Cinzas às
cinzas! Assim amordaçou as suas infinitas especulações íntimas. Arquitectou um
grande amor que era tão falso como o cinzento que lhe preenchia as madrugadas
da cor da terra. Saiu-se da vida com uma alegria feroz que lhe estoirava a
alma. A sua liberdade suprema custou-lhe a felicidade – à qual questionava com
grande satisfação e vaidade de que era feita a sua substância misteriosa.
Cinzas às cinzas! Decidiu-se afundar em ruínas, aborrecido e fatigado, sem que
a loucura do absoluto lhe saciasse a sede do eterno. Alcançará o eterno quando
se recordar do passado espesso que o sufocou pela instabilidade asquerosa.
Sem que se
despedisse com saudades de nada nem de ninguém, Emília encontrou-o na luz negra
e ardente do quarto em negrume com o odor velho de uma morte há muito anunciada
sem que revelada. O tédio infinito do seu egoísmo feito de crueldade consolo-o.
Riu-se satisfeito da pequenez dos homens. Mas esse rosto em forma de escárnio,
não o viu Emília. O acto consumou-se sem aviso. A morte não se prepara... para
os outros. Os que assim escolhem a sua hora fazem-no no ruído abafado do
aborrecimento sem fim.
Nem uma
carta tinha Emília para lembrar o seu grande amor. Emília, aquela de aroma
quente e sensual que na sua cama de dossel – não a deste quarto de morte – lhe
gastava dias de vida numa noite de jacto em descargas nervosas. Isso ela não
sabia. Nem tão-pouco sonhava que a sua ilusão de grande amor era um amor há
muito vulgar, cuja materialidade se ia esbatendo, qual tarde de Outono que se
morre... devagar.
Oh Emília!
Tantas noites choradas em choro inquieto por não decifrares como apaziguar o
medo frio e a monotonia congelada de
quem se escrevia, trabalhando o dia todo. Só nesse labor o teu grande falso
amor tinha a impressão de que na vida ainda havia alguma coisa que valia a pena
fazer.
Emília,
querida Emília... Porque é que os homens não hão-de ser simplesmente homens?
Chora. Chora, chora muito para que não rasgues o desconsolo infinito das coisas
abandonadas. Esquece-te das misérias e não invernes polarmente. Por uma vez,
Não! Essa raiva surda que te engaiolou, qual amante sem desenganos, entrega-te
o orgulho desdenhoso. Buscaste tantas vezes naqueles olhos enfermos e agastados
o sentido de uma alma sem esperança. Jaz à tua frente sem saudade do futuro
onde podia ser realizado o teu sonho nunca concretizado da vaidade de um grande
amor.
E agora
Emília? Iludiu-te como os olhos pregados no vácuo. Bem-dita ilusão enquanto
crias nela! O nevoeiro caído em lama envolve-te e paralisa-te as asas. As tuas
ainda podem voar. Lá, muito longe na escuridade do ocaso, enterra as cinzas daquele
que se ardeu. A tua alma perde-se nessa metade que se rebelou. Tens ainda o
resto de ti, mesmo que ceifado pelo teu grande amor. Combate o (im)previsível.
Na tua cama de dossel há espaço para outros amores, mesmo que não sejam grandes
nem falsos.
Matou-se,
Emília! Tens vontade de continuar a chorar. Talvez assim – como os náufragos –
também te afogues mais depressa. Mas sabes, Emília? Podes decidir levantar-te e
encontrar o remédio para aquelas indiferenças bruscas e exageros afectivos.
Na enxurrada
de lágrimas que a afundam no seu rio, percebe então como aquele que escolheu a
não-vida se punha a dormir dolorosamente no seu regaço. A ilusão da
imortalidade de um amor que, como todas as farsas, tinha de morrer. E morreu!
Não o amor, mas o objecto da ilusão do seu grande amor.
Destroçada,
sai do quarto moribundo restolhando surdamente o seu respirar dorido. A rua. Na
rua sob o luar de cinco dias deslocados no tempo. De coração recortado e em
tumultuosa rebelião interior sepulta os seus sonhos, como sepultado será aquele
que sofreu geladamente nas sílabas do tempo e sempre, sempre num sorriso...
amargo.
Oh Emília, e
agora? As estrelas esvoaçam na languidez de quem morre a arfar, desta vez não
voluptuosamente, mas na recordação de um cadáver suicida. Pobre alma engaiolada
numa capoeira.
“Então este
amor não te dá felicidade?” Escuta-se na voz sumida àquele que o mundo perdeu.
Emília, Emília... sua excelência saiba que o homem é um animal triste, muito
triste... Não tentes compreender a nostalgia de um mundo sonhado e não
realizado. Já não precisas de representar esse papel para que não nasceste. O
teu tempo não é este. As horas estão cansadas de ser horas na tua noite
desossada.
A Emília...
vagueou toda a noite embalando a própria dor. Na escuridão muda tentava
enterrar um futuro adiado. Velha no seu tempo para os que se cruzavam em
estupidez insondável – uma solteirona –, flutuava em cada pé nas pedras.
Deambulando na noite dolorosa, Emília reagia. Reagia como uma tarde de
Setembro... lentamente. Nessa hora inimiga, infinitamente triste, tragicamente
triste, divinamente triste... as lágrimas em fio.
A noite
ficou naquele quarto na nudez intensa de uma morte não avisada. No dia que
começa a sentir nos ossos gelados, nas mãos geladas, os olhos de Emília, cansados,
doridos e muito velhos, estão ávidos de descanso.
Quando
estamos silenciosos é que falamos mais, dizemos mais coisas... No silêncio
nocturno quase dia, Emília cala-se. Para quem falar? Aquele que não se
preocupou com a dor que causaria partiu desiludido sem saudades. Aquele passado
há-de matar quantas esperanças lhe possam germinar. Tudo vão e em vão!
Por uma vez,
Não! Afinal o mal da vida é não saber vivê-la... ou não poder. Mas tu podes!
Por uma vez, podes!
“Posso...
cinzas às cinzas!”
Este texto tem o seu quê de conto, mas também o seu quê de excerto de uma peça dramática. Para além de bem escrito, conseguiu a autora reter nele o ambiente brumoso ("gris" - talvez a palavra mais repetida em Laranjeira, traduzida aqui - e bem - por "cinzento") em que parece ter vivido o poeta a vida toda e da qual nos dão conta os versos de "Comigo", mas também o seu diário íntimo. Mas não é só o ambiente que surge tão bem descrito, apesar da brevidade do texto. São também as palavras e expressões e ideias usadas, que revelam um conhecimento bastante aprofundado da obra laranjeiriana. Reconheci aqui muitas das suas frases e pensamentos.
ResponderEliminarTalvez o conto precisasse de uma intriga um pouco mais labiríntica, a condizer também com a vida e o pensamento do escritor de Espinho, mas, como se trata de uma primeira abordagem, parece-me muito bem conseguido e eloquente sobre o suicida. Pode este núcleo constituir o embrião de uma obra de maior fõlego. Parabéns, Ana Luísa. Anthero Monteiro
Muito obrigada pelo comentário. Especialmente por ser de alguém tão ilustre e conhecedor da obra de Manuel Laranjeira
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