Nadando com tubarões





          
         Numa ilha do Caribe. Caye Caulker. Quem é do Belize. Quem é da Europa. Quem é da América do Norte ou do Sul, ou mesmo da Oceania ou Médio Oriente. De toda a parte do Mundo, na ilha sem veículos motorizados. A excepção são umas poucas dezenas de carros semelhantes aos dos campos de golfe. As bicicletas são a preferência da maioria dos que se querem deslocar mais rápido. O lema da ilha convida, porém, à lentidão: 'Go Slow'. Não há pressa. Sobretudo entre o meio-dia e as quatro da tarde. As opções estendem-se a pequenas embarcações para quem quer afastar-se algumas milhas da costa e mergulhar com mais ou menos profundidade.
            As palavras do australiano Todd, aqui, fazem todo o sentido: "Se queres conhecer o mundo, tens de mergulhar nas profundezas do mar. Só assim terás oportunidade de te deslumbrar com os corais, os lobos marinhos, as tartarugas, os tubarões e tantos e tantos habitantes do meio aquático".
            Decidi experimentar! A Zita aconselhava a aproveitar a oportunidade de estar num dos lugares mais bonitos do planeta para mergulhar. A segunda maior barreira de corais do mundo, a maior do hemisfério norte. Se aqui desembarquei por acaso, sentindo que tal fenómeno não existe, pensei que este seria o sítio  ideal para me estrear.

            Foi há dois dias. Não foi a falta de oportunidade que me protelou escrever sobre a experiência. Foi sobretudo sentir que teria de aterrar do que me pareceu ser um sonho. Como não tenho o curso de mergulho - ainda! - a opção foi o snorkeling. Tal como na escrita, às vezes tendo a adiar certas situações, como que antecipando que algo de maravilhoso poderá acontecer. Assim sendo, só na véspera de partir de Caye Caulker entrei num barco e incorporei a máscara.
            "Há alguma coisa que eu deva saber antes de entrar na água? É a primeira vez que vou fazer snorkeling..." O guia deve ter ficado tão surpreendido como aqueles que mergulham. Foi preciso viajar até Belize para escutar a chamada. Nem quando estive na ilha tailandesa, Koh Tao; outro paraíso dos mergulhadores.
            Uma otite aos dezanove anos, provocada por saltos e mais saltos para a lagoa da Mina de São Domingos, em Mértola, pairava na memória sensitiva. Nunca senti uma dor tão forte como essa inflamação. Desde então, assumi a pressão resultante da submersão como um aviso para não me aventurar. Nadar, boiar e desfrutar nas praias e rios sempre o foi suficiente para mim. Até há dois dias!
            Desde o momento em que entrei na lancha, senti que algo de extraordinário estava para acontecer. O azul, ou melhor, a paleta de azuis da água cristalina era já um sinal do que poderia ocorrer. Com a máscara no rosto, após ensaiar a respiração, saltei da lancha. Splach! Splach! E uau! E uau! Mesmo debaixo da água cálida, observei e senti a pele arrepiar-se. Apesar de o mar ter apenas uma leve ondulação, percepcionei uma onda a percorrer todo o tecido da pele, envolvendo-me até às entranhas.

            Depois do primeiro êxtase, um pensamento assomou: "Ana, como é possível que só hoje tenhas vindo aqui???!!" Palavras que iam e voltavam constantemente numa discussão estéril. O outro pensamento que entretanto crescia, ao limite de uma decisão num futuro próximo (espero que em breve), era: "TENS! de fazer o curso de mergulho. Se em segundos ficaste maravilhada, apenas por submergir um metro, como será se mergulhares um pouco mais?" Todavia, impedi que estes e outros pensamentos me desviassem do essencial: deslocar-me lentamente - tal qual o lema da ilha - e assim contemplar, sentir, escutar.
            Os programas sobre a vida selvagem sempre me fascinaram, em particular os do fundo do mar. Quando vislumbrei os primeiros peixes, outros devaneios me queriam ofuscar do essencial: "Isto não é televisão. Isto é real! Estás mesmo aqui. Os peixes estão mesmo ao teu lado, quase podes tocá-los". E toquei. A dada altura, uma série de tubarões curiosos rodeava a nossa pequena embarcação e eu estava no meio deles! E a sentir a sua textura áspera. O seu castanho a encher-me os olhos e o coração. Fui invadida pela milionésima vez pelo sentimento de gratidão. Só não digo, como anteriormente afirmei, que já posso morrer, porque agora quero mergulhar!
            Quando vi a primeira raia, percebi a Júlia. Tem uma desenhada e gravada na sua nuca. Também a minha companheira de casa em Matosinhos ficara fascinada pela figura aquática. Tantas e tantas, as raias na reserva ao largo da costa de Caye Caulker.
            A barreira de corais está plena de vida. Fomos alertados para a sua fragilidade. Não podemos tocá-los, pois até isso prejudica a sua saúde. Algumas 'feridas' visíveis comprovavam a sua vulnerabilidade. A sua limpeza está a cargo dos incontáveis e multicolores peixes. Uma relação natural de simbiose. Assim é a natureza. Perfeita! Como perfeito era o momento que vivia. Os olhos captavam formas e cores maravilhosas, de uma beleza até então desconhecida. Os neurónios não paravam em sinapses contínuas para o centro das emoções. Ao ponto das lágrimas começarem a competir com o mar em que mergulhava. Exagero, claro! Não muito, em particular por extasiar-me em modo contínuo com os peixes e mesmo cardumes. Azul índigo, azul real, roxo, amarelo, cor-de-rosa, vermelho, dourado, cor-de-laranja, às riscas, debruados... Uma diversidade imensa. Uma paleta divina de muitas cores, formas e tamanhos. Palavras insuficientes e incapazes de expressar o indizível da emoção que me envolvia.
            Ao mesmo tempo, uma paz exultante com o silêncio que escutava. Semanas antes escrevia sobre a experiência do silêncio, essa ausência de som. No meu registo anterior*, a constatação de que nunca o sentira na totalidade. Finalmente, a dádiva. Quebrada apenas pela minha própria respiração. Enfim, a experienciar o silêncio. Nada mais havia que o deslumbramento ininterrupto pelo que via, repercutindo-se no meu ser e transformando-se em felicidade plena. A paz, a liberdade e o silêncio que vivi são uma dádiva que guardo com profunda gratidão. Muito obrigada!

2 de Agosto, 2015
Bacalar, México

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