Amigas de infância




Brincávamos muito. As borboletas azuis eram as nossas guias. Barcos de infância irrequietos que nos faziam correr. E corríamos, corríamos atrás delas, sobre as folhas secas do Outono se era a estação que vivíamos. Corríamos, corríamos, sem que o objectivo fosse agarrá-las. Não era necessário. O paraíso morava ali e às vezes as borboletas azuis regressavam a nós e tocavam-nos nos cabelos cortados à escovinha. Ali paravam como bandoletes coloridas. Aí estacionavam por milionésimos de segundo. O tempo suficiente para nos questionarmos, como Lao Tse Tung, se éramos meninas sonhando serem borboletas ou se borboletas azuis sonhando serem meninas.
Perfeitas na nossa ingenuidade infantil, estávamos sempre a brincar e, com frequência, vestíamo-nos com esse mesmo propósito: saloias no carnaval, bailarinas nos corredores da casa, ciclistas no pátio do prédio, cozinheiras de plasticina no quarto ou cantoras famosas imitando a Maria Armanda no seu ‘Eu vi um sapo com guardanapo’. Havia mesmo quem nos estimulasse nessa cantoria colorida pouco afinada, sob o céu pejado de nuvens perfeitas. Mas, na maior parte das vezes éramos só as duas. Bastávamo-nos mutuamente, com a lua a tocar-nos com a sua luz intemporal. As duas, de rosto colado. Eu e a Ana. A Ana e eu.
Uma das facetas que eu mais gostava na minha amiga Ana, era a sua prontidão incontida em acompanhar-me no que eu desejasse brincar. Acabávamos por dar as mãos e envolver-nos naquilo que afinal ela preferia: jogar ao elástico ou rodopiar de bicicleta, ah e também jogar às escondidas. Mas isso era quando também estavam outros meninos do prédio.
Jogar às escondidas era um dos nossos jogos preferidos. E no quarto escuro, ainda mais. Ah, ah, ah... Não, não havia nada disso que estará eventualmente a pensar, caro leitor ou cara leitora. Ainda éramos muito inocentes e o que nos deliciava era a hipótese, mesmo que remota, de não sermos encontradas ou reconhecidas num espaço de dez metros quadrados. Especulo que seria mais ou menos essa a área do meu quarto, que também a Ana preferia. Não é que não gostássemos de estar em sua casa. O que acontecia era que éramos nós, eu e o meu irmão kiko, que tínhamos mais brinquedos. Era mesmo um exagero a quantidade de coisas que os nossos pais nos compravam ou a família oferecia no natal e outras festividades. Partilhávamos o que nos estava disponível. Hoje, ao reflectir sobre o assunto – a Ana pediu-me –, acho que tem mesmo a ver com esse facto. Nós tínhamos tantos brinquedos, que quando juntávamos os nossos com os deles – os da Ana e do seu mano Miguel –, as salas ou os quartos transformavam-se em verdadeiras feiras. Naquele caso comparáveis não à da Vandoma, mas da Ladra.
Por vezes restringíamos o tema: cozinhar no meu quarto. A plasticina de todas as cores e os utensílios de variadas formas eram um estímulo para confeccionar pratos se não suculentos, pelo menos criativos, selvagens ou saloios.
No quarto da Ana reinventávamos uma das suas brincadeiras favoritas: brincar aos escritórios. Quando a Ana acompanhava o pai ou a mãe ao banco trazia uma série de formulários ou fichas, com papel químico com os quais depositávamos dinheiro a fingir, levantávamos dinheiro a fingir, fingindo-nos muito organizadas, muito atarefadas com muitas reuniões agendadas, que desenvolvíamos as duas, pairando no ar como belas borboletas azuis, muito saloias.
Como saloio era o pão que ajudávamos a cozinhar quando o nosso lugar era a quinta dos meus avós em Meruje. Uma vila próxima à aldeia dos avós da Ana que, como eu, passava grande parte das férias grandes, longe da cidade. À época, a cidade de Lisboa. Mas a Ana foi-se embora. Foi viver para o Porto.
Foi um acaso que finalmente nos permitiu um reencontro. A Ana virá muito em breve a Lisboa. O seu projecto mais recente implica a sua presença na capital. Combinámos combinar um chá no Chiado. Estou ansiosa por abraçá-la.
Até já Ana.


Matosinhos, 20 de Outubro de 2016

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