Num meio de um azul sereno, Goa e Pune.
Pela noite, pairando ao de leve em Mumbai. As cidades em que estive na Índia. Dias felizes, onde me rendi por duas vezes no mesmo
ano. Mas se me perguntam onde quero/tenho de ir, respondo: quero perder-me e
conhecer a Índia – um dos países desconhecidos que anseio visitar, um dos países
que sinto necessidade de explorar antes que esta vida se esfume. Como se
esfumam os dias. Como escorrem as semanas... os meses.
O
tempo é tão abstracto como nos sonhos, onde o
azul do mar se esbate até à cor sépia e a minha voz é inaudível, como se no
fundo daquele mar em sépia. A loucura dos segundos manifesta-se de forma concreta nos olhos
cada vez mais profundos do Gonçalo ou no corpito em crescimento do Rodrigo. Despertam-me.
Às vezes distraio-me, flanando de forma inconsciente e esquecendo-me que
respirar é uma função fisiológica garantida apenas na aparência. Como só na
aparência estive na Índia. Duas vezes no
mesmo ano: 2012.
Da
primeira vez, estive em Goa dez dias a fim de
leccionar no colégio D. Bosco. “Goa não é Índia!” – o que escutei quando,
exultante, manifestei regozijo por finalmente ir àquele país imenso – para
muitos um subcontinente – que exerce um fascínio sobre tanta gente do Ocidente
– eu incluída.
Em Fevereiro de
2012 aterrei no aeroporto de Goa com roupa de Inverno. Vivia-se no Porto um dos
Invernos mais frios que as minhas mãos alguma vez haviam experimentado.
Comichão e ardor constantes: as frieiras ‘atacavam’ as minhas belas e delicadas
mãos, transformando-as numa ferida só.
O Frade WF e a
directora do colégio esperavam-me com uma coroa de flores digna de reportagem.
O que veio a suceder – guardo o jornal em que a notícia foi publicada. De
camisola de lã e gola alta, casaco polar e botas de cano alto, a longa e
intrincada grinalda de rosas brancas e amarelas foi o toque refinado que
envolveu o meu corpo suado – estavam trinta e três graus às sete e meia da
manhã –, onde habitavam uns olhos mortiços de quem não é capaz de dormir no
avião. Nessa época ainda desconhecia alguns métodos milagrosos... Milagrosa era
a temperatura que em três tempos curou as minhas mãos, devolvendo-lhes a finura
de ‘pianista’. Só a finura...
Logo no segundo
dia em Goa, apresentei uma palestra perante os mais altos dignitários do
Desporto de Goa – pelo menos foi o que me disseram. Nova reportagem pelo jornal
local. Tenho uma capa de arquivo com todas as notícias que foram publicadas a
propósito da minha presença em Goa. Ainda fui entrevistada por um jornalista
bilingue, com direito a programa de televisão.
Há que esmiuçar
dois pormenores. O bilingue durante a entrevista foi só para ‘inglês ver’. A
única pessoa que conheci a falar português foi precisamente aquele jornalista
muito activo. Quanto ao segundo detalhe: se as linhas anteriores transparecem
presunção, auto-promoção, jactância e outras demonstrações de vaidade, isso
deve-se aos instantes de glória que passaram enquanto aquelas palavras foram
lidas. Percebi, entretanto, que todos os que são recebidos no Colégio D. Bosco
assim são tratados, não sendo eu uma aspirante a estrela de Bollywood. Fiquei
mesmo com a impressão que o jornal e a televisão locais eram propriedades
daquela instituição, cuja audiência talvez se restringisse à mesma. Não tem
importância. Isso não retira a relevância da experiência, tão-pouco a
responsabilidade que sentia, muito menos a ansiedade que o meu corpo
experimentava. Era a primeira vez que dava aulas em inglês. Se a participação
em congressos me providenciara ocasiões para aprimorar as minhas habilidades
naquele idioma, estar uma semana em modo inglês era algo totalmente distinto.
Foi ao terceiro
dia que esta menina professora quase colapsou por efeito do ‘jet lag’.
Digam o que disserem, a diferença horária tem repercussões que, no meu caso,
são por demais evidentes. Cinco horas e meia: a diferença horária em relação a
Portugal. E a senhora insónia bateu à porta do quarto. E não preguei olho
durante toda a noite. E no dia seguinte não percebia patavina do que os
indianos me diziam ou perguntavam na aula. Nem sei como consegui dar a aula. “Could
you repeat, please?” Não faço ideia de quantas vezes pedi para que
repetissem o que diziam, enquanto fazia um esforço para refrear as tonturas que
as suas nucas em oscilação contínua me provocavam. Se para mim era
um desafio dar aulas em inglês, compreender o ‘inglês’ dos indianos de Goa foi,
seguramente, a maior dificuldade daqueles dias. Depois de mais de cento e um “could
you repeat, please?”, a aula chegou finalmente ao fim – e o enjoo passou
despercebido - quero acreditar que sim. Isso não significava, porém, ficar
livre e por minha conta.
Durante os dez
dias que estive em Goa, jantei uma vez sozinha – foi na noite da chegada. O
pequeno-almoço incluído no hotel foi a única refeição diária que realizei sem
companhia. A gentileza, cuidado e simpatia das pessoas que me convidaram não
lhes permitia aceitar uma qualquer recusa da minha parte. De maneira que isso
me possibilitou conhecer diversas famílias, vários restaurantes e uma
diversidade de lugares em Goa e arredores. Bom, arredores,
apenas uma vez, mas valeu a pena. Passei um dia num resort; a gerente
garantiu-me que as casas de luxo do sítio eram alugadas por pessoas pouco
ordinárias, como o senhor Brad Pitt. Com muita pena minha, não era a sua época
de férias; às tantas estava a filmar Babel ou A árvore da vida. Esse dia
extraordinário, num resort extraordinário, numa praia extraordinária
ficou marcado por um escaldão só comparável ao que apanhei este ano no Rio de
Janeiro. E pelo mesmo motivo: a febre de querer aproveitar, no caso de Goa, o
único dia de praia possível na agenda preenchida (no Rio não foi um, mas três
dias de praia... em quase quatro meses). Era possível estrelar um ovo nas
minhas costas. Vá, não em toda a superfície... mas quase.
A existência de
um sem número de igrejas católicas é apenas um exemplo da influência portuguesa
naquela antiga colónia. A religião ao serviço da colonização é bem visível na Old
Goa, com especial destaque para Basílica do Bom Jesus, onde a altura do pé
direito era de tal ordem que quase fiquei com um torcicolo. As marcas
portuguesas estendem-se às ruas da cidade, onde os solares e casarões nos
lembram como, em outros tempos, os serviçais mantinham os alpendres, as janelas
senhoriais e jardins cuidados e amplos, impecavelmente limpos – marcas
indeléveis da cultura portuguesa em terras além-mar.
Por incrível que pareça não vi gente a dormir
nas ruas e os corvos que escutei cingiam-se à praia urbana de Pangim, a
duzentos metros do ‘meu’ hotel. Os corvos que crocitavam de modo contínuo não
eram adversários à altura das buzinas, buzinões e apitadelas constantes do
tráfego automóvel. “Horn me please” – o que li em muitas placas pregadas
nas traseiras dos veículos. A legenda que me esclarecia que carregar na buzina é
uma das técnicas de condução: uma apitadela para virar à direita, duas
apitadelas para virar à esquerda e três apitadelas para lembrar aos demais
condutores que não estão sozinhos na estrada: as senhoras vacas têm prioridade
sagrada. Estão, pois, a salvo das mesas dos comensais.
Foi na mesa do
Frade WF que tive uma excelente ocasião para desfrutar da gastronomia de
Pangim. O Frade WF convidou-me para o
seu aniversário em sua casa com toda a sua família. Suei água em bica, bebendo
pelo menos três litros de água durante a refeição. Na verdade, a roupa ficava
sempre encharcada e não era pelo calor, uma vez que o ar condicionado estava
sempre ao rubro. Transpirava qualquer que fosse a comida, qualquer que fosse o
lugar. Apaziguava os meus anfitriões afirmando repetidamente que estava bem e
servindo-me pelo menos duas vezes. A comida era deliciosa. Quente, picante,
flamejante para o meu paladar europeu – mas inigualavelmente saborosa: a
gastronomia indiana ficou no meu top três, ascendendo ao lugar cimeiro
meses depois, quando regressei à Índia. Beber água era a forma (mesmo que não a
mais aconselhável) de acalmar as minhas glândulas gustativas. Prosseguia na
degustação de cada novo prato, sem pruridos da vermelhidão do meu rosto.
Sempre que
chegava ao hotel confirmava os receios remanescentes dos atentados em Mumbai. A
segurança era severa. Antes de entrar no parque do hotel, com portão sempre
cerrado, um polícia pedia que se abrisse o capô e a mala, efectuando a
respectiva vistoria. Depois de sair do carro e me despedir, abria a carteira e
era sujeita a um controlo de metais e afins. O mesmo sucedia em todos os locais
públicos fechados. Esse controlo contínuo não obstou a que me deliciasse com as
gentes, cores, sabores e odores de Goa – mesmo que não tenha estado na Índia,
convivi com indianos maravilhosos.
A par da agenda
social e académica cheia, encontrava espaço para vaguear durante algumas horas
pelas ruas de Goa. Saía do hotel após uma sesta – sou uma defensora acérrima de
uma curta viagem ao mundo onírico depois do almoço; vinte minutos em brasa que
me transportam para um qualquer sonho. Para além dos palacetes e casarões de
estilo colonial português, o comércio era diverso nas suas configurações e
produtos.
Deambulei várias
vezes por um mercado, onde os meus sentidos captaram múltiplos estímulos
sensoriais, bem distintos do que estava acostumada. Desde logo o odor a
especiarias, entre as quais o açafrão amarelo torrado, que se adentrava pelos
olhos e pelas narinas. Com esta fragrância peculiar que dá cor a pratos de ‘curry’ muito saborosos, concorriam
muitas outras cores e cheiros ainda mais fortes, como o vermelho – a fazer
adivinhar algo bem quente. O cor-de-laranja forte e outras matizes estavam em
exposição nos balcões de vendas organizados de forma aprumada. Cravo, canela,
gengibre e muitas pimentas que se confundiam com um dos aromas predominantes, o
cominho. Outras vendas se expunham com tecidos ricamente sedosos e macios.
Comprei uma echarpe para a minha mãe e guardo uma outra que a delicada
directora do colégio me ofereceu na última aula do colégio, juntamente com
outra grinalda colorida e muito olorosa.
Naquele mercado
fechado, com corredores exíguos a roçar o claustrofóbico à boa maneira de uma
medina marroquina, onde os meus sentidos eram assaltados continuamente, foi
muito penoso manter a carteira fechada. Não me foi possível resistir a uma
túnica azul, com cornucópias brancas e debruada com fios prateados e vermelhos
e a um conjunto de pulseiras a condizer: peças que entretanto voaram aquando do
‘Bazar porque vou Bazar’ (a senda da venda de garagem mais original de Paranhos
e arredores fica para outro registo).
As ruas
habitadas por lojas coloridas e roulottes de comida picante forneceram
sensações extraordinárias, cujas memórias gostaria de reviver, nem que fosse por
um breve instante eterno... mas a vida é assim, efémera e há que vivê-la
enquanto acontece. Senão, pode dar-se o caso, como às vezes sucede, de me
perder nos labirintos do passado, sem que desfrute do presente que me é
concedido, por exemplo, na forma de um sorriso.
Estava atenta,
porém, quando me sentei no avião para regressar ao Porto e peguei no livro de
um autor indiano – um guru da meditação. Um livro em português, que teve o
condão de provocar a minha vizinha de viagem: no seu colo um livro do mesmo
autor! A brasileira que me abordou regressava a casa após um mês em Pune, no ‘ashram’
daquele guru – Osho. As palavras serenas, ao mesmo tempo cheias de entusiasmo
da carioca, ficaram gravadas. Cinco meses depois voltei à Índia, a Pune, àquele
mesmo ‘ashram’, onde ‘meditei’ durante um mês. Como tal, não tenho
autoridade suficiente para afirmar que conheço a Índia... Terei de voltar...
30 de Outubro de 2016
Matosinhos, Portugal