A saudade... de uma tesoura
Uma
tesoura na secretária. Isolada em si. Ninguém se recorda da sua existência,
apesar de ter sido claramente útil em outros tempos. A falta que se prende
nesse objecto cortante é a angústia de quem sente uma saudade intransponível.
Afiado,
ainda, esse objecto solitário pousado numa mesa vazia. A solidão que a preenche
completa-se no modo metálico que se rasga em dois. Num grito mudo pede o colo a
que já não tem direito. Essa autorização levou-a a infância macia de uma
anatomia perdida. Mesmo que se mantenha acerada e prestável, a falta de se
sentir em falta apenas a si lhe assiste. Não há tempo que lhe traga a fraqueza
de um adeus inevitável e para sempre esquecido. Não é só por si que deseja cortar,
golpear, lacerar, sulcar de novo, nem que seja por um segundo... não muito
rápido.
Cinzas às Cinzas! ... a partir do ‘Diário íntimo’ de Manuel Laranjeira
Cinzas às
cinzas! Assim amordaçou as suas infinitas especulações íntimas. Arquitectou um
grande amor que era tão falso como o cinzento que lhe preenchia as madrugadas
da cor da terra. Saiu-se da vida com uma alegria feroz que lhe estoirava a
alma. A sua liberdade suprema custou-lhe a felicidade – à qual questionava com
grande satisfação e vaidade de que era feita a sua substância misteriosa.
Cinzas às cinzas! Decidiu-se afundar em ruínas, aborrecido e fatigado, sem que
a loucura do absoluto lhe saciasse a sede do eterno. Alcançará o eterno quando
se recordar do passado espesso que o sufocou pela instabilidade asquerosa.
Sem que se
despedisse com saudades de nada nem de ninguém, Emília encontrou-o na luz negra
e ardente do quarto em negrume com o odor velho de uma morte há muito anunciada
sem que revelada. O tédio infinito do seu egoísmo feito de crueldade consolo-o.
Riu-se satisfeito da pequenez dos homens. Mas esse rosto em forma de escárnio,
não o viu Emília. O acto consumou-se sem aviso. A morte não se prepara... para
os outros. Os que assim escolhem a sua hora fazem-no no ruído abafado do
aborrecimento sem fim.
Nem uma
carta tinha Emília para lembrar o seu grande amor. Emília, aquela de aroma
quente e sensual que na sua cama de dossel – não a deste quarto de morte – lhe
gastava dias de vida numa noite de jacto em descargas nervosas. Isso ela não
sabia. Nem tão-pouco sonhava que a sua ilusão de grande amor era um amor há
muito vulgar, cuja materialidade se ia esbatendo, qual tarde de Outono que se
morre... devagar.
Oh Emília!
Tantas noites choradas em choro inquieto por não decifrares como apaziguar o
medo frio e a monotonia congelada de
quem se escrevia, trabalhando o dia todo. Só nesse labor o teu grande falso
amor tinha a impressão de que na vida ainda havia alguma coisa que valia a pena
fazer.
Emília,
querida Emília... Porque é que os homens não hão-de ser simplesmente homens?
Chora. Chora, chora muito para que não rasgues o desconsolo infinito das coisas
abandonadas. Esquece-te das misérias e não invernes polarmente. Por uma vez,
Não! Essa raiva surda que te engaiolou, qual amante sem desenganos, entrega-te
o orgulho desdenhoso. Buscaste tantas vezes naqueles olhos enfermos e agastados
o sentido de uma alma sem esperança. Jaz à tua frente sem saudade do futuro
onde podia ser realizado o teu sonho nunca concretizado da vaidade de um grande
amor.
E agora
Emília? Iludiu-te como os olhos pregados no vácuo. Bem-dita ilusão enquanto
crias nela! O nevoeiro caído em lama envolve-te e paralisa-te as asas. As tuas
ainda podem voar. Lá, muito longe na escuridade do ocaso, enterra as cinzas daquele
que se ardeu. A tua alma perde-se nessa metade que se rebelou. Tens ainda o
resto de ti, mesmo que ceifado pelo teu grande amor. Combate o (im)previsível.
Na tua cama de dossel há espaço para outros amores, mesmo que não sejam grandes
nem falsos.
Matou-se,
Emília! Tens vontade de continuar a chorar. Talvez assim – como os náufragos –
também te afogues mais depressa. Mas sabes, Emília? Podes decidir levantar-te e
encontrar o remédio para aquelas indiferenças bruscas e exageros afectivos.
Na enxurrada
de lágrimas que a afundam no seu rio, percebe então como aquele que escolheu a
não-vida se punha a dormir dolorosamente no seu regaço. A ilusão da
imortalidade de um amor que, como todas as farsas, tinha de morrer. E morreu!
Não o amor, mas o objecto da ilusão do seu grande amor.
Destroçada,
sai do quarto moribundo restolhando surdamente o seu respirar dorido. A rua. Na
rua sob o luar de cinco dias deslocados no tempo. De coração recortado e em
tumultuosa rebelião interior sepulta os seus sonhos, como sepultado será aquele
que sofreu geladamente nas sílabas do tempo e sempre, sempre num sorriso...
amargo.
Oh Emília, e
agora? As estrelas esvoaçam na languidez de quem morre a arfar, desta vez não
voluptuosamente, mas na recordação de um cadáver suicida. Pobre alma engaiolada
numa capoeira.
“Então este
amor não te dá felicidade?” Escuta-se na voz sumida àquele que o mundo perdeu.
Emília, Emília... sua excelência saiba que o homem é um animal triste, muito
triste... Não tentes compreender a nostalgia de um mundo sonhado e não
realizado. Já não precisas de representar esse papel para que não nasceste. O
teu tempo não é este. As horas estão cansadas de ser horas na tua noite
desossada.
A Emília...
vagueou toda a noite embalando a própria dor. Na escuridão muda tentava
enterrar um futuro adiado. Velha no seu tempo para os que se cruzavam em
estupidez insondável – uma solteirona –, flutuava em cada pé nas pedras.
Deambulando na noite dolorosa, Emília reagia. Reagia como uma tarde de
Setembro... lentamente. Nessa hora inimiga, infinitamente triste, tragicamente
triste, divinamente triste... as lágrimas em fio.
A noite
ficou naquele quarto na nudez intensa de uma morte não avisada. No dia que
começa a sentir nos ossos gelados, nas mãos geladas, os olhos de Emília, cansados,
doridos e muito velhos, estão ávidos de descanso.
Quando
estamos silenciosos é que falamos mais, dizemos mais coisas... No silêncio
nocturno quase dia, Emília cala-se. Para quem falar? Aquele que não se
preocupou com a dor que causaria partiu desiludido sem saudades. Aquele passado
há-de matar quantas esperanças lhe possam germinar. Tudo vão e em vão!
Por uma vez,
Não! Afinal o mal da vida é não saber vivê-la... ou não poder. Mas tu podes!
Por uma vez, podes!
“Posso...
cinzas às cinzas!”
A tatuagem
2 de Maio, 2013,
quinta-feira
Em visita a uma amiga. Sugeriu um passeio. Perguntei se o
gabinete de tatuagens onde fez as suas era perto. Durante a caminhada, passaríamos
pelo tatuador*. Aí ficámos a discutir sobre como e onde seria a tatuagem. A
tatuagem. Living Life Following my Heart.
A marca definitiva. A resposta à questão sobre o custo agradou: “Este é o preço
de amigo. Pegar ou largar”. Peguei sem pensar. Seguindo o coração? Foi por
acaso que a ocasião surgiu. Com não há coincidências, para quê adiar o que há
tanto tempo desejava?
A tatuagem. Uma marca definitiva no corpo. A tatuagem – Living Life Following my Heart. A
tatuagem no tornozelo. Uma marca definitiva neste corpo. De quem é este corpo?
O my na tatuagem em letra minúscula. A
letra minúscula. O corpo deste ser que se quer perder na vida. O ser que quer
aceitar a vida, escutando o coração. A tatuagem no tornozelo esquerdo. O
coração na tatuagem. Há quanto tempo se desenhava a tatuagem? A natureza
definitiva inibia. Em Banguecoque, Trevor – um rapaz canadiano que também leu ‘Crónica
de um pássaro de corda’, de Haruqui Murakami: “A tatuagem é definitiva e?
Remete-te para uma fase da vida”.
Uma vida em movimento. O verbo em continuidade. Vivendo.
Seguindo. A tatuagem. Uma pulseira oferecida no natal com a mensagem no
infinitivo. A pulseira que se mantém desde então. A tatuagem no tornozelo deste
corpo. A tatuagem. A marca a lembrar. Vive a vida. Segue o coração. Definitivo?
Quem sabe até quando seguirei o coração. Hoje foi o coração a comandar. A
tatuagem. A marca definitiva. Lembra-te que a vida é viver. Fluir no amor e com
amor. Escutando, seguindo o coração. Nada mais que isso. A tatuagem. A
lembrança permanente. Vivendo a vida, querendo fluir e seguir o coração.
*o tatuador, o Guilherme, a quem
agradeço a tatuagem que adoro e a fotografia linda. Obrigada Guilherme (http://tatuandohistorias.blogspot.pt/)
Num túnel
Numas botas rudes, as pernas
longas e cansadas contornam a frieza das paredes em curva. Nunca chego a horas;
percebe-se no rosto congelado, onde as horas passam como se fossem minutos. O
espaço incógnito é uma luz distante que enforma a negrura dos olhares mortos.
Três pessoas. Um homem. Duas mulheres. Os cabelos esvoaçantes tapam as costas
que o vestido dançante não cobre. Essa mulher, de aroma quente e sensual, arrepia-me
a pele. A outra figura feminina, de calcanhares distantes do solo, desloca-se –
qual hipopótamo – para o homem que parece uma estátua.
Um túnel. Três pessoas. A
escuridão do rosto masculino ensombra o brilho intenso dos olhos imensos das
duas opostas. No túnel obscuro, as horas passam como se fossem minutos em mãos
tapadas pelas mangas. Ninguém parece saber quem é quem. Um trio no anonimato de
um lugar desconhecido. A minha pele arrepia-se. Adivinho um par de mãos na
direcção do homem. O outro par esconde-se no medo. Três pessoas ofuscadas pelo
túnel congelado. As mãos calçam a vingança. A minha pele arrepia-se na
frieza que contorna o aroma quente de
quem sabe a acção seguinte. O hipopótamo arrasta-se nas pernas entorpecidas por
esse sentimento urgente de sanar um destino coagulado. O homem estátua perece
às mãos alheias sem compreender de onde chega esse brilho intenso de uns olhos
imensos. Só tem tempo para calçar os sapatos de engate que se resultam num
sorriso mordaz.
A outra mulher esbate-se nas paredes
em curva observando à distância. Não tenho nada a ver com os outros.
Mergulha-se no horror do que vê cerrando o olhar. Três pessoas. Um homem caído.
Um par de mãos assassinas. Outro par à distância do socorro. A inércia do
espaço incógnito fecha-se na frialdade das curvas enformadas pela luz que exala
olhares mortos.
A minha pele arrepia-se.
Dornes
Do-infinito-mensagem.
Quando? Num vislumbre escorrido olhando o olhar parado de um estranho.
Estranhou-me sem que me espantasse. A ausência pressentida de afecto. Olhando o
olhar parado de um estranho recebi do-infinito-mensagem.
A minha mão alcançava o infinito. Aquele outro lugar – Dornes – cresceu-me infinitamente. A minha casa anunciada no livro em chamamento constante nessa mão fugidia. A mão que segurava o olhar parado do lugar que me crescia imensamente. Dornes. Onde a minha mão alcançava o infinito.
A minha casa anunciada quando olhando o olhar de um estranho que afinal era aquele eu que retinha a mão já não tão fugidia. No livro, o chamamento para casa.
A minha casa?
A minha mão alcançava o infinito. Aquele outro lugar – Dornes – cresceu-me infinitamente. A minha casa anunciada no livro em chamamento constante nessa mão fugidia. A mão que segurava o olhar parado do lugar que me crescia imensamente. Dornes. Onde a minha mão alcançava o infinito.
A minha casa anunciada quando olhando o olhar de um estranho que afinal era aquele eu que retinha a mão já não tão fugidia. No livro, o chamamento para casa.
A minha casa?
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