juanjo o reencontro foi quase imediato. No dia seguinte ele
apanharia o autocarro para San Cristobal – o mesmo que eu planeara para dois
dias depois. Combinámos reservar camas no mesmo albergue.
Quando chegámos
a Hierve el Agua – as cascatas que davam nome à excursão – já éramos todos
amigos na rede social mais conhecida. Ao descer as
escadas de acesso às pequenas lagoas que transbordavam as suas águas para a
escarpa, a emoção invadia-me e as lágrimas quase saltavam. A tonalidade dos diferentes verdes nas cascatas petrificadas
fez-me duvidar da sua autenticidade. Além da sua beleza inefável, a paisagem
que se avistava desse pequeno planalto enchia os olhos de qualquer um. Confirmava novamente o quão agraciada sou. Caminhámos pelo lugar contemplando as escarpas de branco
macio, com o seu relevo ondeado, revelando milénios de águas reinventadas. As fotografias de grupo eram obrigatórias e
uma forma de mantermos contacto.
Dois dias depois,
eu e Juanjo deambulávamos lentamente pelo andador de San Cristobal – tão
lentamente como o ‘slow cafe’
Carajillo que desfrutámos como deve ser. Observando modos ‘tradicionais’ de
confeccionar o bom café mexicano, esperando pacientemente que ficasse pronto,
para então degustar com prazer e tranquilamente o sabor único que enchia a boca
e que devagar, muito devagar descia. Em cada gole, uma palavra de êxtase e a
agradecer a sugestão de Alberto que tão bem conhecia aquelas paragens. Foi
também ele que sugeriu a visita imperdível a San Juan Chamula.
Para apanhar o
colectivo era preciso atravessar o mercado de San Cristobal, onde fui
posteriormente quase todos os dias para comprar fruta e vegetais frescos. Foi
necessário esperar alguns minutos para que a carrinha de nove lugares ficasse
mais composta. À chegada à vila, um grande outdoor:
“Bienvenidos a San Juan Chamula” patrocinado pela Coca-cola. Não valorizei a marca do refrigerante.
O colectivo
deixou-nos numa estrada perto da praça das duas igrejas – deu-me a impressão
que a vila quase se reduz à envolvência dessa praça. Interessava-nos a Igreja
católica, porém, antes de entrar era necessário obter o ‘permiso para visitar’
no departamento de Turismo Municipal. Pagámos vinte pesos pela autorização, na
qual se lia uma grande advertência: ‘Se prohíbe tomar fotos dentro de la
iglesia, en las procesiones de santos y con las autoridades tradicinales y
religiosos (...). La persona que infrinja esta disposición será sancionada”.
Ignoro o tipo de sanção, mas Juanjo escutou histórias de pessoas a quem tiraram
os telemóveis espertos e máquinas fotográficas. Não valia a pena arriscar;
havia que confiar na memória apreciando cada instante de forma total.
A manhã era
soalheira, como quase todas em San Cristobal de las Casas, onde a chuva me
visitava quase todas as tardes. Sob o
céu azul, a temperatura era muito agradável – cerca de vinte e cinco graus. O
que não demovia os locais de envergarem os trajes para as cerimónias e rituais
religiosos da manhã. Os homens vestidos de casacos de lã de ovelha branca e as
mulheres com saias de lã de ovelha negra. Um pormenor que fui reparando
enquanto na América Central: a quantidade de roupa que as mulheres indígenas
vestiam, independentemente da temperatura.
Na igreja
católica o calor era ainda mais vívido, exponenciado pelas milhares de velas
acesas e pela quantidade imensa de incenso a arder. Também os meus olhos ardiam,
mas devido à cortina de fumo. Ao mesmo tempo, sentia uma náusea fremente e em
crescendo com a visão de galinhas vivas prontas para serem sacrificadas em
plena igreja. Eram as mulheres que as seguravam, enquanto sentadas no chão,
aguardando ferverosamente a sua vez de colocar em prática o ritual em prol de
alguma criança recentemente nascida, ou recentemente perdida. Os homens, esses,
bebiam das garrafas que acompanhavam as velas em frente ao altar, onde jazia a
figura de um jesus na cruz. As garrafas de coca-cola lembraram-me o cartaz de
boas-vindas. Além dessas, também garrafas de sprite e fanta. Um
diferente tipo de arroto de acordo com a intenção do ritual. Não faltava
aguardente e, claro, muitos cânticos em torno dos diferentes santos.
Apesar de ser
uma igreja católica, as imagens que a habitavam diferiam na forma e
indumentária daquelas que são habituais nas igrejas portuguesas, por exemplo.
Mais santos negros e menos ornamentos. Apenas pequenos altares encostados às
paredes e um no centro da igreja rodeado por grelhas onde ardiam muitas e
muitas velas de todos os tamanhos. O chão rústico era uma camada de caruma nos espaços vagos de velas e garrafas
de refrigerantes. Também na entrada da igreja existia um grande tapete de
caruma.
Não fiquei para
ver o sacrifício das galinhas. A coabitação desses rituais com a religião
católica suscitou-me cogitações. A devoção era visível nas pessoas que ali
oravam pelos entes queridos, sem se deixarem afectar pela quantidade de
curiosos que ali se tinham deslocado para observar uma cerimónia, que a mim me
fez pensar sobre a mescla entre práticas mais ou menos pagãs e práticas mais ou
menos católicas, sobre a influência da cultura espanhola na cultura mexicana –
para usar um termo suave relativamente à chegada dos europeus ao grande
continente americano.
Novembro, 2015
Matosinhos, Portugal
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