O meu nome é Prince




            A sério? Oh... No dia 11 de Janeiro, David Bowie também se despedia. De géneros completamente distintos, estes dois músicos fizeram e continuam a fazer parte da minha playlist.
            Cremosa, a voz de Prince, foi com uma chuva de púrpura que muitas vezes as lágrimas caíram e ainda ameaçam saltar cada vez que escuto, como neste momento, essa canção, que me toca para além do sentido da audição. A minha modesta homenagem a este cantor, cuja altura demonstra que os homens não se medem aos palmos. E Prince era e será sempre uma referência musical, disso não tenho dúvidas, para aqueles que, como eu, se deixavam abraçar simulando uma dança ao som das suas músicas mais lentas, como Purple Rain.
            Purple Rain, Purple Rain, Purple Rain – eu e a P, a pedirmos na primeira linha do público no seu primeiro concerto em Portugal, no grande estádio de Alvalade. Foi em 1993.
Esse era o segundo concerto em quinze dias, nesse mesmo estádio – uma verdadeira catedral, ah, ah. O primeiro foi a 1 de Agosto – Sting, o cantor que nos mereceu e merece igualmente grande admiração. Outro género. Gostos eclécticos, alguém criticava. E?
            Para o concerto de Sting não fomos preparadas. Ficámos nas bancadas. Tão longe! Tão longe e quando o britânico tirou a camisola eu e a P, histéricas, pedimos ao vizinho os binóculos: “por favor, só um bocadinho, para vermos melhor o six pack”. Não sei se era o caso, mas não há milagres e claro que rapidamente tivemos de devolver as lentes e cingirmo-nos a escutar. O que já de si era extraordinário. Em particular quando tocou e cantou ‘Fragile’.
            Este tema é, na realidade, o ponto de partida para a amizade que começou com uma animosidade palpável. Eu e a P conhecemo-nos meses antes de ficarmos na turma A do primeiro ano da faculdade. Como somos as duas Ana, ficámos no mesmo grupo aquando dos pré-requisitos para entrar na então FCDEF. Esses testes físicos que contavam 50% para a média de entrada, incluíam uma série de esquemas na Ginástica, entre os quais um esquema de corda no tapete. Ambas escolhemos a versão instrumental ‘Fragile’ para a corda.
            A cassete (sim, cassete) parou a meio da minha prestação – quero crer que não terá sido por qualquer ordem telepática daquela que se seguiria: a P, ela mesma, com ‘Fragile’, essa mesma.
            Esta aversão rapidamente foi substituída no início das aulas. A literatura, o cinema e a música sempre foram fontes de encontro entre as duas. Consequentemente, no final do primeiro ano da faculdade passei uma semana fantástica com P em Lisboa, onde então vivia. No final do segundo ano, convidou-me a passar duas semanas no ‘seu’ monte em Mértola. Antes de descermos para terras alentejanas e nos deliciarmos com os mergulhos na Mina de São Domingos, deixámo-nos enlevar frágil e docemente pela voz do inglês.
            Terminámos essas duas semanas em cheio na então grande catedral – o estádio de Alvalade. Ele há gostos para tudo, é sabido. E, tal como na religião, também no futebol não há discussão. No dia 15 de Agosto tínhamos aprendido a lição e foi com várias horas de antecedência que assentámos arraiais à porta do estádio.
            Quando os portões abriram corremos desvairadas. Objectivo: ficar o mais próximo possível do palco. Objectivo cumprido, não fôssemos nós de desporto: primeira linha do público. Entre nós e o palco apenas a distância de segurança marcada pelas grades. E ali ficámos outras tantas horas à espera. À espera que Prince descesse do seu helicóptero.
            Quem lá estava, certamente se recordará que foi muito bom ver e escutar Prince ao vivo e a cores. Quem lá estava, certamente se recordará que antes da actuação do cantor, levámos com mais de uma hora com a banda que o acompanhava à época: The new power generation.
            A hora que Prince esteve no palco inflamou e encantou com músicas como ‘Kiss’ e ‘When doves cry’ – as minhas preferidas. Com ou sem Sheena Easton, ‘1999’ e ‘U got the look’ juntam-se ao rol das minhas preferências. Tantas e tantas que continuam a tocar naqueles que gostam de Funk e Soul – há quem diga que Prince era o melhor, senão o Rei. Rei ou não, pertencia ao reino dos mortais e partiu hoje.
Não obstante, parece-me que Prince, como todos aqueles que nos são queridos, perduram em nós. A sua centelha flutuará e confio que alguma da sua luminosidade permaneça em mim. Afinal, o que sou hoje também resulta daqueles que passaram por mim e continuam a tocar-me, como é o caso da minha querida amiga P, a quem agradeço profundamente tudo o que temos partilhado ao longo destes 25 anos (!) e que certamente continuaremos a partilhar... Obrigada querida amiga.

21 de Abril, 2016
Matosinhos, Portugal

O amor está no ar...*



Fotografia de Álvaro Martino

Maio é o meu mês preferido. Por esta altura é habitual que a Primavera se sinta mesmo primaveril. Os dias estão cada vez maiores e a temperatura vai aumentando, mesmo que a sabedoria popular nos alerte que em Maio, cerejas ao borralho. E esse fruto, cuja cor rubra me suscita devaneios quase luxuriosos, é um dos meus favoritos. Por vezes, até evito comer a primeira cereja. É que atrás de uma, vem outra e mais outra e mais outra, e ainda mais outra. E os caroços vão-se acumulando, nem sempre ao borralho.
Nos montes e vales, nos parques e jardins, os malmequeres e as margaridas (as amarelas, as minhas flores predilectas) abrem as suas pétalas, ao mesmo tempo que o orvalho matinal se dissipa com os raios do Sol cada vez mais altos. Nos ramos das árvores mais verdes e frondosas, escutam-se trinados e cantorias flamejantes. O amor está no ar.
No ar, as andorinhas esvoaçam alegres, confirmando uma Primavera exuberante, que se patenteia nos namorados de fresco. Talvez inflamados pelo canto harmonioso da natureza, ou, quem sabe, atingidos pela seta do cupido.
Ao fazer as contas, comprovo que os meus pais também terão sido tocados pelo cupido. A minha data de nascimento assim mo assevera.
Mas a minha predilecção por este mês deriva, igualmente, do facto de ter sido agraciada pelo nascimento do meu mano. As nossas zaragatas na infância deixaram marcas indeléveis no corpo, que hoje são recordadas como fios de união – a admiração é mútua e não é raro que o digamos: há que o afirmar aberta e explicitamente. E se o leitor ou leitora me permite, aproveito este espaço que me é concedido (muito obrigada!) para dar os Parabéns ao Miguel. No dia 23 comemora mais uma Primavera.
Enlevada pelas cores, sons e odores primaveris, dou por mim nas planícies do Alentejo. De todas as vezes que estive em terras alentejanas, os dias que passei numa Primavera, em Maio, são os mais vívidos na minha memória.
As planícies e montes tapeados de amarelo, sob um céu azul resplandecente assomem, sem que tenha necessidade de recorrer às fotografias tiradas em Elvas, Estremoz e lugares afins.
Sem dúvida que Portugal, com as suas estações (ainda) bem demarcadas e perceptíveis, me oferece uma imensa beleza natural, que me envolve e rodeia, abraçando-me como quem beija. Basta, para isso, que os olhos se abram, os ouvidos escutem, o olfacto se desperte e a pele se desnude. Os sabores, esses, estão em casa.
De todos os restaurantes em que me sentei pelo mundo fora, não há nada, nem ninguém que iguale a comida da Lola: a minha mãe, pois claro! Quem já teve os pés debaixo da sua mesa, sabe que não estou a exagerar. De qualquer modo, no primeiro Domingo de Maio, fazemos sempre questão, eu e o meu mano, de a convidar para almoçar fora. Afinal, mãe é mãe. E a minha é, sem dúvida, a melhor do mundo!

*Este texto foi publicado no Jornal o Chapinheiro

Na cidade dos mortos - Tikal



Entrei na cidade dos mortos, lado a lado com Christine. O calor que nos envolvia na floresta tropical de Tikal confirmava-nos que ambas estávamos bem vivas e em boa forma para descobrir, na sombra irrecuperável, o possível da profundidade cultural de um povo tão inigualável, quanto misterioso.
Tikal é um dos complexos funerários mais importantes desta cultura, e de tal modo sofisticada, que me fez voar desde a Colômbia até à Guatemala. Ao fim de dois meses nesse país, que tanto me encheu, senti uma espécie de chamamento para o desconhecido mágico e mitológico do mundo Maia. Muito ficou, ainda, por conhecer em terras de Gabriel Garcia Marquez... Quem sabe surja uma nova oportunidade.
Foi em Villa de Leyva (Colômbia) que comprei a passagem aérea para a Guatemala com o objectivo de visitar Tikal. Para mim, era sem dúvida obrigatório que a visita a este parque, povoado de templos-pirâmide de pedra, de animais mais ou menos visíveis como os ‘monos’ e jaguares secretos, se realizasse com o devido acompanhamento. Como tal, em Flores contratei o serviço de uma agência, para assim ser integrada num grupo com guia. E que grupo... também o de Christine! Ao receber o seu sorriso sereno e cintilante, adivinhei que, independentemente, da qualidade do guia ou das informações e histórias, o dinheiro havia sido muito bem empregue.
A visita começou com o guia a descrever ao grupo a ressonância arquitectónica da cidade, através da explicação da maqueta na entrada. As visitas guiadas tendem a ser muito interessantes e elucidativas, em particular em lugares como este, cujas ruínas descontextualizadas pouco ou nada sugerem (falo por mim...). Não obstante, nem sempre são fáceis de seguir e de lhes prestar a atenção devida. Sobretudo pela companhia com que havia sido agraciada. Para além de Christine, estava uma alemã – a Miriam – que conhecera dias antes em Semuc Champey. Novos encontros, novos acasos... A empatia foi igualmente fácil com Bob, um israelita que me chamou a atenção pelo calçado. Trazia umas sapatilhas de trail (ainda não participei em nenhum, mas pelo tanto que tenho escutado pressinto que, mais dia menos dia, isso venha a acontecer). Com Bob, a conversa correu imediatamente para as corridas e para outros lugares (por acaso ou não, voltámos a encontrar-nos ainda nesse dia em Flores e dias mais tarde numa ilha do Belize – Caye Caulker!).
Antes disso, pela manhã, as conversas que se iam desenrolando enquanto caminhávamos pelo xibalba – o termo para designar o lugar dos mortos – não nos impediram de escutar as explicações do guia sobre a existência dos calendários Maias. Plural, fiquei então a saber. Os Maias desenvolveram quase tantos calendários, quantas as actividades que integravam o seu modo de vida. Um calendário solar para o ano ritual, um calendário do ciclo lunar, um para a contagem dos dias, entre outros. Nos códices estão descritas todas estas informações e muitas mais, como a relevância primordial das árvores.
A árvore do Mundo, ou a árvore cósmica. Foi numa dessas árvores que me encostei durante algum tempo. As minhas mãos sentiam a superfície acinzentada e levemente rugosa com o intuito de captar alguma magia – afinal a árvore era o eixo central daquele mundo fabuloso, impregnado de alegorias. Através das raízes da árvore cósmica, os Maias ligavam-se ao mundo dos mortos, ou inframundo. O tronco estabelecia a ligação com o mundo terreno. A união com o mundo celestial era possível com os ramos; de braços erguidos como quem reza – assim cantaria Florbela Espanca.
Mas as árvores eram ‘apenas’ uma das incontáveis e maravilhosas atracções de Tikal. Quando alcançámos a praça central e após mais explicações do guia, passeámos tranquila e atentamente pelo espaço milenar, onde facilmente se podia observar o quão avançada e complexa era a compreensão e vivência do cosmos, por parte desta civilização, que me atraía a cada instante pela sua sabedoria, ao mesmo tempo que me causava questionamentos devido a certas práticas. Nomeadamente, os sacrifícios de animais e mesmo de pessoas com o propósito de apaziguarem os deuses, entre os quais aqueles que lhes garantiam boas colheitas de milho – a base da sua alimentação.
Essas práticas de outros tempos não me impediam de reconhecer a complexidade do seu conhecimento da astronomia e matemática, a partir do qual construíram os templos-pirâmides de forma calculada e simbólica. As pirâmides, para além de representarem as montanhas – para si sagradas –, eram templos para os cultos e rituais inerentes à organização do seu quotidiano, repleto de celebrações e rituais. Estas construções, cuja inclinação pode chegar aos setenta graus, eram igualmente monumentos, nos quais se ‘alojavam’ criptas extraordinariamente trabalhadas, para os soberanos defuntos.
Foi numa dessas pirâmides da praça central, dedicada ao Sol, que eu e as duas alemãs tirámos uma fotografia para a posteridade. Ainda nesse dia partilhámos essa e outras fotografias, bem como histórias e experiências de viagens. Combinámos encontrar-nos na vila de Flores. Ao fim da tarde, após o merecido duche e descanso, na varanda de um bar guatemalteco saboreámos um ‘mojito’ – que Miriam fez questão de oferecer: muito obrigada! Por acaso, ou não, o israelita passava na rua; juntou-se a nós. E assim tivemos oportunidade de confirmar que estávamos ali não por mero acaso; sentíamos que aprendíamos uns com os outros. Na verdade, fiquei com a sensação que esse encontro não terminou. Estou certa que se tivermos algo mais a partilhar entre nós, a vida tratará de nos providenciar novas e adequadas circunstâncias. E assim é!


Abril, 2016
Matosinhos, Portugal

Nota: Como se deve calcular, não tirei apontamentos durante a visita (apesar de vontade não faltar). A visita ao museu dos Maias em Mérida, algumas semanas depois, estimulou ainda mais o meu interesse pela cultura Maia. Não obstante, é de referir que foi na biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos, que confirmei e recolhi informação para este texto.

De Lanquin a Tikal




Cheguei a Flores, Guatemala, desde Lanquin – a vila mais Maia onde estive até ao momento. Em Lanquin, os locais falavam todos quishé entre si. A única palavra que compreendi, numa das vezes em que fui comprar pão, foi ‘gringa’. A vendedora reportava-se a mim, enquanto eu esperava, mais ou menos pacientemente, observando-a a atender uma série de pessoas à minha frente. Até que a paciência se esgotou quando aquela palavra se insurgiu como um espirro sobre mim. “Desculpe, mas não sou ‘gringa’ e se não se importa também sou cliente e gostava que me atendesse” – escutei-me numa hostilidade irónica e com voz enfática, no espanhol mais elaborado que me era possível à época – já estava há dois meses e meio em modo hispânico, como tal, sentia confiança até para discutir. Claro que a minha pretensão em aprender a saber esperar ficava em causa. Não obstante, uma coisa é ser tolerante, outra é permitir que gozem na minha cara. Ainda muito a aprender, já se sabe...
Tendo em conta o lugar tão fora de circulação em que me encontrava – a viagem até Lanquin mostrara-me a lonjura de tudo e mais alguma coisa –, achei que o melhor era repetir o modo de deslocação desde Xela: em shuttle. As mais de vinte horas que os diversos chicken bus me ‘obrigariam’ a experimentar, contrastavam com as teóricas nove horas que este transporte privado me prometia. Na Guatemala, apesar do valor escandalosamente mais elevado, esta é a opção mais frequente entre os estrangeiros, nomeadamente Marco e Daniela. Um casal de italianos, que, tal como eu, tinham passado uma noite em Semuc Champey – um lugar que de tão belo, merece um postal por si mesmo.
Flores era então o nosso destino seguinte, de onde saem as visitas a Tikal – a maior das cidades Maias, na região de Petén. Isso implicava atravessar quase metade da Guatemala; daí que me tenha rendido ao shuttle. Às oito da manhã, as minhas coisas estavam na carrinha de nove lugares. Aproveitava a espera pelos demais passageiros para observar, divertida, a conversa animada entre o casal de italianos e um israelita, aquele que os trouxera de Semuc Champey nessa manhã. O israelita vivia na Guatemala; era o proprietário do alojamento onde os italianos haviam pernoitado, para desfrutar daquele outro paraíso de águas cristalinas.
A minha escolha foi outra. Regressara de Semuc Champey na manhã anterior à boleia, depois de mais de uma hora em pé a aguardar um ‘colectivo’ que nunca chegou a aparecer. Felizmente, uma família guatemalteca apercebeu-se da minha espera em vão. De pé, na sua carrinha de caixa aberta e recebendo o pó da estrada de terra batida durante mais de hora e meia, cheguei a Lanquin, onde, ao apear-me, os mais jovens da família fizeram questão de tirar fotografias com a estrangeira com pele da cor de argila - noutros tempos de canela; naquele dia era mesmo uma camada de pó, que um duche de água morna rapidamente resolveu.
No dia seguinte despedia-me da vila Maia, sorrindo com o à vontade com que Daniela conversava, em espanhol arranhado e mesclado de inglês, com o homem israelita. Reporto-me a este casal simpático e muito gentil, pois este foi o primeiro de diversos encontros que partilhámos. Viviam há um ano na Cidade do México. Marco, professor de inglês na capital mexicana. Daniela, em ano sabático para acompanhar o marido e aproveitar o tempo para aprender espanhol numa das universidades da cidade.
Entre nós, alternávamos entre o inglês e o espanhol. Quando, por acaso, nos encontrámos posteriormente em Caye Caulker, o inglês era o idioma preferido, até pelo local. Nessa ilha ficámos definitivamente ‘amigos’ através da rede social mais conhecida. Umas semanas depois, quando me abriram a porta de sua casa, tinham uma chave para me emprestar enquanto eu desejasse apreciar a cidade, que dizem ser uma das perigosas do mundo. Além da chave, Daniela preparara o segundo quarto da casa para meu conforto! Muito obrigada!
Antes desse novo abraço, a partir do qual a amizade se tornou mais quente e vivida que numa rede social, viajámos bem-dispostos desde Lanquin, contemplando a paisagem extraordinária que a estrada até Flores nos proporcionava.
Resgato algumas fotografias para avivar a memória. Faz parte do processo recordatório, é sabido. Apesar da fraca qualidade que o iPad concede – aproveito a ocasião para justificar a qualidade dúbia das fotografias que publiquei até ao momento; confio que me seja dado esse desconto –, os pêlos ralos, e às vezes loiros, dos braços reagiram reavivando a emoção sentida, durante as largas horas na carinha com pessoas de diversas partes do mundo.
Para além do casal de italianos e viver no México, destaco o casal de argentinos: a Valentina e o Marcelo. Bailarinos a viajarem há pelo menos um ano, pagando as suas despesas com as mandalas de arame do Marcelo e dos acessórios femininos de Valentina – a quem comprei um crachá de madeira com o desenho de um golfinho azul. Dois dias depois desapareceu... Confirmando-se a ideia de que mais é, com frequência, menos. Valeu pela ajuda ao casal. Estavam determinados a avançar nas suas andanças apenas e somente com o que obtinham da sua manufactura.
Foi com os dois argentinos que segui em busca de alojamento em Flores – o casal de italianos estava de férias, como tal o seu orçamento era substancialmente distinto do nosso. Encontrámos um sítio muito económico, que se revelou ainda mais acessível quando descobrimos que no terraço se podia dormir em palapas. Para mim, mais uma estreia no que a camas e dormidas diz respeito. Se tal poderia significar uma interrupção na continuidade do tempo ou do sono ele mesmo, revelou-se antes uma excelente opção. Com efeito, dormir num nível mais elevado sob um tecto de palha seca, não só me proporcionou uma vista sobre o lago, como ainda me salvou de uma noite sob o ar condicionado – um dos aparatos modernos que mais me afecta. Não é raro ficar com uma tosse que assusta aqueles que não me conhecem. Também não é raro que aqueles que o apreciam me façam sentir um animal raro. Enfim, nada a fazer. Quando o calor é de facto insuportável rendo-me à tecnologia; apesar das minhas eventuais ‘manias’ não me tenho como uma pessoa fundamentalista.
Depois de me instalar num dos terraços mais altos de Flores – a história quase se repetiu em alguns pormenores – contactei Christine. Também ela planeara visitar Tikal. Quem sabe estivesse a caminho de Flores. E, com efeito! Mas isso só soube depois de ter tudo ‘arranjado’. O dia seguinte na vila foi para me organizar, quer na decisão por uma visita guiada à maior cidade Maia, quer como prosseguir. Encontrei uma agência de viagens que ofereceu um pacote muito interessante: transporte e visita guiada a Tikal, mais viagem de autocarro para o Belize, dois dias depois.
Apesar do desencontro e das reservas efectuadas em separado foi com grande satisfação que avistei Christine na entrada do Parque Maia. Integrávamos o mesmo grupo para a visita a Tikal!
Não obstante ter aberto a sebenta com intenção de passear pela cidade misteriosa, a esferográfica deslizou por outras vias. Confio que na próxima investida ela me conduza às ruínas dos Maias. Até já...

Abril, 2016
Matosinhos, Portugal


Christine




            Christine. Nos seus olhos brilhavam esperanças esverdeadas. Do seu rosto suave emanava uma espécie de afago. Quem sabe fosse do tom de voz, no limiar do audível. Na esplanada do terraço do hostal em Xela: a melhor vista sobre a cidade, gabava o anúncio exterior. Conhecemo-nos durante uma das refeições. Fim de tarde, lanche ajantarado, o meu: um abacate com tomate, temperado com um fio de azeite e sal com sabor a alho. Encontrei na cozinha do albergue, disponível para aqueles que se serviam da cozinha. O meu caso, o de Christine, também. No seu prato algo semelhante ao meu. Estávamos as duas a iniciar a refeição e sozinhas. Por pouco tempo. Com natural naturalidade, uma de nós terá entabulado conversa. A redundância não é despicienda. É com naturalidade que aqueles que viajam aparentemente sozinhos se encontrem ou se dêem a encontrar. Tínhamo-nos encontrado, o que senti em relação a mais esta alemã.  
Christine estava de férias na Guatemala. Era professora numa instituição para pessoas com deficiência - pressinto que a sua vocação se tenha desenvolvido pelo facto do seu irmão viver com síndrome de Down. Também fiquei com a sensação que a sua opção de residir em Zurique fora uma maneira de se distanciar, o suficiente, da sua família. Das suas palavras, depreendi que esperavam demais dela. Contudo, é possível que a sua percepção fosse antes resultado de dilemas interiores. Quantas vezes dou por mim a julgar-me; com frequência percebo que era eu que me exigia algo que aos outros nem sequer passara pela cabeça. Não é raro, por isso, que sejamos nós próprios as pessoas mais críticas relativamente à nossa forma de ser e estar. De qualquer modo, aquela sua circunstância familiar provocou-me algumas cogitações sobre os laços mais ou menos lassos, mais ou menos fortes que nos (des)ligam aos que nos são mais próximos por via genealógica.
            Como eu, Christine passara uns dias em Antígua, a antiga capital da Guatemala. Não como eu, passou toda a primeira quinzena de Julho na cidade mais turística do país. Uma cidade muito limpa, com a maioria das casas em estilo colonial muito arranjadas e coloridas. Até o turista mais distraído reconheceria a influência da cultura (forma simpática de dizer imposição, invasão...) espanhola. As amplas e rasgadas varandas de madeira escura contrastando com cores garridas, como o amarelo torrado, o azul eléctrico ou cor-de-laranja eram alvo de fotografia e admiração por aqueles que passeavam nas ruas e ruelas em paralelo esbatido pelos cascos de cavalos de outrora.
            Uma das razões para que Antígua seja muito visitada, sobretudo por pessoas dos Estados Unidos, é a fama das suas escolas de espanhol. Local onde se aprende esse idioma da forma mais correcta em toda a América Central: um dos slogans, ao qual Christine não ficou indiferente. Aí se alojou numa família de acolhimento, enquanto frequentou uma das inúmeras escolas, sentindo-se comprometida em comunicar dia após dia em espanhol.
            Foi, pois, nessa língua envolvente que começámos a conversar, partilhando experiências e histórias que se foram transformando em confidências à medida que os dias se alongavam em nós. Estivemos as duas no hostal o tempo suficiente para conhecer a cidade e para irmos juntas num trekking ao vulcão Santa Maria. Um dos mais emblemáticos nos arredores de Xela. O plural, já que a Guatemala é um país cuja geografia se caracteriza pela existência dessas formações vulcânicas. Havia outros, mais altos, mas que implicavam mais dias e acampamento. Nem eu nem a alemã tínhamos a intenção de subir mais alto que os quase quatro mil metros que o vulcão de Santa Maria impunha. Desde logo pela preparação fisiológica que tal pressupunha. E, mesmo assim, a nossa escolha era já arriscada para Christine, como de facto se veio a confirmar. A alemã não estava habituada a tão longas caminhadas, nem tão-pouco à altitude.

            Eram cinco da manhã quando saímos do carro que nos transportou ao início do trekking. Connosco, mais um casal de belgas, esse sim, bem preparado física e fisiologicamente. Mantive sempre a tranquilidade suficiente para assegurar que Christine nos acompanhasse sem receio de não ser capaz. Caminhávamos devagar, a fim de permitir que os nossos corpos se adaptassem à crescente altitude. Apesar de 3700 metros não ser uma altitude muito elevada, para quem não estava acostumada como a professora, era já o suficiente para que algum mal-estar interviesse no seu modo ascendente. Ademais, o ritmo lento permitia que fruíssemos e apreciássemos a paisagem circundante.
            O dia flutuava sobre a montanha que íamos subindo, passo a passo, sentindo o ar que se ia tornando um pouco rarefeito. Lado a lado, quando o ‘sendero’ oferecia a largura para ambas. Eu atrás quando assim era necessário. Escutava os passos como em sonhos. Auscultava a respiração mais forte, como quem quer inspirar o mundo num arfar que se ia aprofundando. A bruma matinal ocultava o recorte das serras que os olhos ansiavam vislumbrar. A partir das oito horas o sol jorrava já sem pruridos ou filtros os seus raios de luz límpidos. Agradecemos.
            Eram nove e meia quando, no alto do vulcão e num fulgor de um instante, os sentidos se abriram ainda mais para captar a névoa quente que nos tocava a pele. Abaixo do topo outro vulcão. Santiaguito, mais pequeno mas em contínua actividade desde que se formou. De quando em vez uma erupção. Os jactos de vapor que Santiaguito lançava sobre nós lembravam os contornos de fantasmas, enquanto sentadas fazíamos o merecido descanso, ao mesmo tempo que compartilhávamos o lanche já necessário. Ali ficámos meia hora a contemplar a cidade, o vulcão e as serras. Não as de Almeida Garrett, mas as que o nosso coração guardou como um segredo.

Em segredo pareciam estar as pessoas que se haviam descolado desde a povoação até ao topo da montanha, para realizarem um ritual pagão com laivos cristãos mesclados com as práticas Maias. Pelo que o guia nos contou, era muito frequente que os nativos de Xela fossem até ao cume do Vulcão Santa Maria. Saíam de madrugada, a fim de alcançarem o topo antes do amanhecer. Realizavam o seu ritual de agradecimento à Mãe Terra pelos campos cultivados e respectivas colheitas. Desde o início do nosso percurso que reparámos em grupos de duas ou mais pessoas. O ritmo que imprimiam ao seu andamento não nos era indiferente, à medida que nos ultrapassavam numa leveza invejável. “Caramba, tão rápido e nós aqui quase a morrer...”

Os farrapos de felicidade que nos cobriam eram mais que suficientes para que aceitássemos as nossas limitações, desviando-nos das comparações que em nada contribuíam para desfrutar de um lugar, onde a magia se fazia sentir no ar frio e quente da manhã. A nossa fadiga era já invisível, estava lá atrás. Apenas assomou quando, na descida, os joelhos nos lembraram que a descer existem alguns inimigos para as articulações. Um discurso que, apesar de parecer hiperbólico, resulta antes da ressonância do trilho pejado de pedras e rochas, em relação às quais importava dar a devida atenção.
            A chuva que nos visitou a um terço do caminho de regresso foi um estímulo ao avanço mais rápido, sem com isso ignorar a necessidade de manter os olhos bem abertos e as mãos sempre alerta.
            As sombras de um azul molhado, no verde exuberante da vegetação, dissiparam o tremor das pernas e o sol, que entretanto regressou dardejando os seus raios quase escaldantes, contribuíram para uma serenidade líquida. Uma serenidade calada que só aqueles que se aventuram no desconhecido conhecem e agradecem no regresso a casa... Neste caso ao hostal em Xela.
            No dia seguinte, almoçámos juntas na esplanada com a melhor vista sobre a cidade. A despedida que sabíamos ser um até já. Christine seguiu para o Lago Atitlán, onde eu estivera anteriormente. Mas duas semanas depois, a vida quis que nos voltássemos a abraçar. Ainda na Guatemala, na cidade ancestral Tikal, fizemos a visita guiada num mesmo grupo...

Março, 2016
Matosinhos