A estrada da Morte - Parte I








O autocarro saiu de Copacabana (Bolívia) às duas da tarde (meia hora atrasado... nada de estranho) e estacionou em La Paz às cinco e um quarto. A Bolívia não fazia parte dos planos quando viajei para a América Latina em 2014. Não é que tivesse muitos planos, mas esse país não fazia parte da minha ‘lista’ de países imperdíveis.
Fui a Copacabana para conhecer o Lago Tititaca – o lago mais alto do mundo, a quase quatro mil metros de altitude. Estando no Peru, poderia tê-lo feito nesse país, mas a Hanaku, uma japonesa linda do meu grupo de trekking ao Machu Picchu (fica para outra ocasião), fez-me essa sugestão. Estou muito grata por tê-la escutado. Isso permitiu-me conhecer a Ilha do Sol, o berço da civilização Inca.
No dia seguinte a ter chegado a Copacabana, apanhei o barco das oito da manhã para a Ilha do Sol. Uma hora e meia depois contemplando as águas calmas e muito azuis, e conversando com o Paulo (um viajante brasileiro muito simpático que nos tirou uma selfie), desembarquei para um longo passeio. Pela primeira vez estive frente a frente com alpacas. Que animais tão fofos e com um ar tão amistoso e simultaneamente curioso. Não resisti a enviar fotografias ao muito querido Gonçalo.
Merendei num dos montes, debaixo de uma oliveira. A beleza do cenário extasiava-me, o silêncio abraçava-me. Apenas entrecortado pelo canto dos pássaros e o zumbido dos insectos. À sombra da oliveira, descansava da caminhada, enquanto admirava os papagaios de papel muito coloridos que pintavam o céu limpo, muito azul. De quando em vez, a orquestra tinha o acompanhamento do zurrar dos burros. A paz que sentia era extraordinária; depreendo que também se devesse à energia do local. Tudo estava bem. Um dia perfeito que terminou sentada à beira-lago, emocionada com o sol muito dourado a despedir-se até amanhã. Um quadro deslumbrante preenchido pelo aroma de maresia, avistando a cordilheira dos andes. O fogo no céu era apaziguado por uma tira de nuvens que contornava os cumes pintados de branco.
No dia seguinte decidi ir para La Paz; se estava na Bolívia era obrigatório ir à capital. As fotografias que vi há muitos anos da Estrada da Morte: o mote. Queria ver com os próprios olhos a estrada com mais acidentes contabilizados até à data. Tal acontecia pela estreiteza da estrada; uma largura exígua para dois veículos circularem em simultâneo. Resultado: carros a tombarem que nem tordos dos precipícios – o prato do dia. Foram necessárias muitas mortes para que finalmente a estrada fosse encerrada. Hoje em dia está aberta apenas para circulação de pessoas a pé e de bicicleta – o meu objectivo: descer essa estrada de bicla!
À janela do autocarro despedi-me em sorriso do Lago Tititaca. Estava cheia. Uma hora depois de sairmos houve uma paragem. Não foi bem uma paragem; saí do autocarro para atravessar o estreito de Tiquina de lancha. O resto da viagem foi em conversa com o vizinho do lado, o Bryan. Um americano em viagem sem termo certo...
Do terminal de autocarros de La Paz, dirigi-me a pé para o albergue Pirwa. Escolhi este albergue por ter uma referência. Foi num da mesma linha que fiquei em Cusco, no Peru. Em equipa que ganha não se mexe; além disso, a sua localização agradava-me. Muito próximo do terminal de autocarros, bem como do centro da cidade. Um pormenor deveras relevante para quem viaja de mochila às costas e para quem não quer desperdiçar recursos em táxis. Ainda mal terminara de fazer o check in no albergue e solicitava informações sobre a Estrada da morte!
Às seis e meia da tarde estava novamente na rua para um primeiro reconhecimento da cidade. O impacto foi instantâneo. Quase assombrada, não fosse ter alguns laivos pelos dez minutos desde o terminal até ao alojamento. O cheiro do trânsito intenso inundava as narinas e encharcava os ouvidos. As manchas de gente e a camada visível de poluição ofuscavam os olhos. Até que parei numas escadarias e o olhar elevou-se e o sorriso abriu-se amplamente. O lusco-fusco era já uma realidade e do alto das escadas avistava a cordilheira andina com um manto de neve a brilhar sob o sol dourado.
A três mil metros de altitude, as pernas pediam calma e sentei-me para apreciar os vários grupos de jovens que ocupavam os lanços de escadas. Cada grupo tinha o seu gravador com música hip hop a tocar. Dançavam e construíam coreografias de danças urbanas. Estava agradavelmente surpreendida pelo empenho e o à-vontade dos miúdos.
Prossegui o meu reconhecimento por entre a multidão, observando as lojas e restaurantes, cuja oferta para além de frango era frango; pollo desta e daquela maneira e outra qualquer que não vislumbrava. Como sentar-me num restaurante não era opção, o meu olhar detinha-se nas pessoas. E parou numa senhora linda.
No meio de tanta e tanta gente, reparei numa mulher com cerca de sessenta anos. A sua postura altiva transformava os seus cento e cinquenta centímetros em quase dois metros. A senhora cuidadosamente vestida e penteada, de lábios vermelhos recentemente retocados reparou que eu reparei nela. Escutei-me num impulso: “a senhora é muito bonita!” Sorriu instantaneamente. Agradeceu o elogio e fez logo perguntas. Continuámos juntas pela avenida principal abaixo. Ao perceber que viajava sozinha, perguntou se era casada; que não; que idade tinha: “pensei que tivesse para aí vinte anos!” Oh que gentil; agradecia a sua simpatia e o conselho que entretanto não se cansava de repetir: “é muito perigoso andar sozinha à noite, deve retornar ao hotel o quanto antes”. No final da avenida segui o seu conselho, depois de nos despedirmos bem-dispostas com os cumprimentos mútuos.
Antes de subir ao quarto fui à recepção: fiz a reserva para a Estrada da Morte! Ao chegar ao quarto conheci o Ron e o Todd. Foi com o primeiro que a empatia cresceu, o segundo grunhiu boa tarde sem levantar o olhar. O Ron, americano, apresentou-se como alpinista e a conversa rapidamente se desenvolveu. Sugeriu participar na visita guiada a pé pela ruas de La Paz no dia seguinte. Acontece duas vezes por dia e é grátis! Aceitei!
Na manhã seguinte, ao pequeno-almoço encontrei um rapaz que vira no albergue de Cusco. Conversámos. Ou melhor, ele falou, falou, falou. Um inglês com uma pronúncia tão cerrada que me observei em esforço para o compreender. Não era fácil. A sua voz nasalada e em tom monocórdico era difícil de acompanhar. Como um fio a desenrolar-se de um novelo e tocando num arame, arranhando o ar. Perguntei-lhe se queria acompanhar-nos na visita guiada. Que sim, porque não? À hora de saída estava no seu quarto deitado. Mudara de ideias. O Ron agradeceu; escutara a sua voz durante parte da manhã desde a sala de refeições, a vinte metros de distância da nossa camarata, e a sua pele lisa e morena estava cansada dos arranhões do inglês.
Quem iria ter connosco, disse o Ron enquanto descíamos a avenida até à praça da prisão de La Paz onde se iniciaria a visita, seria o nosso companheiro de quarto. O Todd, o australiano que dormia por baixo de mim. Era o meu vizinho no beliche que me calhou. Pouco mais de quarenta anos – o Ron tinha cinquenta; idades que me vão demonstrando que os sonhos de viajantes são intemporais. O meu “Ok” à sua presença foi sem muita convicção. Ouvira apenas uma espécie de grunhidos da parte do australiano até ao momento.
Enquanto me instalava no dia anterior o Todd não tirou os olhos do Ipad. Estava eu às voltas a perceber como me arranjaria com tão pouco espaço. Não sendo uma estreia alojar-me em albergues e dormitórios mistos, era a primeira vez que me calhava uma cama superior (só na altura), e o respectivo armário, com a mesma característica. O que significa que o espaço era ainda menor para me mover e arrumar as coisas.
Algum tempo depois da visita se ter iniciado e depois de escutarmos as histórias hilariantes da prisão de La Paz, apareceu o Todd. Juntava-se a nós muito satisfeito. O seu atraso devera-se à necessidade de comprar umas botas de montanha. Um requisito essencial para quem, como nós, gosta de caminhar nas montanhas. Pelos vistos, também o Todd apreciava esse tipo de cenário. À medida que a manhã se desenrolava pelas ruas e ruelas de La Paz, entre as quais a rua das bruxas, a minha opinião em relação ao Todd ia-se alterando. Em particular depois de dizer que no dia seguinte iria descer a Estrada da Morte de bicicleta. “Eu também!” – eu.
Diverti-me muito nessas horas pelas ruas de La Paz. A história da prisão de San Pedro é rocambolesca. Pelo que as duas guias jovens e de boné vermelho e muito simpáticas e bem-dispostas contaram, a prisão era um ponto turístico até há uns anos. Realizavam-se visitas organizadas ao estabelecimento prisional, que mais se assemelhava a uma vila vigiada entre muros. As pessoas aí encarceradas pelos seus maiores ou menores delitos têm de pagar renda. Ora, grande parte das famílias dessas pessoas é pobre, não tendo recursos para suportar duas rendas. Havia que resolver a situação. O presidiário vive com a sua família entre muros. Contava uma guia que as famílias organizavam o seu quotidiano de acordo com as suas necessidades. Assim sendo, a prisão de San Pedro transformou-se numa aldeia de mercadores. Os cafés com esplanadas, as mercearias, e todo o comércio necessário ali existe. A circulação de bens e dinheiro é evidente. Outros produtos circulam de forma mais velada, como o pó branco; o produto mais procurado dentro e fora de grades. Uma das razões que conduziram ao fim das visitas turísticas.
Ficámos igualmente a saber que quanto mais rica for a pessoa presa, mais conforto pode pagar. O dinheiro compra tudo, desde o espaço na cela, aos objectos e à mais avançada tecnologia. O quarto de algum ilustre criminoso teria uma televisão da última geração, só para dar um exemplo.
No mercado de La Paz conheci mil e uma variedades de batatas. Percebia então a potência energética das sopas que comera até ao momento, com vários tipos desses tubérculos – amarelos, vermelhos, cor-de-laranja, com dimensões muito diversas.
Foi na rua das bruxas que o Todd se juntou a nós, muito sorridente com os dentes mais brancos que alguma vez vi – “e são todos meus, nunca tive um dente careado”; revelou no dia seguinte enquanto tomávamos o pequeno-almoço. Nessa altura, a minha opinião sobre o australiano já se alterara sobremaneira.
Na rua da bruxaria, os escaparates eram surreais. Animais mortos e embalsamados pendurados por um fio à entrada das lojas. Pequenos altares com os objectos, imagens e poções mágicas, outros elementos comuns às lojas. Foi sentados no chão de um outro mercado que nos rimos com as histórias de rituais dos bolivianos para apaziguar os medos. Desse lugar avistávamos um dos edifícios mais famosos de La Paz, acerca da construção do qual as jovens guias se detiveram em pormenores escabrosos. 
Existe um bairro manhoso nas imediações do cemitério da cidade – uma visita obrigatória que não falhei: isso foi dois dias depois com o Todd. Naquele bairro ‘moram’ muitas pessoas que de pessoas humanas pouco lhes resta. A sua decadência é tal, que os operários do tal edifício, antes de erguerem a primeira pedra, ali foram para encontrar o seu sacrifício. Ofereceram bebidas e mais bebidas a um dos ‘habitantes’ do bairro até que entrasse em estado abaixo de ébrio. A intenção: surripiá-lo para o seu sacrifício. Como? Enterrando-o vivo debaixo das primeiras pedras e assim dotar a construção do edifício de bom augúrio. Se é verdade ou não, não sei. Costuma dizer-se que onde há fumo, há fogo. A incursão pela zona comercial anterior criou-me, pelo menos, a dúvida.
A visita guiada terminou num bar da zona mais in da cidade. Enquanto saboreávamos um licor, as guias discorriam sobre o relógio do palácio do parlamento com as horas ao contrário, bem como sobre as razões do país ter mudado de nome várias vezes, alterando-se consequentemente a constituição. Desse modo, o presidente pode continuar a ‘reinar’ o país sem óbices. O mesmo presidente que desenvolvia políticas de promoção da natalidade que para nós seriam consideradas criminosas.
Continua...

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