Quando invocam a minha pessoa logo lhes vem à boca:
“aquela, a nossa amiga louca”. O nome por que me baptizaram. Como se deve
calcular, isso é apenas um epíteto. Maria dos Anjos; assim escreveu a minha
querida avó à minha mãe: “Querida nora, não sei porquê, mas tenho comigo que a
minha primeira neta se podia chamar Maria dos Anjos”. Menos mal... ou não –
Célia: o nome que os meus pais haviam seleccionado.
Maria dos Anjos – talvez um nome adequado. Eventual
explicação para a alcunha entre determinados amigos – ‘a amiga louca’. O
atributo apenas e só por não me enquadrar nos ditos padrões de normalidade;
esses da ditadura da maioria! Classificações vãs; assim as entendo. Não sou
normal, dizem: por isso sou louca; ou melhor muito louca. Mas que diabo!
Maria dos Anjos. Angélica nem por isso. A mania dos
anjos, até que sim. Não é propriamente uma mania: ouço vozes. Como não as
reconheço entre os vivos que fazem parte dos meus círculos afectivo e social e
tão-pouco profissional, avento uma hipótese: são vozes dos anjos, angelicais,
sobreterrenas, sobrenaturais, sobre qualquer realidade que não a material em
que me movo. Apesar de me deslocar amiúde por realidades incandescentes e
imperceptíveis, aos olhos de muitos dos que me rodeiam. Daí que conceba tais
vozes para lá desta minha existência corpórea.
Desse discurso já me desisti. Cada vez que os meus
lábios se enformam para proferir palavras da família dos anjos, os meus amigos
gesticulam como quem diz: “Oh Maria, por favor. Só porque és dos Anjos não quer
dizer que eles te visitem; se é que existem”. E assim pensam que abafam as
sonoridades que só eu escuto.
Outro motivo para me sentenciarem como a tal ‘amiga
louca’ deve-se ao facto de ter repentes. De quando em vez sou dada a amochilar
os meus parcos haveres e deixo-me conduzir por um impulso que dizem ser ora de
viajante, ora de fugitivo. A qualificação para o segundo impulso encontrei n’
“Um homem de partes”, de David Lodge.
A última vez que me senti impulsionada aterrei em
Saigão. Ho Chi Minh: a sua denominação actual. É provável que os vietnamitas
desejem apagar os tempos idos da ocupação norte-americana. O sangue derramado
não deve, todavia, ter-se esbatido da memória. A bandeira que os representa
marca bem essa cor de morte.
Saigão. Ho Chi Minh. Se os meus amigos aí se
tivessem deslocado de moto-táxi como eu,
perceberiam que o epíteto com que me evocam é totalmente descabido, ou mesmo
hiperbólico. Eles não sabem o que é a loucura: a loucura do trânsito. Motas,
motoretas, lambretas, motociclos, motocicletas, bicicletas e todos os veículos
sobre duas rodas que se possam avançar.
Centenas e centenas sempre em movimento, com ou sem
sinal vermelho. Mais um vermelho que neste caso é com efeito desconsiderado. Se
tal não me incomodou quando era uma das que usava capacete de equitação – os
mais usuais entre os motoqueiros de Saigão –, o mesmo não posso afirmar quando a
pé e carregada com uma mochila de quinze quilos.
Uma vez, a primeira de muitas similares, tentava
atravessar uma rua. Motas de um lado, lambretas do outro, mais motociclos pela
frente e até motoretas pelo passeio. Por onde continuar o caminho até à Rua Bui
Vien? – a do Graceful Saigon Hotel, onde me instalaria. Eu e muitos outros
turistas ao estilo backpack. Quase
caí, tal o desequilíbrio provocado pelo susto. Pensei que me estrearia nos
atropelamentos: tive de aprender rapidamente a atravessar as ruas em Saigão.
Basicamente correr por entre os momentâneos e exíguos espaços livres.
Na tarde seguinte à da chegada vi um rosto que me era
familiar. Ali, em Saigão? “I Know you...” Escutei-me dizer ainda: “You’re much
prettier live”. E era, uma actriz de Hollywood Frances Louise McDormand (o nome
depois de googlar ). Um sorriso fácil
agradeceu. Não costuma ouvir isso, ao contrário. Pedi um autógrafo! Estava de
férias, não o faria. Acabámos a troca de palavras desejando mutuamente boas
férias.
Ainda nesse dia ao fim da tarde fui agraciada com um
convite para jantar. Fui abordada por duas jovens vietnamitas enquanto passeava
por um jardim. Se eu tinha tempo para conversar com elas. O seu objectivo era
só um: melhorar o seu inglês. Porque não? Tempo era coisa que não me faltava. O
tempo que era só meu e podia desfrutá-lo do modo que bem entendesse, que bem me
apetecesse, partilhá-lo com quem quisesse. Anuí.
Eu e as estudantes de
Saigão num banco do jardim. Ambas universitárias a estudarem numa grande
cidade; as suas famílias longe e campesinas, pelo que percebi. Tentei uma fala
pausada. É visível a dificuldade das gentes da Ásia na locução do idioma
estrangeiro. A linguagem é totalmente díspar, solicitando outras formas de
soletrar e de dicção, o que dificulta a aprendizagem correcta do inglês e, imagino,
de todas as línguas germânicas e outros grupos linguísticos.
Antes de nos
despedirmos outra admiração. Queriam estar comigo outra vez! Combinámos jantar
na noite seguinte e trocámos números de telefone. Um jantar tipicamente
vietnamita... às vezes é bom ser louca, como me chamam os amigos. Talvez valha
a pena ter repentes e não ser normal.