Como se alguém te contemplasse


Faz tudo como se alguém te contemplasse. Leu Margarida num quadro da memória. Sentada à beira-mar, a felicidade é um estado inefável. A água fria do Atlântico mantém-se numa distância segura, mas os pés dançantes do invisível arriscam o arrepio. Percorre-a desde os dedos da extremidade inferior até à cabeça. No caminho acalmou o fogo flamejante. É Primavera.
Atrás de si, as gaivotas voam sem tino. É Primavera nas ondas da manhã. Eleita para o amor, Margarida renasce em cada noite pouco, mal dormida. As horas são horas de sessenta minutos, à distância. Quando sente o toque de António, quando o respirar de António lhe sopra ao ouvido, as horas não existem. É um tempo sem tempo. É um presente eterno que se renova, qual onda na areia apagando as palavras risíveis riscadas com o indicador.
O suspiro tranquilo e amoroso que abraça os ombros estreitos e macios de Margarida despertam. Um fulgor que perpassa cada célula, cada espaço intersticial. É um brisa doce.
-       És tão linda, Margarida. As tuas mãos dançam no lenço que se ata e desata num gesto despercebido, por ti. Para mim é um entrelaçar divino. Faz tudo como se alguém te contemplasse. Fica aqui.
-       Não vás. Não tardes...
A inércia é aparente. Os olhos tocam-se. O azul de António no verde de Margarida: a paleta da Primavera. Ao lado, o nada. Atrás o vazio. Em frente a eternidade.
Faz tudo como se alguém te contemplasse. É no centro da gravidade ausente que as estrelas são um lapso. A manhã apagou-as. Foram embora. Vão sempre embora. Em breve vão casar.
António não demora e Margarida acorda. Grava os sonhos na areia pueril. O corpo vibra com o lampejo do sussurrar de António.
Fica mais um pouco para que eu te possa contemplar... devagar.


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