O meu primeiro namorado



As vozes chegam longínquas, audíveis, porém. Desde há muito que uma das minhas vozes interiores sussurrava palavras sobre o início da adolescência, marcada não apenas pelo primeiro beijo, mas igualmente pelo primeiro namorado.
“Quanto, quanto me queres?” – perguntou dias depois de nos conhecermos. E sem cruzar os braços, sentada num jardim, deixei cair as mãos. Queria dizer-lhe que sim, sem que acreditasse no que escutava: o miúdo mais giro da vila queria namorar comigo.
A minha incredulidade ressoava sobretudo por duas razões. Por um lado, acabava de me mudar para uma zona residencial nos subúrbios do Porto; por outro, não me tinha em grande conta.
“A sério? O ‘puto’ mais giro do sítio gosta de mim? A sério, o P quer namorar comigo?”
Ainda por cima apanhou-me de surpresa: só nos tínhamos cruzado duas vezes. A primeira foi numa escola da Maia. Como mudei de residência, os meus pais pediram transferência para essa escola. Foi no dia das matrículas que eu e a minha mãe fomos à escola, para escolher a área a seguir: optei por saúde. Era essa via ou a área de administração (as duas únicas possibilidades). Na sala onde estava a minha futura directora de turma e professora de saúde, entrava um rapazito muito engraçado: olhos azuis, muito loiro, de cabelo rebelde – o sonho de muitas adolescentes como eu –, com umas bochechas rechonchudas que transformavam o seu rosto num postal angelical de Miguel Ângelo, tal qual no tecto da Capela Celestina.
Um sorriso tímido que me tocou. Um à-vontade com as meninas mais velhas que me encantava. E que também me era estranho; (ainda) não conhecia os modos dos rapazes. Ele tinha onze ou doze anos. Não tenho a certeza. Só me recordo de eu ser mais velha que ele, com dois anos de distância na vida escolar (entrei aos cinco anos para a primária e isso colocava-me na dianteira – se é que se pode considerar dianteira na vida).
A torrente de memórias soltou-se ontem à tarde, quando nos encontrámos no centro de saúde da vila onde nos conhecemos. A última vez que o terei visto foi com a sua namorada, hoje sua mulher, muito grávida do seu filho mais velho. Tem vinte e dois anos. Além dele, tem uma menina linda de dez anos. Os seus nomes não importam.
Importante foi o P, quando eu me sentia uma extra-terrestre a aterrar na terra de ninguém aos treze anos. Receosa em conhecer a minha quinta escola, apreensiva em recomeçar mais um ano lectivo e assaz ansiosa quanto aos novos amigos que a vida me proporcionaria.
Foi precisamente um dos novos amigos do bairro para onde fomos viver, a minha vizinha Y, que me apresentou o rapaz que eu fugazmente conhecera na escola. A minha vizinha era amiga do P, o ‘puto’ mais giro que alguma vez conhecera. A sua pressa em nos facultar um encontro no meio das sombras só muito mais tarde compreendi. Nessa época não reflectia sobre os comportamentos, tão-pouco sobre as motivações dos outros. Os outros são um inferno, escrevia Jean Paul Sartre – um inferno que nessa altura era o paraíso.
A Y apresentou-me o P que logo me deu dois beijinhos na cara. ‘O que é isto?’ Perguntava-me em silêncio para não fazer má figura, ao mesmo tempo que correspondia ao gesto. Era a primeira vez que um rapaz me cumprimentava desse modo, para mim tão adulto, partilhado apenas em família. Um costume que rapidamente aprendi, mas não muito. Por vezes roço mesmo a má educação. Continuo um pouco renitente em relação a esse tipo de contacto físico... Deve ser essa uma das razões que entretanto conduziram a rótulos semelhantes aos de peneirenta, convencida, mal-educada e afins.
Que posso eu dizer em minha defesa? Poderia argumentar que todas essas etiquetas são de quem não me conhece ou simplesmente não avançar com qualquer alegação e passar ao lado. Como aliás tem vindo a acontecer.
Nessa época, porém, eu ficava muito afectada com todas as novidades que me assaltavam todos os dias. O que os outros pensavam ou especulavam era com efeito um inferno que me atormentava. De tal modo, que importava em mim uma série de novos hábitos e um modus vivendis – no qual se integrava cumprimentar os novos amigos ou conhecidos; era mais isso – com dois beijinhos, alguns quase lambidos. Foi esse tipo de lambuzeira que contribuiu sobremaneira para uma certa aversão a essa prática.
Aos treze anos, para uma menina a caminho de se tornar rapariga, a opinião dos pares era reconhecida. E oh, como reconhecia aqueles olhos azuis. O P dizia-me que gostava de mim, que eu era muito gira, pedia-me em namoro...
E eu, filha de uma mãe muito preocupada com as más companhias, e que afirmava com frequência, ‘diz-me com quem andas, que eu direi quem és’, tinha medo que ela descobrisse que sim, senhora, crescera e até já tinha um namorado, por sinal o mais bonito da vila e arredores e, para mim, do mundo... Ou quase, no ano anterior também me apaixonara loucamente por um rapaz: o Tom Cruise.
Claro que não há como enganar uma mãe galinha como era (e continua a ser) a minha, transformando-me numa menina da mamã e quem sabe até mimada, como posteriormente escutei, tinha já trinta anos. Mas isso são outras histórias.
Quanto a esta história, a memória é muito doce. O que disse ontem ao P, quando me pedia desculpas por qualquer coisa que houvesse feito ou dito há... uau!... há quase trinta anos!
Hoje, sentada noutro jardim, recordo a Ana de treze anos. Vejo-a maravilhada, extasiada e completamente apaixonada (o Tom Cruise que me desculpasse, mas o P era de longe mais bonito e estava ali, a meu lado, oferecendo-me ao vivo e a cores as primeiras experiências de um namoro juvenil). O possível para uma menina daquela idade, para quem era mesmo muito ‘fixe’ ter um namorado tão giro e que ainda por cima tinha mota. Não era bem uma mota, era uma scooter. Ia dar ao mesmo. Até porque hoje tem uma senhora mota... enquanto eu tenho uma senhora bicicleta. Para ambas é necessário um capacete.
Foi o capacete, aliás, que o convidou a vir falar comigo ontem. O P queria ver qual era a minha mota quando lhe sorri, ao sair do centro de saúde, com o capacete pendurado no antebraço.
Não era uma mota, já se sabe. Mas os tombos podem acontecer quer a 200km quer a 60km – a minha velocidade máxima até ao momento... de bicla.
A paixão por duas rodas mantém-se, mas por meios diferentes, como distintas foram as vias que entretanto seguimos quando ainda éramos adolescentes de doze e treze anos. É forçoso reportar-me ao fim desse namorico, que durou pouco tempo. O P conheceu outra miúda, mais velha que eu... mas não mais gira que eu, ah ah ah. Com certeza mais interessante para aqueles olhos azuis enternecedores e muito lânguidos.
Não me lembro se os meus se alagaram num rio de lágrimas com o primeiro desgosto de amor. Não foi bem amor. Pouco tempo depois as aulas começaram e, sendo eu uma novidade na escola, os níveis de auto-estima não se foram abaixo. O número de rapazes que desejava conhecer-me fez crescer as razões para que as raparigas da escola me considerassem uma valente convencida.
Essa confiança foi efémera, como quase tudo na vida. No ano seguinte foi necessário mudar outra vez de escola. No Garcia da Orta eu era só mais uma na multidão de adolescentes e voltei a sentir-me muito pequena. Pelo menos nessa matéria.
Como muitas mulheres, a minha auto-estima foi-se alterando ao longo da vida. Com frequência por influência dos pares ou namorado. Hoje em dia essa relevância é residual. Refiro-me ao que os outros pensam de mim. O inferno era mesmo eu que o construía. Quando me miro no espelho, olho com os meus olhos. Sem atender aos que batem à porta... quase sempre.
Quanto ao P, observei um homem tranquilo do alto dos seus, talvez, quarenta anos, mal-grado as dores de estômago que o impeliram à mesma médica.
A memória é doce e agradeço-lhe a ilusão de ter sido infantilmente amada pelo miúdo mais giro que conhecia... mesmo que por pouco tempo. Mas isso não é novidade: um instante pode ser uma eternidade. Obrigada, P.


Matosinhos, 20 de Outubro de 2016

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