Pela terra e pelo sol, a bordo de um condor. Tu és filho do
sol, meu pequeno aventureiro. As frases anteriores integram o genérico de
abertura d’As misteriosas cidades de ouro – uma série animada franco-japonesa
que, em 1985, fazia as minhas delícias e, provavelmente, das crianças púberes
da minha geração.
Fui
ao youtube – confesso – para alimentar a minha imaginação e recordar o motivo
porque no dia 23 de Novembro de 2014, dia em que pisava o miradouro do Colca
Canyon – no Peru – fui envolvida pela emoção da recordação de uma infância muito
alegre e animada.
Eram
oito da manhã do primeiro de três dias de trekking
pelo desfiladeiro mais profundo do mundo – garantia Nelson, o guia que
acompanhou o nosso grupo de cinco jovens. Entre eles, um casal de ingleses: a
Claire e o Kevin; vestiam a felicidade de seis meses de viagem (estavam apenas
a meio!). Abandonaram os empregos, esvaziaram o T1 alugado para caminharem
juntos e partilharem o seu presente líquido.
Foi
com duas raparigas mal calçadas que partilhei o quarto nas duas noites. Mal
calçadas para o trilho, note-se. Alguém sai de casa ou de um albergue (neste
caso) com sapatilhas de
passeio para realizar uma caminhada de três
dias pelo canyon mais profundo do
mundo, como iterava Nelson? Parece que sim! E, com efeito, a sua profundidade
de mais de 4000 metros confere-lhe uma superioridade em dobro relativamente ao Grand Canyon, o qual ainda, ainda!, não
tive oportunidade de visitar e calcorrear.
Eram
oito da manhã quando eu e mais de cem pessoas – seguramente – esperávamos
ansiosamente que algum condor saísse do seu esconderijo e nos agraciasse com o
seu voo. Seriam apenas cinquenta minutos de sorte ou azar. Para mim, nem uma
coisa nem outra. Estar na varanda do desfiladeiro mais profundo do mundo era um
instante perfeito e de grande contentamento.
Havia
algo mais que me fazia sentir cheia. A bexiga, ela própria. Deve ser pequena.
Não é raro colocar-me em situações deveras desconfortáveis. A casa-de-banho do
local também fazia um pleno
e a fila interminável desmotivou-me. Além
disso, o tempo era precioso: “e se enquanto eu estiver na posição de requitó passam de rajada os condores e
lá se vai a minha fantasia infantil?!” De forma que me aguentei e observei e
admirei e contemplei as escarpas altivas – tão altas que não vislumbrava o
fundo do vale. O que também era natural, já que os olhos estavam todos postos
no céu azul à espera das asas negras de algum condor menos envergonhado ou
menos orgulhoso. Isso de se ser tímido ou peneirento é uma capa com frequência
indecifrável, no caso dos seres humanos. O que é distinto é ser ou pelo menos
agir de forma disparatada. O que senti, quando escutei: “Nothing special...”
Uma blasfémia: o que os meus receptores auditivos captavam. Como era possível
ter-se aquela perspectiva? – a minha questão silenciosa, enquanto respirava
profundamente, quase tão profundamente quanto o maior desfiladeiro do mundo
nessa matéria, para não rosnar à vacuidade do adolescente. Enfim, talvez as
suas experiências anteriores lhe tenham proporcionado muito mais que a
cordilheira andina.
Quanto
a mim, deleitava-me com as encostas nuas e agrestes encimadas pelo céu azul,
cujas nuvens esparsas se deslocavam numa velocidade equivalente ao vento forte
que as soprava. Cheguei a desejar que o vento fizesse levantar voo o tal púbere
insano. É mentira. Não pensei mais nele.
Quando
me dirigia para a carrinha, um pouco desapontada – há, quase sempre, essa
sensação quando se vai a um local com um objectivo específico, mesmo que se
queira desviar das expectativas e aceitando a beleza do lugar como dádiva mais
do que suficiente. Dirigia-me então, ligeiramente – apenas ligeiramente –
desapontada, até que alguém gritou muito excitado: um condor um condor um
condor. E eu vi um condor um condor um condor.. Como é óbvio, nem tentei a
fotografia. Esses momentos, sabia-os tão excepcionais que não podia arriscar
perdê-los e assim ver um condor por um canudo, que é como quem diz ver através
de uma lente. E os meus olhos, esses sim, directamente não nos do condor, mas
nas suas asas que, de tão enormes e negras e abertas, me transportaram num
lapso interminável para a minha infância. A fotografia do condor,
consegui-a entretanto na vila próxima ao desfiladeiro. No centro da praça
existia uma estátua, não de um qualquer político, mas de um condor!
E
foi a voar no tempo que entrei na carrinha com os restantes elementos do grupo.
Era a primeira de quase setenta e duas horas e já me sentia tão cheia e
grata e agraciada.
Dezembro, 2015
Matosinhos, Portugal
Muito obrigada! É muito bom saber :) :)
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