Infalível no gesto. Sacudiu o pó dos pensamentos.
Pesavam-lhe no pescoço. Eram uma carga inexorável nos ombros. Ao ponto de,
apesar de ainda não ter chegado aos trinta, as omoplatas serem já uma serra de
duas altas montanhas nas costas estreitas. Marta.
Infalível no gesto, trancou com firmeza a sua fúria
descontente. A água corria no chuveiro, sem que Marta desfrutasse da
temperatura para lá do tépido. Nua era mais pura. Detestava as calças justas de
algodão que jaziam sobre a cama. As preferidas de Gonçalo. Sempre lhe
provocaram irritação. Vestia aquela peça pelo conforto. Gonçalo agradecia: “Não
consigo despregar os olhos das tuas curvas maravilhosas! Que bela invenção”.
Era com inveja secreta que Luís, o amigo de Gonçalo, contava
os dias da eternidade para olhar Marta. Os cabelos lisos e finos da jovem nunca
se despentearam com o olhar flamejante de Luís.
Sacudiu o pó dos pensamentos com a água que corria. E como
num impulso alaranjado, fechou a torneira. Suspirando profundamente: “Está na
hora. Chega!” Quase saltando da banheira, agarrou a toalha azul, abraçou-a ao
tronco. Não gostava de se limpar. Parou os movimentos em frente ao espelho.
Aguardou que o ar quente secasse a pele macia. Sempre macia com o creme de
aroma floral e fresco.
O olhar violáceo reflectiu no espelho um obituário
antecipado. Deslizou pelo corpo esguio, amarfanhado na toalha. Expeliu novo
suspiro. “Vou embora. De comboio!” Sem mais demoras, deixou a casa-de-banho e
vestiu as calças pretas que abominava, uma camisa azul e sapatilhas. Da estação
seguiria para a praia. Ia para a praia. Estava decidida.
Irra! Sacudiu novamente, com mais vigor, o depósito
cristalizado dos pensamentos. Correu vertiginosamente pela rua abaixo. Os
carros levemente adormecidos, levemente povoados, paravam para Marta
prosseguir, vermelha, envolta numa raiva incontornável. O murmúrio pesado das
máquinas – sempre obras, sempre em obras, estas malditas máquinas –
atravessava-lhe o estômago. Morangos. Esqueceu a fruta no balcão da cozinha. Melhor
assim, os primeiros da época não a atacarão. Seria em vão que a mordaça lhe
seguraria a ira efervescente.
Cansas-te, Marta!
Marta, Cansas-me!
A ridícula ideia de não voltar a ser. Abraçando o caminho,
entrou numa carruagem aleatoriamente. Quer ir embora. Inocente e irrevogável.
Com falsa emoção, sentou-se. Cinzenta. O trepidar do comboio logo, logo, lhe
quebrou o silêncio. Mesmo que aparente.
Fechou os olhos. Sentiu lenta e pesadamente as pálpebras,
como cortinas de aço que trancam o amor. O amor, ah!, o amor... e adormeceu.
Rígida. Alguns minutos.
E
relaxou. Sorrindo. Em surdina, uma gargalhada, doce.
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