Um
pianista desabrido. Um pneu furado. A vida às vezes prega partidas. É uma
brincalhona. O pianista de negro à frente do seu piano branco. As teclas quase
marteladas em delicadeza sentida. Um carro parado com a roda congelada. Uma
vida serpentina e às vezes enigmaticamente labiríntica.
As
notas sucedem-se sem pausas. Os dedos sempre atentos à leitura da pauta quase
desnecessária. O macaco fundamental para que o pneu seja trocado numa estrada
deserta, sob o céu em lusco-fusco. É quase noite. O rádio sempre a tocar. O
pianista não pára! Umas vezes mais veloz, umas vezes menos rápido. Sempre num
ritmo que se paira entre o estonteante e o agitado. O pneu tem de ser mudado. O
porta-bagagens tem um sobresselente. Antes disso é imperioso colocar o sinal de
perigo. Vá se lá saber se a vida está com mais ou menos humor, mais ou menos
negro.
O
jovem isolado numa via sem movimento é que não sabe se por ventura vem de lá,
sabe-se lá de onde, um qualquer condutor mais ou menos desvairado e emaranhado
em congeminações. Não é de arriscar. Antes de arregaçar as mangas para a
substituição, o rapaz em vestes negras enverga o colete em florescência para se
fazer notado, no caso de vir alguém distraidamente com pressa.
O
pianista continua o seu périplo musical acompanhando os pensamentos do jovem
atarefado em questionamentos de última hora. Mas não vale a pena gastar muito
tempo nesse trabalho intelectual. O manual é o requerido para o momento numa
via pouco iluminada e sem vida humana à vista. Os animais nocturnos estão já à
espreita. O condutor em azar pressente esse odor animalesco que o cerca com
tanta ou mais rapidez que as teclas no interior da viatura que não se aquietam.
É de propósito. A música a solo de um instrumento imponente proporciona a banda
sonora ideal a quem está só, numa estrada sem vivalma ladeada por pinhais cada
vez menos visíveis. O que se começa a perceber são uns olhos curiosos a
aproximarem-se da berma. Quem sabe a companhia perfeita de quem tem mesmo de se
apressar se não quer chegar ainda mais atrasado para o primeiro encontro, ainda
por cima em casa dela.
Dela
quem?
O
pneu está mesmo furado! “Bolas!”, o queixume silencioso de quem não tem a quem
se queixar e muito menos quem o ajude no meio do nada. As mãos sempre muito
tratadas, tal qual as de um pianista. Não as do que escuta no rádio num
concerto em Colónia. As suas, mil e umas vezes lavadas por dia. Perde a conta à
quantidade de água que as suas extremidades conhecem, a fim de não conhecerem
as impurezas que a vida providencia. Impurezas da vida. Desta vez é muito mais
que isso. Não só as mãos vão ficar que nem esterco oleado, como ainda serão
forçadas a um esforço que pensava improvável. Hoje, em particular. Afinal de
contas é o seu primeiro encontro. Ainda por cima, em casa dela!
Dela
quem?
O
melhor é não pensar nas travessuras da vida, neste caso do prego impecavelmente
posicionado para o crime perfeito. Um furo no pneu da frente no carro de alta
cilindrada. Acabadinho de comprar. Preto, lustroso, macio. Assim estavam as
suas mãos, aparte da coloração, apenas a roupa no mesmo estilo. Apenas o
exterior. O interior vinha em exultação estimulada pelas teclas imparáveis no
mesmo ritmo do coração em tumulto apaixonado. Apaixonado desde que preciso
momento? O jovem que se prepara psicologicamente para a mudança do pneu
transporta-se para esse primeiro ápice, quando os seus olhos se pararam nos
dela.
Dela
quem?
Não
há muito a preparar sob o ponto de vista psicológico. Apenas e só pegar no
macaco para elevar o carro. Parece fácil, lamentou-se uma vez uma amiga em
apuros que lhe telefonou desesperada porque não encontrava o material
necessário para essa empreitada. É fácil, a resposta peremptória. Hoje, nada
parece ser assim tão simples. Nada disto lhe apetecia – como é óbvio. Mas quem
é que quer chegar atrasado ao primeiro encontro, quando a cabeça está ocupada
com tudo menos com a racionalidade, quando o coração estava quase no seu ponto
de estrada... ah, ah, pensa o jovem recentemente apaixonado enquanto encaixa o
macaco no sítio certo do carro numa estrada pouco acertada. O carro... novinho
em folha. “Caramba, mas porquê?” As queixas à vida que o retém num caminho que
mais parece o cenário de um filme que podia ser de terror. O céu cada vez mais
escuro, sem a lua que está quase a ser nova e as estrelas... essas, pouco
visíveis. Vê melhor alguns olhos que quer confiar amigáveis. A vida não pode
ser assim tão arisca com ele. Já lhe bastou o susto provocado pelo estrondo
vindo do nada. Logo hoje! Hoje que tem o seu primeiro jantar a dois em casa
dela.
Dela
quem?
Por
ora, ela não é a principal ocupante dos devaneios. Desviou-se do sorriso aberto
e timidamente sedutor que o encantou. Não é o momento para se voltar a perder
nesse instante que se tornou decisivo. Decisivo é desapertar as porcas do pneu.
Porcas ficam as mãos e porca está a ser a vida. Porcaria de prego na porcaria
de estrada sem iluminação decente. Decência, decente... assim queria que a sua
figura se apresentasse ao tocar à porta dela.
Dela
quem?
Aquela
que aceitou o seu convite para um café depois de dias a fio em palavras
expressas pelo silêncio revelador de olhares continuamente à procura de serem
correspondidos. A correspondência sempre em sincronia por um sorriso tão vasto,
quanto tímido. Assim lhe parecia – ao jovem que agora não pode estar com essas
lamechices de apaixonado. Tem mesmo é de desaparafusar as porcas. E de novo se
concentra na tarefa.
Enquanto
se foca no pneu não se perde na estrada perdida sem almas perdidas para o
acompanharem nesta missão. Nem o brilho do carro em estreia lhe abrilhanta o
semblante. “Já está!”. Primeira parte concluída. O pneu furado no chão.
Coloca-o debaixo do automóvel, não vá o macaco macaquear e pregar-lhe uma
partida com tão ou pior gosto que a vida. Ai a vida... Uma brincalhona. Olha
para as mãos... porcas. O que vale é que apesar de novo, é um homem precavido e
os toalhetes de bebé estão no porta-luvas. Lembrou-se disso em boa-hora. Em
boa-hora é que não foi este prego aparecer nesta estrada de silêncio apenas
quebrado pelo pianista que continua a tocar sem descanso. Mais parece que sabe
a ansiedade em que se encontra um homem novo em plena preparação para um
primeiro encontro. Esta parte da preparação estava fora dos planos. Um furo no
pneu. Que interessa agora o que pensa o compositor americano... Encaixa o pneu
sobresselente. Aperta as porcas. As porcas, as mãos... espera que os toalhetes
sejam suficientemente poderosos para tocar a campainha sem vestígios deste
malfadado imprevisto. Logo hoje, a primeira vez que se verá a observar os
movimentos da mulher tão jovem quanto ele, na intimidade. Sempre lhe pareceram
graciosos no local para onde se tem deslocado todas as tardes. Em parte por
ela.
Ela
quem?
Calma,
está quase, as palavras interiores para calar o exterior. Esse olhos
incandescentes e anónimos de pretensos animais. Que quererão eles; talvez que
apenas matar a curiosidade, tal como a dos gatos – confia. Ou então estão ali
para lhe dar a luz necessária para mudar o pneu – confia. Talvez que a vida
seja somente brincalhona neste momento em que música acelera a cadência por
outras mãos agitadas que se fazem escutar pelo movimento frenético. Frenético,
assim está o moço aperaltado na fase final da sua inesperada tarefa e que lhe
suja veementemente as mãos. Essa parte do corpo que se afundará noutra que o
espera. As mãos dela... oh...
Ela
quem?
A
rapariga loira por quem se enamorou no lugar costumeiro das últimas semanas.
Tomou a decisão de sair de casa para estudar para o exame que lhe dará entrada
na ordem dos advogados. Escolheu um sítio que há muito conhecia... de nome. A
esplanada da praia do Aterro. O sol convidava. Porque não? Sempre é mais
agradável que a sua casa obscuramente resguardada dessa luz de Primavera
avançada. Pelos vistos ela pensou da mesma maneira, confidenciou quando
ultrapassadas as barreiras da timidez. Também aí se dirigia para se afastar não
da luz mas das dispersões provocadas pela vozes cansativas do mundo virtual.
O
pianista recebe agora os aplausos em Colónia. O pneu aparafusado entretanto. O
brilho disperso da sua companhia desconfiada permanece. Ainda bem... Ainda
necessário para arrumar o resto da tralha. A vida até que pode ser amiga. A
providência que a estrada não lhe proporciona. Na rodovia nem um carro, mais ou
menos novo para lhe dizer que o tempo prossegue. Só mesmo os seus movimentos em
terminação lhe transmitem os minutos incessantes. Nem olhou para o relógio.
Para quê? Isso não alteraria a probabilidade mais do que futuramente comprovada
de que chegaria atrasado a casa dela.
Dela
quem?
Aquela
que aceitou o convite para partilhar a mesa da esplanada. E ali ficaram horas
em sussurros. Como foi afinal? Ah, já se lembra. Nesse dia, não muito distante
do de hoje. Hoje – quando se transporta finalmente para a concretização de um
sonho sonhado três noites. O de estar apenas e somente com ela. Gostará ela de
Keith Jarrett? O seu músico preferido que tão estranhamente se junta ao seu
instrumento. Às vezes parece um tanto louco. O modo como se levanta para tocar,
remexe-se todo, mais parece que em transe. Que interessa isso agora? Os
toalhetes, isso. Ainda bem que os tem. Que pensará aquela que se juntou a ele
no primeiro dia... da sua vida. As duas tardes seguintes foram em constante
partilha de ideias, de toques também. Até que... quis convidá-la para jantar.
Não aceitou. Oh... numa reacção rapidamente ultrapassada. Ela estava a acabar
um curso de cozinha vegetariana e precisava de experimentar o que queria
apresentar na sua prova derradeira. Oh... com outra entoação – muito díspar. A
surpresa surpreendente. “Em tua casa?” a pergunta engolida em seco. “Claro que
sim...” Na casa dela.
Dela
quem?
Nem
sabia o que pensar. Essas coisas não se pensam, sentem-se, mas isso já se sabe.
E ali estava ele a limpar as mãos o melhor que podia, ao mesmo tempo que o seu
olhar estava agora pregado nos outros que o iluminavam. Não saíram dos seus
lugares noctívagos. Nem por isso menos resplandecentes e muito úteis.
“Obrigado”, escutou-se. Esses animais, que não chegou a ver para além da
fulgência, também ouviram e desapareceram tal como assomaram. Sem ruído. Sem
ruído continua a estrada que continuará então. Tudo pronto para continuar até à
morada escrita num papel ontem ao pôr-do-sol. Ontem... onde já vai esse dia.
Hoje. Hoje é o dia que vai a casa dela.
Dela
quem?
Essa
mulher jovem com quem passou as últimas tardes na esplanada. Eram só os dois
que ali estavam, na cápsula que os envolveu e em que mais nada existia. Amor à
primeira vista? “Isso não existe”, o seu amigo de infância. Claro que sim,
calou. É o que está a viver. Neste momento não tão intensamente... a estrada
tem de ser a única coisa a prender a sua atenção se não quer tardar ainda mais.
O pé carrega no acelerador. Testa então a pujança apregoada na alta cilindrada
que lhe aumenta os impostos. Que importa isso face ao aparato que tem
conseguido sempre que estaciona? Todos os olhos de cobiça em cima de si... Não
foi por isso que escolheu essa marca. O pai assim o presenteou: “Um bom
advogado tem que marcar presença desde o primeiro momento!” Sem muita convicção
anuiu, como em tudo na vida até à tarde em que conheceu a mulher que deseja
sua. Sua, mas quem é ela?
Ainda
não lhe sabe muitas histórias, mas as que o adentraram foram mais que
suficientes para se ter a certeza que é ela por quem sempre esperou. Como sabe?
Essas coisas não se lhes responde a razão. O seu coração sempre em arritmia
desde então lho assegura. Quem diria? Um quase advogado guiado pelo
sentimento... Que quererá isto dizer? Que importa isso agora! Tem mesmo é de
prestar atenção ao caminho, não vá a vida assustá-lo mais... uma vez...
Não
se terminou nesse devaneio. João Cabral acabou de embater ruidosa e
catastroficamente numa árvore antes invisível... para si. Conheceu, pouco, e da
pior maneira possível. O que não conheceu de todo foi a intimidade da casa de
Mariana... Aquela que esperou durante toda a noite pelo amor que também
acreditava ser o da sua vida.
O
carro em choque continua de rádio ligada a fazer ouvir as teclas sublimemente
tocadas. O pianista negramente vestido abrandou estranhamente o ritmo noutro
concerto, o que soa agora é o de Molde. Adivinharia o músico que seria a banda
sonora de um cenário triste de um amor estranhamente incompleto... nesta vida?