Ai que saudades das marchas...*





O mês de Junho convoca, desde logo, as festas populares. Santo António, São João, São Pedro... as festas que instantaneamente surgem no imaginário. Das primeiras, poucas memórias se guardam em mim. São João, dá cá um balão para eu brincar. Os balões enchem os céus nocturnos de luz trepidante. Os martelos e o alho porro enchem as ruas da invicta. Não há quem escape ao cheiro agreste na ponta do nariz e muito menos sem levar com umas quantas marretadas. Tudo em festa com o pretexto dos santos. É disso mesmo que se trata, de santos padroeiros em festa. São Pedro é relevante para mim, sobretudo pela data – era o dia de aniversário da minha querida tia Lurdes.
Das noites de Santo António, apesar de ter vivido em Lisboa até aos doze anos, não tenho lembranças. Essa ausência em mim não me impede de resgatar as memórias alheias. Decidi, por isso, pedir ajuda. Afinal de contas, no largo de Santo António – em Nogueira – é costume festejar-se pela noite dentro.
Ao solicitar auxílio, confirmei o que suspeitava: as marchas não têm marchado nos últimos anos (se esta informação estiver incorrecta, por favor seja benevolente para comigo: a verdade é que tentei obter mais dados). Antes das marchas começarem a desfilar pelas ruas, porém, é fundamental evocar o que alguém lembrou: faziam-se fogueiras com rosmaninho.
O gira-discos do Piroteu era a banda sonora para as noites, nas quais os mais ariscos e afoitos saltavam as fogueiras sem descanso... quer dizer: de vez quando eram obrigados a descansar. As labaredas alcançavam os calções ou as saias de quem não parava e desafiava a física. De resto, como é sabido, esse é o tipo de incidente que não passa disso mesmo: um incidente que era tão-só mais um motivo para a risota despegada, que entretanto mantinha a alegria de quem se reunia para dançar e saltar.
            Quanto às marchas, dos testemunhos recolhidos, o sentimento que prevalece é o da saudade. Queremos as marchas de volta – o que depreendi de quem saudosamente atendeu ao meu repto: “ah... que saudades...”; “isso é que eram festas”; “temos de repetir”; etc... Outras expressões semelhantes a corroborar o mais relevante: as marchas de Santo António eram um momento muito alto na vida de Nogueira do Cravo. Não apenas a noite de 12 para 13 de Junho. Os preparativos para a festa, nas tardes e noites anteriores, eram em franco convívio, alegria e partilha. Preparativos que implicavam naturalmente a confecção dos trajes coloridos, o ensaio das coreografias e toda a decoração necessária para alegrar o largo e tudo ao seu redor. É natural, portanto, que quem tenha participado nas marchas sinta essa nostalgia expressa pela Sónia: “Naquele largo éramos todos uma família... que saudades...”
Convém ainda referir que as marchas de Nogueira não eram umas marchas quaisquer. Não só eram vividamente desfrutadas, cantadas, dançadas por quem participava ou assistia, como almejaram vários prémios. Em 2007, por exemplo, um honroso terceiro lugar em Oliveira do Hospital.  
As fotografias são muito coloridas e cheias de sorrisos cantados, sendo certo que os foguetes terão marcado os momentos mais fortes das noites repletas de versos cantados sobre namorados e namoradas. Já se sabe que o senhor santo António é um dos santos mais casamenteiros. Quem sabe se as marchas voltarem a dar vida ao largo de Santo António haja quem mais case, ou pelo menos quem mais se junte para conviver na aldeia do nosso coração.
Foi de coração aberto que me sopraram alguns versos de marchas de outros anos. São versos da D. Altina, que por acaso é a minha querida avó. Quem sabe seja um estímulo para arrepiar caminho. Afinal, ainda faltam algumas manhãs, tardes e noites até ao 12 de Junho.
Santo António é povo
A Bica é uma cidade,
Pelourinho barco d’ouro,
Onde embarca a mocidade.

Adeus ao largo das Almas
Caminho que vais para a fonte.
Por causa das raparigas,
Muito sapato se rompe.

Minha terra é Nogueira,
Não nego a freguesia
Onde eu fui baptizado
Naquela sagrada pia. 

 * Texto publicado no Jornal Chapinheiro

Miriam, a feiticeira eternamente jovem




O poder de Miriam: prever o futuro. Nasceu numa noite de Lua cheia. Noite de eclipse lunar horizontal. Nessa noite, não se sabe de que ano, a Lua e o Sol eram simultaneamente visíveis e a sua cor alaranjada refracta-se ainda nos cabelos vivamente ruivos de Miriam. Nas noites em que a Lua está totalmente ausente, a escuridão inibe qualquer um de se aproximar do castelo no topo do monte onde Miriam vive, aipotU, cujo nome é igualmente o da aldeia onde os habitantes vivem tranquilos: como não? O futuro é algo que não os ocupa por muito tempo.
De resto, quem quer saber como será o seu futuro mais ou menos próximo; quem quer preparar-se para um acontecimento mais ou menos importante; quem pretende precaver-se em relação a visitas mais ou menos agradáveis, mais ou menos indesejáveis; quem suspira de amores mais ou menos correspondidos; ou ainda quem necessita adivinhar se será ou não atacado por inimigos mais ou menos perigosos recorre a Miriam – a feiticeira até hoje incompreensível na sua perene juventude.
Miriam: um enigma para o comum dos mortais – não só não é comum, sendo igualmente pouco provável que seja mortal. De geração em geração vão-se contando histórias fantásticas, efabulando-se eternas teorias sobre a maga. Ninguém sabe ao certo quantas gerações terá atravessado. Os seus longos e encaracolados cabelos mantêm um brilho incandescente, e os seus olhos ora verdes, ora azuis, mas sem dúvida luzentes, deslumbram qualquer que ouse saber como agir num tempo para lá do agora.
É possível, especula-se, que nem a própria maga tenha noção do tempo da sua já muito longa vida terrena. Essa especulação deve-se à percepção de que nem sempre (ou quase nunca) Miriam se recorda da razão por que regressam as pessoas para agradecer, nem tão-pouco dos rostos repetidos. Assim, se pressagia sem qualquer margem de erro, quando aqueles que voltam com oferendas como forma de agradecimento, nunca sabem como agir. Miriam, a jovem maga, nunca se recorda dos visitantes. A sua memória esvai-se em cada adivinhação. Isso não lhe retira o poder, nem tão-pouco a confiança insofismável que lhe é atribuída.
Apesar da fé que lhe é depositada e até mesmo segurança que auxilia a manter na aldeia aipotU e em redor, as pessoas ficam sempre levemente deslumbradas, levemente assombradas com a pele lisa e sardenta de Miriam. A sua juventude não é compreensível, resultando frequentemente na apreensão expectável de quem não acede a uma explicação racional de tão longa existência. Quem já se aventurou a olhá-la de frente assevera que não terá mais de vinte anos. Não obstante, ao contrário de todos os que a visitam, a idade é provavelmente multiplicável por cem ou duzentos ou mesmo trezentos anos. No castelo onde vive, a decoração é ancestral e impossível de datar.
A curiosidade sobre os anos, décadas ou mesmo séculos da sua existência nunca terá, então, sido satisfeita. Além disso, as suas mãos são de uma pele tão perfeita e imaculada que se tornam mais um elemento inexplicável, aumentando o mistério que a rodeia. O seu corpo alto e magro concede-lhe uma autoridade que somente uma feiticeira consagrada detém. Como é possível, questiona-se. Ninguém conseguiu ainda descortinar como se conserva jovem, sábia e afinal um oráculo vivo – assim a designam os habitantes de aipotU.
O segredo está na Lua nova. Esse detalhe, porém, é esquivo às populações circundantes ao castelo. Tão-somente receiam as noites mais escuras. No fundo, como se pressentissem o evidente. A Lua nova é o instante em que Miriam se coloca em posição receptiva: as suas mãos abrem-se como barbatanas e um formigueiro inicia-se desde a ponta dos dedos até aos ombros, espalhando-se por todo o corpo. A sua graça é lunar. Aliás, sem que isso seja do conhecimento de qualquer habitante em torno do castelo, e provavelmente de todo o continente – a Lua perde o seu conteúdo para o enviar em formigal para Miriam.
E Miriam. Miriam tem nas sardas do rosto de feições perfeitas a lembrança constante da desmemória contínua. Isso é sabido; Miriam raramente se recorda de quem a visita duas vezes. Não é apenas essa lacuna no passado da maga. Na verdade, essa ausência justifica as outras ausências: a de vestígios de envelhecimento. Se não tem memória, como pode então o corpo envelhecer?
As sardas, retomando, são muito mais que sardas. São afinal a presença constante da Lua. O formigueiro que a percorre nas noites novas, mantém-se nessas pintas. Miriam sente o rosto em constante frémito. É um formigal lunar em si. É muito ténue. O movimento constante das suas sardas é tão discreto que nunca ninguém suspeitou. Miriam, todavia, não se esquece jamais dessa constante turbulência na sua face sempre jovem.
A sua capacidade inesgotável não é, porém, apreciada por todos e muito menos pelos habitantes da povoação vizinha. Na verdade, há muito que se espera um ofensiva de ipotsiD – a cidade que sempre teve como objectivo dominar toda a região aipoT. O único lugar que não está subjugado ao seu domínio é aipotU, talvez pela constante prevenção. Isso, no entanto, não abala a tranquilidade de aipotU. Os seus modos de vida concedem-lhe a autonomia necessária para viverem de forma confortável e simples. O rio que nasce no monte aipotU é uma fonte de vida, gerando riqueza suficiente aos habitantes.
Ora, a paz que se vive em aipotU é alvo de inveja por parte da população de aipotsiD, em particular pelo seu governante: Rimami – um homem despótico, cujo prazer se restringe em dominar todo o território de aipoT. Ao ponto de ter enviado várias vezes um espião a aipotU, a fim de obter informações que o auxiliem a finalmente investir com êxito sobre a aldeia. O espião pouco lhe valeu; a informação obtida é do conhecimento geral: a feiticeira Miriam.
Por conseguinte, Rimami mandou outro informante percorrer toda a região. O objectivo era averiguar se existiria alguém que pudesse anular a capacidade de prevenção de Miriam e assim assaltar o castelo sem que esta pudesse alguma vez prever. Os seus intentos foram finalmente alcançados e o tirânico Rimami reuniu-se com o bruxo Mairim. Traçaram de imediato um plano: preparar uma cilada à jovem feiticeira que a obrigue a sair do seu castelo. Rimami confia que o seu poder se circunscreva às muralhas que a envolvem e, consequentemente, a protegem.
O bruxo Mairim engendrou o plano malévolo: provocar um incêndio nas imediações do castelo. Claro que isso poderia ser previsto pela própria Miriam, no entanto, o desafio é o estímulo que incendeia a maldade do bruxo e este tem já uma ideia fulminante. O seu poder permite-lhe atear uma fogueira poderosa sem que tenha de se deslocar à aldeia e, portanto, sem ser visto ou previsto o seu procedimento malvado.
A bruxaria de Mairim está precisamente em conseguir transformar o seu corvo – o animal que o auxilia nas suas artimanhas malignas – num fósforo aceso, no momento em que alcance a janela da torre onde Miriam se recolhe. O intuito é então queimar até às cinzas a feiticeira. Quando Rimami escutou o bruxo, os seus olhos fundos e demoníacos brilharam com tal intensidade, que o seu rosto rugoso se transmudou num esgar que jamais se poderia comparar a um sorriso, tal a malignidade entrevista.
A noite prevista para o assalto era de Lua nova. Aquela em que Miriam descansa e restabelece os seus poderes adivinhatórios. As condições óptimas, por conseguinte, para os planos malvados: assim eles se fiaram. No entanto, quando o corvo saiu em vôo alucinado até à aldeia da paz, as nuvens tornaram-se inesperadamente cinzentas. Sem que ninguém contasse, o céu ficou carregado de uma camada espessa de água repentina e inexplicavelmente acumulada nas nuvens. A torrente de água rapidamente se tornou numa tempestade incomensurável, abortando todos os planos anteriormente preparados pelos velhos perversos.
Os muros densos de água alagaram todas as povoações da região. O palácio do tirano Rimami em aipotsiD ficou, inclusivamente submerso, e o governante apenas se salvou por um triz. O bruxo, esse, desistiu de tentar novamente. Confessou mais tarde ao seu mandante que, com efeito, nada mais podia fazer: era quase certo que houvesse algo mais para além da própria maga e, como tal, não tinha como aceder ao pedido.
Na aldeia de Miriam ninguém suspeitou do sucedido. O único vestígio do pretenso ataque foi uma chuva de vários dias, que até foi muito bem-vinda, dado o calor que se fazia sentia há já algumas semanas. A protecção que se fazia sentir não foi como tal posta em causa... até um dia.
Passados alguns meses, chegou ao castelo onde Miriam vivia, há tempo indeterminado, um forasteiro. Não seria caso estranho, se não suscitasse tanta ou mais curiosidade que a própria feiticeira. Curiosidade é, naturalmente, um termo redutor para se aplicar à personagem que lentamente percorreu as calçadas da aldeia onde o castelo morava. Em cada passo em frente, a leveza que conduzia o homem de capote negro tinha um efeito sonoro: as portas das casas iam-se encerrando. A altivez do corpo, que parecia deslizar sem tocar no chão, assustava tudo e todos. Adivinhava-se o seu destino, que só por entre as portadas semi-cerradas se confirmou pelos olhares escondidos e receosos dos aldeões.
Jonas (não o bruxo Mairim) alcançou as muralhas e entrou na torre de menagem. O que aconteceu depois ficou desconhecido aos habitantes, que de resto não calculam que meses antes se engendrara um assalto à sua pacatez. Só as pedras das paredes interiores podem informar do sucedido. Jonas tinha uma missão. Acabar com a eternidade de Miriam. Sem que o soubesse racionalmente, a feiticeira adivinhava que mais tarde ou mais cedo seria visitada por um certo mágico a mando de Rimami.
Era Jonas quem chegava. A Lua era nessa noite completa. Estava, pois, em aberto qual o desfecho que também as estrelas aguardavam expectantes. Na fase da Lua nova anterior, Miriam procedera como usual – era ritual que lhe estava gravado na pele e cuja memória não era de todo necessária. Agora que a Lua chegava ao seu pleno, Jonas ali estava para suspender uma vida com multi-vidas, tantas vidas que era impossível vislumbrar.
No olhar negro como o capote desse homem ainda mais alto que Miriam, a feiticeira antecipou o que há muito esperava: o seu fim. Era quase com satisfação que recebia aquele não tão estrangeiro na sua torre.
-       O que queres?
-       Sabes ao que venho?
-       Tu dir-me-ás.
-       Tu já sabes.
Palavras apenas imaginadas pelas paredes maciças. A mensagem era telepática e Jonas não precisou de mover os lábios grossos – tal qual as suas mãos debaixo das compridas mangas. Aproximou-se de Miriam. O que pareciam ser mãos rudes, eram afinal extremidades poderosas. Miriam recebeu-as no seu rosto. O toque foi enfim suave e provocou-lhe um choque equiparado ao que nos dias de hoje se designa de eléctrico. O contacto electrocutou as formigas – as sardas de Miriam apagaram-se num ápice.
No instante seguinte, Miriam jazia na sua cama. Os olhos fecharam-se. No instante seguinte àquele instante, Jonas juntava-se-lhe no leito. Guardava com carinho uma das mãos da ainda jovem. O sono da feiticeira prolongou-se pelas sete noites de Lua cheia.
No quarto minguante, Miriam despertou. Ao seu lado, Jonas. Descurando a presença masculina, a maga deu um pulo e abeirou-se do espelho. Quando viu o seu reflexo, Miriam lembrou-se de repente dos seus pais. Há quanto fora? Ah, sim... os olhos azuis, e verdes em simultâneo, continuavam brilhantes, mas...
Durante essas noites de Lua cheia, a aldeia de aipotU suspendeu-se no tempo. Uma fogueira na praça foi continuamente avivada e todas as noites, sem falhar, todos os habitantes, sem que algum falhasse, se juntavam numa espécie de reza colectiva em prol da sua protectora. Quando a Lua alcançou a sua fase crescente, os habitantes tinham a mesma informação aquando da chegada do forasteiro: nenhuma! Só não estavam às escuras pelas chamas incandescentes da fogueira.
Foi então que o inesperado aconteceu. Nessa noite, enquanto em mantras desconhecidos em redor da fogueira, a população de aipotU parou o murmúrio ininteligível: em passos muito lentos e muito velhos, aproximava-se uma figura feminina vinda do castelo. No momento em que o seu rosto pálido, rugoso, sob um cabeleira farta, mas sem cor, os alcançou, os aldeões entoaram um ah colectivo de surpresa. Era Miriam, não a jovem oráculo, mas uma velha muito velha, tão velha que só a conseguiram reconhecer pelos olhos cintilantes.
Durante essa noite ninguém arredou pé. Todos queriam saber o que se passara. Mais do que isso, receavam que dali em diante a sua confiança no futuro estivesse em causa. Miriam juntou-se à fogueira e contou a sua longa história... pelas sete noites seguintes. Quando finalmente a Lua atingiu novamente a sua fase plena, Miriam adormeceu... eternamente.


O Abraço!*





Escrevo esta crónica no dia seguinte à morte de Gabriel Garcia Márquez. Dada a sua relevância na literatura contemporânea, é-me impossível passar ao lado deste acontecimento. Há homens que no dia em que morrem, fica a certeza de que permanecerão para sempre entre nós. Este é seguramente o caso do escritor, um dos mais importantes da actualidade.
O legado de Gabriel Garcia Márquez ultrapassa em muito a sua obra publicada. Tão-somente as suas histórias ultrapassam as páginas que se lêem quase sempre em catadupa. Quem abriu um livro seu, só terá ficado descansado ao chegar à última página. São histórias de pessoas singulares, lugares únicos, tempos imemoriais, cuja realidade ficcional concede um espaço e tempo mágicos a quem as lê.
Ao ler a sua carta de despedida, lágrimas percorreram o meu rosto que se abria num sorriso. Não pela perda, mas por reconhecer que para poder escrever é fundamental viver... viver totalmente: sem medo. Sobretudo sem medo de expressar o que se sente e sem deixar de dizer o que é essencial. Ou seja, não assumir que as pessoas que são importantes para nós, saberão disso.
Assim sendo, no momento seguinte à redacção da última frase, disse a uma pessoa muito querida o quão gosto dela. Disse-lhe igualmente que tinha um abraço muito apertado para lhe dar e que não podia esperar pelo dia seguinte. Não saberia se ainda estaria viva. Não podia adiar. Fui.
Deixei este texto a meio... ainda tinha tempo para o terminar, pensei. Talvez ainda estivesse viva horas depois.
E estava. Estou. Mesmo reconhecendo que este registo é diferente dos dois anteriores, senti-me compelida a redigir o que sinto. E sinto-me muito mais cheia. O abraço foi retribuído amorosamente. Quando me encontrei com a pessoa em questão, ficámos alguns momentos em silêncio. Não nos víamos há seguramente três anos. Um pequeno mal entendido fizera com que uma amizade de vinte anos ficasse suspensa. Após o longo e forte abraço, percebemos que durante aquele tempo de ausência nos perdêramos em caminhos tão sinuosos quanto distantes. E assim não partilhámos as alegrias entretanto vividas.
Foi necessário que alguém partisse, quem sabe para outras vidas que não visíveis aos meus olhos, para me lembrar que esta vida é demasiado precária para não sermos e expressarmos quem somos; para não abraçarmos aqueles que estando ao nosso lado, por vezes parecem tão longe.
E depois o que fica? A memória do que se poderia ter sido sem que o tivéssemos sido, ora por vergonha, ora por uma zanga ridícula.
E valeu a pena? Valerá antes a pena tocar com carinho e cuidado os que nos são queridos, lembrando sempre que somos o que nos permitirmos ser com as pessoas que estão ao nosso lado. Por isso, se ainda estiver com os olhos nesta página observe em redor, olhe para dentro: o que faltou dizer, que abraço faltou dar? Feche então o jornal e vá. Não deixe para depois. A pessoa que esperou tanto pode não esperar mais. Vá e leve as palavras de Gabriel Garcia Márquez consigo:
“... não espere mais, faça hoje, já que se o amanhã nunca chegar, seguramente lamentará o dia em que não tomou tempo para um sorriso, um abraço, um beijo e que esteve muito ocupado para conceder-lhe um último desejo...”


*Texto publicado no Jornal o Chapinheiro

A janela do restaurante: uma imagem a dois tempos




A partir de "The restaurante window" de George Segal

De que matéria é feita o gesso?
De que substância são feitas as figuras de gesso?
O gesso: uma amálgama disforme, receptiva às mãos do artista. Antes de começar a esculpir o projecto desenhado no papel, o artista senta-se no banco de madeira. Esse banco em frente à varanda aberta para o mar. Aí detém o olhar sobre a espuma das ondas que tocam suavemente a areia. Também com suavidade pretende tocar na massa já pronta.
A janela do restaurante é larga, como longos são os dias da mulher do lado de dentro. Está sentada à mesa ainda vazia – tão vazia como as suas longas horas em espera. Aguarda companhia, mas no outro lado da mesa não existe qualquer cadeira para que alguém se sente. Nunca lhe colocaram outra cadeira, apesar de aí se deslocar todas as noites para jantar. O empregado está acostumado ao olhar da mulher – expectante e vazio. Não há necessidade de lhe lembrar que a cadeira ficaria, como sempre, desocupada.
O artista junta as palmas das mãos grossas elevando-as ao nível do queixo. Em posição de quem vagueia pelos meandros da imaginação; os dedos indicadores tocam os lábios, enquanto os olhos semicerrados perscrutam o movimento ondulatório e a sua marca gravada na areia, mesmo que por escassos segundos.
De pernas cruzadas sob o tampo amarelo, a mulher de feições tristes permanece com os braços sobre a mesa. As costas um pouco curvadas transparecem o peso dos anos, quiçá em solidão: o que o risco em oval descendente da boca selada sugere. O perfil está imóvel, com o olhar parado em frente. A janela ao seu lado direito não a convida, nem tão-pouco oferece um estímulo para que a cabeça faça qualquer movimento, mínimo que seja.
Após alguns minutos de contemplação da maré que vai lentamente subindo, o artista de bata que há muito deixou de ser branca levanta-se e arregaça as mangas. Sente-se pronto para receber a ordem da voz da maresia. Aguarda o chamamento que dará ímpeto às suas mãos calejadas.
Apesar de ser hora de jantar, a afluência ao restaurante está apagada. Apenas uma cliente. A que se vê da janela alta que expõe o interior da sala. Não há muito a observar. Uma mesa (pouco) habitada, uma pessoa a morar temporariamente à mesa. Uma parede branca desabitada. O possível observar pelo homem no exterior, se olhasse.
Como materializar o esboço em cima da mesa de trabalho? O artista quer solidificar uma ideia através da forma que o gesso irá ganhar. Depois de estudar minuciosamente o desenho no papel, chama os pais para a oficina. Precisa da sua pose a fim de confirmar o ainda projecto. Serão o molde para as figuras a encenar.
De mãos nos bolsos, o homem tão idoso como a mulher no outro lado da janela, congela os passos que eventualmente daria. Com uma perna à frente da outra, simula um caminhar absorto – a cabeça ligeiramente inclinada lança um olhar em frente que observa apenas os pensamentos.
Tranquilo e compenetrado, o artista envolve os pais com a matéria moldável. O pai, numa posição que se quer mostrar dinâmica – em pé como quem caminha. A mãe, sentada de pernas cruzadas com as mãos velhas sobre uma mesa. Os modelos em voluntariado compulsivo assistem, sentindo na superfície corporal o invólucro que lhes é aplicado de forma cuidada e atenta. Quanto tempo terão de se manter nesta posição? Questionam em silêncio para não romper a criatividade do filho.
Quererá o homem olhar através da janela? Adivinhará uma imagem semelhante à da noite anterior? Aquela de uma mulher tão ou mais só que ele próprio. Nem por isso entrou nas noites anteriores e nem por isso pretende alterar o seu comportamento, hoje. A solidão em que se revê no reflexo da janela impecavelmente transparente é mais segura do que o encontro com a desconhecida – também ela segura na sua mesmice. Uma verdade bruta de que ambos preferem desviar-se, essa a que os separa num tempo sem relógio. Entrar no restaurante seria quebrar uma realidade escolhida, ainda que sem vida.
O silêncio necessário para que o artista dê continuidade à sua obra é supremo e perfeitamente respeitado pelos pais, mesmo que não se identifiquem com o desenho no papel vegetal pousado sobre a mesa de trabalho. Observam, quietos. Não há nada a dizer. Estão acostumados a serem usados. Gostariam de estar noutra posição, aquela que os une enquanto progenitores. Todavia, o filho nem sequer olha para eles como tal: apenas objectos de expressão de uma voz que desconhecem.
O que resta das vidas já esquecidas. Sempre os mesmos lugares, sempre as mesmas pessoas, sempre os mesmos adereços. Tudo em branco. Assim se observa deste lado de uma instalação que se pretende admirada, compreendida. Quem ali está encenado, deve ser alguém que se projectara de algum modo, mas que resultou num espaço em branco: tal qual a parede nua.
O artista escuta atentamente o mar. De quando em vez o seu olhar desvia-se para a espuma e os seus ouvidos atentos guardam a sonoridade das ondas que levemente tocam na areia fina. Agradece calado à disponibilidade dos pais por serem o modelo do que felizmente nunca foram. Agradece calado aos pais por se manterem sem questionar a obra que espera ser contemplada. Haverá alguém que se queira esvaziar de si para o admirar?






A amiga louca sempre nas nuvens...



... um corte no pé XI 
Sou louca, dizem. Navego nas nuvens. Não é metafórico. Viajo de avião com frequência. Todavia, calculo que não seja essa a razão da alcunha preferida dos amigos. As nuvens são, com efeito, um lugar – chamo-lhe assim – deveras interessante. A sua textura húmida é-me familiar. O ano passado, por exemplo, estive sobre um mar branco esponjoso. Subi ao Toubkal. Pernoitei com a minha amiga Margarida em Imlil, a vila marroquina na base da montanha mais alta do Norte de África. Começáramos o nosso périplo por terras marroquinas em Casablanca duas semanas antes.
Uma das noites foi no deserto, em Merzouga. O camelo foi o nosso meio de transporte nas dunas até ao campo de expedição. As oscilações, quase até ao vómito no percurso, não nos impediram de gozar essoutro mar arenoso sob o céu estrelado. Descalças nas areias douradas pouco dormimos. Até porque a minha amiga estava receosa: não fosse um qualquer escorpião acordar-nos à força. Mitos ou não do deserto, a verdade é que depois do jogo de cartas nocturno com as holandesas que nos acompanhavam nessa aventura, pouco dormimos. Também, quem no seu perfeito juízo perderia uma noite no deserto do Sahara?
Improvisámos, então, uma cama ao relento para melhor desfrutar dessa experiência, talvez, única. Contámos estrelas cadentes – foram suficientes para enumerar os nossos desejos: alguns já se cumpriram. Duas horas depois das pestanas se terem unido, despregavam-se e sentimo-nos impelidas a subir a duna mais alta antes dos primeiros raios de sol – o palco perfeito para contemplar o amanhecer.
Marrocos é um daqueles países que se ama ou se detesta. Um jargão que escuto amiúde. Abstenho-me de tecer juízos de valores. Para mim, cada lugar tem os seus encantos. Na minha perspectiva, o fundamental é desfrutar e captar amorosamente cada momento que me é concedido. Por isso, ir a Marrocos e não passar por Imlil, seria quase como ir a Roma e não ver o Papa (outro jargão – já se sabe: nunca vi o Papa!). Nessa vila, ficámos muito bem instaladas e calcorreámos as ruas e vielas até ao anoitecer.
Deitámo-nos com as galinhas (como o namorado da minha amiga Margarida gosta) para nos levantarmos antes do seu cacarejar. A nossa intenção era contemplar o nascer do sol durante o percurso ascendente. Foi maravilhoso! O caminho rugoso e verdejante contrastava com a paisagem desértica que dominara a viagem nos dias anteriores.
Nessa ainda noite, as horas sobre passos lentos e conscientes iam cedendo lugar ao dia, à medida que progredíamos nas curvas de nível. O céu ia transmudando. O azul índigo rasgava-se por uma linha vermelha que, mais veloz que o desejável, passava a laranja tornando-se então dourada: o sol ia despontando. Aos primeiros instantes da aparição da esfera de fogo sentámo-nos. Valia a pena uma pausa para assistir ao espectáculo – mesmo que diário, não deixa de ser um espectáculo arrebatador. No ‘Canto dos Seres’, de Pedro Sinde, encontrei uma descrição maravilhosa que me sinto compelida a partilhar:
“Estamos a meio da noite, no momento mais profundo da escuridão; subitamente começamos a ver surgir no horizonte uma luz que se vai intensificando; aparece gradualmente um fogo mil vezes mais intenso do que o de qualquer uma das estrelas que vogam no céu. A luz dessa fogueira é tal que ilumina a terra inteira num resplendor doirado. Não seria um milagre espantoso? Não tremeríamos de emoção e admiração perante tal mistério: uma fogueira surgindo subitamente, inesperadamente, do mais profundo da noite? É, porém, isso que a cada dia se repete: o nascer do sol - uma fogueira que do mais profundo da noite nos vem iluminar a terra imensa. Assim saibamos nós ter olhos para ver e alma para contemplar”.
Eu e a minha amiga Margarida estávamos em sintonia. Nada é garantido, nem tão-pouco o nascer do sol, muito menos no Toubkal. A nossa já altitude permitia-nos igualmente estar acima das nuvens, acima dos homens: é consolador a gente sentir-se de quando em quando... acima dos homens – como diria Manuel Laranjeira.



Desde o Chile


... Um corte no pé X



            A viagem ao Chile. Calculo que tu, leitor ou leitora queiras saber um pouco mais. Afinal, pouca informação te terá dado a minha querida namorada Margarida, de quem com efeito sinto tremendas saudades. É natural. Sou português e o sentimento da saudade deve estar impregnado nos meus genes, assim como nos meus conterrâneos. E tu leitora ou leitor, costumas viver esse sentimento amiúde? Confesso que tento desviar-me da saudade: mostra-me o quão importante são os afectos, ao ponto de se tornarem mais do que isso e de se transformarem em autênticas algemas. Felizmente, no que à minha namorada concerne, a saudade mútua não nos impede de sermos e estarmos como ambos queremos.
O mesmo não posso dizer da minha figura maternal. Sim, já terás uma mínima ideia da minha idade; mas os meus vinte e nove anos não impedem que a minha mãe me continue a ver como o seu lindo e muito querido menino: “Ai, o meu Jorginho... será que se alimenta em condições? Será que tem onde dormir? Onde andará ele?” – guardaste, leitor ou leitora? Ainda não te tinha revelado o meu nome: Jorge. Dou-te mais alguma informação. Tenho 1,85 m – só para ficares com uma pequena imagem da minha longa e esguia (sim, esguia, mas não menos atlética) estatura.
            Aquelas e outras questões são muito vívidas e poderás perguntar, leitor ou leitora como se gerem. Não se gerem. Aceitam-se! Assim como aceito as minhas próprias questões, também essas no âmbito existencial. Terás até percebido, leitor ou leitora, que terão sido essas dúvidas que me terão conduzido até Santiago do Chile. O frio que sentia em Janeiro foi apenas um pretexto. Sentia-me um tanto esgotado do ram ram do meu emprego. Todos os dias entrava às nove da manhã no banco e todos os dias chegava a casa a hora incerta, depois de ter atendido uma série de rostos tão impessoais que não sou capaz de te traçar uma fisionomia com acerto.  
Bom, na realidade, é provável que tal também se deva ao facto de enquanto no balcão tentar uma outra realidade. Viste o filme ‘A Vida secreta de Walter Mitty’, leitor ou leitora? O meu caso era efectivamente muito semelhante, com a diferença de me observar, qual espectador confortavelmente instalado numa nuvem. Não é raro que esta atitude onírica me coloque em situações embaraçosas e chego mesmo a duvidar-me no estado em que me encontro. Tal como Lao Tsé questionou depois de sonhar ser uma borboleta: ao acordar viu que afinal era um homem. Nesse momento, não sabia se era um homem que sonhara ser borboleta ou se era uma borboleta que sonhava ser um homem. Às vezes eu não agarro o sonho; outras vezes não desperto... da realidade. Prefiro-me no sonho – e nas nuvens! Por isso, voei até ao Chile e daí para outros lugares – dar-te-ei pormenores a seu tempo.
Pergunto-me, então, quando observo em complacência a brancura macia sob os meus pés: estarei nas nuvens ou as nuvens estarão em mim? De que substância é feita a felicidade? De que substância é feita a liberdade? Calma, leitor ou leitora! Nem sempre divago sobre essas questões, pese embora tal me ocupe com certa frequência. De qualquer modo, é a planar nas nuvens que me sinto realmente bem. Diria mesmo que esse é um dos meus lugares preferidos: a paisagem é quase sempre singularmente extraordinária. Não é por isso estranho que aí me deseje o mais tempo possível.
Se pudesse manter-me-ia sempre nesse plano – a vista tende a ser muito mais abrangente. Consigo ter uma perspectiva global da realidade e não me retenho no que é normalmente acessório. Senti isso o ano passado na Madeira – onde fiz o baptismo de vôo de parapente. Como era a primeira vez, saltei acompanhado de um monitor. O vento nesse dia era brando, mas o suficiente para subir, subir bem alto. E do alto das nuvens, com o mar azul sob os meus pés, deslumbrei-me com a ilha das flores.
No parapente, qual sofá aéreo e sem chão, contemplei os socalcos de cultivo, as veredas e escarpas, as praias de cascalho e ao fundo o Vale do Curral das Freiras. “És doido, Jorge”, escutei quase de imediato. Ora, quem como eu já saltou de para-quedas, sabe perfeitamente que o vôo de parapente em tandem é para meninos. Foi o meu pai, outrora orgulhosamente para-quedista na tropa, que ofereceu o curso! Ficou todo satisfeito quando o seu Jorginho mostrou gosto em seguir as suas pisadas aéreas. Como dizia, saltar de para-quedas – sozinho! –dispara todas as endorfinas e mais algumas e nas várias fases.
A primeira aquando da passagem para a asa. No alto dos mil metros, sentado na borda da avioneta, a transferência para o vazio da asa é uma sensação indizível. Erguer-me para me transpor para a asa. E se o pé falhasse? Não falhou! Com as mãos apoiadas na barra da asa, o momento seguinte é elevar um dos joelhos até ao peito, contar até três e lançar-me para trás. O que é o mesmo que dizer, atirar-me para o espaço sideral. Cinco segundos contados e o para-quedas abre-se. E depois... depois é planar, planar... As mãos nos comandos guiando a velocidade da descida e a trajectória; mais para a direita, mais para a esquerda. O que não é propriamente o mais relevante. O fundamental é mesmo tentar desfrutar pelo maior período de tempo.
O último momento de tensão: a aterragem. A técnica de aproximação ao solo, a fim de evitar impactos bruscos nos joelhos e tentar uma abordagem suave do corpo ao relvado. Foi no último de quatro saltos: uma branca; falhou qualquer coisa. Esqueci-me totalmente dos procedimentos para a aterragem e embati de rabo no chão! A minha namorada Margarida observava-me estarrecida. Ficou em pânico: terei caído de cinco ou seis metros de altura. A fissura no cóccix diagnosticada pela radiografia ainda hoje me impede de estar mais de hora e meia sentado.
Deve ser uma das razões por que prefiro voar e planar ao invés de me sentar... no balcão do banco! Já não aguento mais os clientes. Muitos, como eu, sem dinheiro e sem saberem  como esticá-lo. Não saberão eles que o dinheiro não é como como as chicletes. Antes fosse, mascar e deitar fora. Mas não é bem assim. Na verdade, compreendo-os muito bem. Tivera eu uma árvore pejada de notas de cem euros e é quase certo que não mais me veriam sentado por mais de quinze minutos. A não ser que fosse com os pés debaixo de uma mesa rodeado de amigos com bom vinho maduro – tinto de preferência!






Dar sangue...






15 de Abril de 2014
Hoje fui dar sangue. Apesar dos níveis da hemoglobina estarem um pouco abaixo do ideal para a dádiva, a médica foi compassiva e autorizou. Lembrou-se de mim. No mês passado desloquei-me ao IPO para esse efeito, mas o sangue apresentava-se ainda mais débil. Dessa vez fiquei um tanto desapontada – não estava a contar com a rejeição. Não que seja de todo estranho; pelo contrário. Era até frequente. Mas em 2012, quando regressei da Índia, alterei definitivamente os meus hábitos alimentares. Retirei o animal da roda de alimentos e o sangue como se revigorou. Na época fiquei agradavelmente surpreendida. Seis meses depois de ter passado a alimentar-me de forma distinta, estava com os níveis da hemoglobina nunca vistos!
Quando regressei da Austrália em 2013, fiz uma tatuagem. Era necessário esperar pelo menos seis meses até nova dádiva. Não aguentei tal espera e duas semanas antes de findar o prazo, como estava no IPO para ver uma amiga, pensei ser o momento certo. E foi. Saí feliz do IPO. Dera um pouco de mim e sentia-me muito bem fisicamente.
Uma meia verdade à médica quando perguntou se fizera alguma tatuagem, piercing ou endoscopia (e afins) nos meses anteriores. Afinal, duas semanas não fariam diferença, pensei: era uma questão de protocolo.
Há uns tempos, em conversa num grupo de pessoas que se haviam reunido para uma meditação colectiva, mencionei que era dadora. A facilitadora do grupo disse algo que me fez pensar. Contesta totalmente as dádivas de sangue: na sua perspectiva, dar sangue tem implicações sob o ponto de vista energético. Isto é, ao dar o meu sangue este será distribuído sabe-se lá por quem, com a agravante de isso me provocar um qualquer desequilíbrio. A mesma pessoa era apologista da atitude dos crentes em Jeová: recusam liminarmente a transfusão de sangue. Mesmo quando a vida está em perigo. Desconheço a razão. O que sei é o do senso-comum – não aceitarão por entenderem que o sangue é proibido da alimentação e que a dádiva da vida é concedida apenas por deus. Ainda cheguei a pensar se seria por um motivo semelhante à da facilitadora: a de rejeitarem os fluídos de estranhos.
Nunca reflectira sobre o assunto até então. A tal pessoa reiterava veementemente a necessidade de nos resguardarmos e protegermos nessa dimensão; para si, muito mais que biológica. Como se depreende, as minhas cogitações não me conduziram à negação de me partilhar no pouco que sou. Na realidade, creio que todo a pessoa dadora de sangue se sentirá grata ao escutar: “sim senhora, está apta a dar sangue!” É com efeito um sentimento de gratidão que se difunde pelo meu ser.
A partilha também é isso. Pelo menos para mim. Dar sem esperar absolutamente nada em troca. A dádiva de sangue é provavelmente um dos exemplos mais ilustrativos do que me para mim significa a partilha. Não faço a mínima ideia de quem será a pessoa receptora de parte do sangue que me corria nas veias e artérias. E contudo... que paz sinto por terem aceite o que eu queria dar. Muito obrigada!

Abril em Nogueira*




Este ano a Páscoa acontece em Abril, o que torna este mês ainda mais cheio. Mais cheio de comemorações relevantes também para as gentes de Nogueira. Para além da celebração da ressurreição de Cristo, que exalta um novo nascer na aldeia serrana, as comemorações não menos relevantes da Revolução, às quais acrescem os dias dedicados à Imprensa (a 13), ao Livro (a 23) e à Dança (a 29).
Vivi muitas Páscoas em Nogueira. E prontamente uma torrente de memórias. Desde logo, as janelas coloridas de colchas ao passar da procissão. Os banhos eram no dia anterior, para Domingo de manhã não haver perdas de tempo, e assim nos juntarmos ao cortejo dos homens de opa. O meu avô Alfredo – que nasceu a 10 deste mês – estava sempre na frente. Outros transportavam os círios e outros elementos religiosos alusivos à data. Vestidos de branco com o azul nos ombros, o porte dos homens era ainda mais altivo. Os semblantes sérios, mas em regozijo pela honra de integrarem um momento de celebração. Os cantares começavam com o senhor prior à saída da Igreja. No meu tempo era o senhor padre Borges.
Quando chegavam ao largo da capela de Santo António, era a nossa vez de nos juntarmos à procissão. Seguíamos entoando os mesmos cantares: com ou sem boa voz. Mas isso não interessava nada. Depois da missa, era tempo de correr para casa e aguardar o compasso.
De porta em porta, o Zé Amaro desde cedo fez parte do grupo com ou sem a campainha que nos fazia bradar: “estão a chegar; já entraram em casa da Tia São, vamos lá”. Vamos lá, como íamos a todas as casas quantas podíamos. Afinal, em Nogueira existe um grau de parentesco entre quase todos, por mais ténue que seja: acabamos por encontrar um ramo que liga os coelhos aos pereira, os nunes aos nina...
Em cada casa cerimoniosamente preparada para receber a cruz, podíamos comer mais uma amêndoa. Assim pensávamos as crianças. Uma amêndoa ou um naco do bolo folar. O ovo no meio não retirava um dos sabores que o meu palato melhor recorda. Quando chegava a casa do meu padrinho, era tempo de receber o meu próprio folar. Durante muitos anos era uma nota de cinco contos: obrigada padrinho!
Em Abril... águas mil: mas desde que nasci, que este mês tem uma importância vital para os que sofreram com a guerra colonial e com os quarenta e oito anos precedentes. Tenho a mesma idade da revolução. Parte da sua razão de ser, transformou a vida dos meus pais e consequentemente a minha.
À pergunta em forma de piada, onde estavas no 25 de Abril, responderia com os meus pais: ainda em Luanda. Um ano depois e com um ano estava em Portugal. Não tenho, pois, qualquer memória vivida das ruas cheias de gente, acalentadas pelos militares cansados de ver os cadáveres dos seus companheiros a aportarem como tordos em Lisboa. Seguramente um dos maiores leitmotif para a revolução ela própria. Também não tenho qualquer memória dos cravos: as fotografias são os elementos que se juntam às histórias de um tempo anterior – o da ditadura, o da guerra colonial...
Qualquer tentativa para descrever esses dias revolucionários seria, com toda a certeza, assaz redutora. A única coisa que me ocorre registar é o facto de com o fim da ditadura ter advindo a esperança de liberdade. E esse é um ideal que prezo de tal modo, que a minha concepção de felicidade cabe toda na busca de assim viver. Sou filha, pois, não apenas dos meus pais, mas igualmente da descolonização e da liberdade que passa muito pelas escolhas que podemos agora fazer.
Calculo que os mais jovens desconheçam, como eu, o temor que se vivia antes de 1974. Bastava que se juntassem mais de duas pessoas na rua, e já a PIDE defraudava qualquer ensaio de conspiração: a sua leitura de pessoas em grupo. Em Nogueira isso não acontecia. Mas os que vinham de Coimbra, após meses de estudo, saberão o que quero dizer.
Hoje ainda valorizo mais este mês: comemora-se o dia do livro. O livro. Um bilhete para outros lugares, para muitas outras pessoas, para tantas histórias mais ou menos reais. A viagem vai acontecendo no desfolhar de cada página. Não tenho dúvida que o mundo se ampliou e vai crescendo por cada livro que me trespassa, que me adentra. Estou certa que muitos me são permitidos ler pela liberdade conquistada. 
Liberdade, livros... tanto em Abril. E tanto mais. Também é tempo de celebrar a imprensa: é esta que permite que este texto chegue a si, que lê o Chapinheiro. Não é um jornal qualquer. É o jornal das gentes de Nogueira: as que se permanecem física ou emocionalmente. A forma de nos ligar ao que importa: os afectos. E os da terra são muito, muito fortes. É por isso que Nogueira renasce em muitos momentos festivos, como na Páscoa.
Abril é também o mês para lembrar a dança; um mês primaveril – que melhor estação para celebrar dançando? Quem dança é mais feliz, diz o meu irmão, digo eu, dizem todos aqueles cujo corpo se mexe ao mais leve ritmo escutado – só porque sim. A Primavera: a minha estação preferida. Um mês que já consente muitas cores nos jardins, com as árvores muitos verdes, com folhas cada vez mais largas. Um mês da Primavera em crescendo nas cores, cheiros e sons: a estação dos amores, dizem. A temperatura começa a ser bem mais aprazível e o céu cada vez mais azul. Mesmo que o ditado nos diga que em Abril águas mil. 

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro