Fragmentos de viagens...*



 ... travessia do Rio Douro... a nado

 
Este ano fui duas vezes a Espanha – saí duas vezes de Portugal. Note-se. É provável que o verbo ‘sair’ não seja o mais adequado.
Em primeiro lugar, atravessar uma ponte de bicicleta até à fronteira não significa, necessariamente, estar a sair ou a entrar, ou coisa que o valha.
Em segundo lugar, numa travessia a nado só se toca na outra margem de um rio.
Foi de Segura – aldeia do concelho de Idanha-a-Nova – que cheguei a Espanha, pedalando e, assim, atravessando a ponte sobre o Rio Erges. O ponto de partida da ‘viagem’ fora da própria sede de concelho, Idanha-a-Nova...

Nadei até Espanha desde Peredo de Bemposta – Mogadouro. Uma praia fluvial, nos confins, não direi do mundo, mas cujo acesso ainda lhe providencia o carácter de ‘tesouro’ do Douro. Por favor, não divulguem. Queremos voltar lá, com a esperança de que ainda não esteja transformada numa algazarra de Agosto.
A aventura até Segura – chamemos assim – jamais poderia ser empreendida em Agosto. O caldeirão da Beira Baixa não permitiria uma estafa de quase 100 quilómetros (ida e volta) a pedalar. Foi o meu percurso mais longo até ao momento, de bicicleta. Valeu a pena!
Não consigo explicar o encanto que Idanha-a-Nova tem sobre mim. A paisagem quase vazia – ‘limpa’, como alguém afirmou – exerce um fascínio indizível sobre o meu ser.
Não chega a 100 metros, a distância entre as duas margens do Rio Douro. De qualquer modo, fui a única pessoa a nadar até à outra margem naquela tarde de Agosto, no concelho de Mogadouro. Com e sem modéstia à parte.

A dificuldade estava – segundo o meu companheiro de aventuras – na incapacidade de ver o fundo do rio. Sabe-se lá o que poderia saltar, assim de repente, e comer-nos os pés.
Os abutres-negros vagueiam pelo ar em busca de alimento, por conseguinte, estes necrófagos não eram um perigo para quem pedalava até ao Rio Erges.
Em Março, as cores primaveris que ladeavam a estrada com curvas e mais curvas enchiam os meus olhos. O amarelo dourado das flores silvestres contrastava com o ainda verde da vegetação rasteira. Os olivais alternantes com os campos de pasto pincelavam as terras ondeantes, cuja inclinação assegurava um treino forte, sem chegar ao limite do extenuante. As pernas ressentiram-se – afinal, 50 mais 50 dá que pedalar – mas sem desafio não seria tão interessante.
Aqueles quase 50 metros até Espanha (mais 50 de volta até à ‘nossa’ margem) desafiavam o conceito de fronteira – pelo menos a mim, para quem este é um tema muito caro.
O verde seco e denso das águas do rio davam a sensação de se estar prestes a pisar um manto sem solo. Mas as pedras e rochas de cada margem parecem ser suficientes para afirmar: aqui é Portugal; daquele lado é Espanha.
A ponte romana, que terá sido construída durante o império de Trajano, no século II, estabelece uma marca territorial que dissipa quaisquer dúvidas que possam subsistir. A sua imponência é só mais um exemplo daquele que foi o maior império de todos os tempos. Os resquícios e vestígios por todo o território português assim o atestam.

Território.
Quando se nada no Rio Douro, as altas fragas em cada margem acendem a imaginação e ‘edificam’ lendas, como a da “Fraga da serpente”. Reza a lenda que havia uma serpente que todos os dias cumpria um ritual: ao acordar, dava sete voltas à ‘sua’ fraga; depois, no seu movimento serpentino ia até um chafariz para beber água e, no seu regresso a ‘casa’, ia picar os pés de uma santa que vivia noutra fraga. Todos os dias.
Mas até uma santa perde a paciência; fartou-se de ter os pés picados por uma serpente caprichosa. Lançou-se para outras terras, espanholas, a santa. Depois de se encaixar num seixo, rebolou para a outra margem. Mas de Espanha, não há apenas ventos e casamentos. Os pastores que por ela passavam, atiravam-na arriba abaixo. Isso aconteceu várias vezes, tantas como aquelas que encontraram o tal seixo no mesmo sítio de onde o lançavam. Até que a curiosidade os moveu e abriram o seixo e viram uma santa a quem ergueram uma capela – no lado espanhol, já se vê. Mas a santa que afinal também parecia caprichosa virava-se para Portugal. Talvez para mostrar à serpente os seus dedos em forma de pássaro.
Os pastores compreenderam e remodelaram o santuário, construindo um duplo altar. Deste modo, também a podemos ver sem ter de nadar para a outra margem.
O mesmo não se passa em Segura, onde a povoação sente que nada poderá alterar as suas vidas, as suas terras. As lendas não cabem aqui, mas os fortes e torres e castelos, ou o que resta deles em toda a faixa raiana, lembram a história de batalhas, guerras, afrontas...
Hoje: Espanha. Portugal.
Um rio. Uma ponte.
Quem dera se mantenha só assim. Os muros físicos são tantos e tão ‘duros’...
Enquanto puder nadar e pedalar esqueço-me ou, pelo menos, sou capaz de me abstrair das cabeças que rolaram arriba abaixo...




* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro


Fragmentos de viagens...*


... ao quinto dia nas montanhas mais altas...

... do mundo.
Há precisamente um ano cumpria um dos sonhos da minha vida: realizar uma caminhada nos Himalaias. Optei pelo Circuito do Annapurna. Caminhei durante dezassete dias de mochila às costas, sempre apoiada por um cajado. Esta prótese, assim o integrei ao longo do caminho, em particular nas subidas, fez parte do meu corpo até ao fim. Tal presente foi-me concedido logo na primeira hora de marcha, depois de atravessar a primeira de muitas pontes suspensas que ligam as margens dos rios e ribeiros do Nepal.
É sobre a travessia de uma dessas pontes suspensas que este texto se detém.
Nem todas as pontes me inspiravam confiança. Pelo contrário, houve uma ou outra ponte suspensa, cuja vulnerabilidade (por mim percepcionada...) me terá provocado certas indagações: “Que faço eu aqui? Quero mesmo atravessar esta ponte? Será que vale a pena chegar ao outro lado, e a que custo? Ou ainda, e talvez ainda mais séria questão, será que conseguirei chegar ao outro lado, sã e salva?”
Arrisco a impressão de estar a exagerar. Não obstante, quando me defrontei com mais uma ponte suspensa, coberta por um manto de neve virgem, a três mil e quatrocentos metros de altitude, pouco depois das oito da manhã, também o meu olhar se suspendeu durante um lapso de tempo – o suficiente para eternizar aquele instante. A brancura ofuscante inebriou-me e ‘obrigou-me’ a parar. O sol ia alto e, naquela manhã fulgurante, os óculos escuros de lentes azuladas eram obrigatórios.
O receio não era sentimento que me assaltasse na quinta manhã do percurso dos Annapurnas. O coração batia com um ritmo acelerado – por dois motivos. Um deles, fisiológico. Aquela altitude, e em sentido ascendente, impõe respeito a quem, como eu, vive ao nível do mar. A cadência que se impunha era em lentidão. Além disso, havia a mochila, ainda que nessa manhã me parecesse substancialmente mais leve. Os cerca de doze quilos com que iniciara o trajecto mantinham-se, mas o corpo adaptava-se rapidamente. Mas a pressa não era desejável. De todo!
Um dos objectivos do empreendimento a que me propusera era a contemplação. Como tal, o estado em que me procurava manter era o de receptividade. Só desse modo me poderia conectar com a Natureza e assim deslumbrar-me com o caminho, com toda a envolvência ... extraordinária. Afinal, caminhar pela montanha, seja qual for a montanha, pela manhã e em silêncio é uma experiência arrebatadora.
Arrebatada – como me senti quando me deparei com essa primeira ponte suspensa, ao quinto dia do Circuito. Não é estranho, por isso, que, além dos efeitos fisiológicos da altitude, o meu coração tivesse entrado em arritmia por motivos emocionais, admito. Observava as sensações que o êxtase me provocava. Os pêlos eriçaram-se instantaneamente, qual pele de galinha. O sorriso era do tamanho dos picos que me rodeavam. Os joelhos tremelicavam e o cajado confirmava a sua valia com respeito.
Como nevara durante toda a noite, além das árvores cobertas de neve, que se balançavam a cada raio de sol mais forte, libertando-se assim de algum peso, também a ponte me aguardava com um tapete macio e imaculado. Era a primeira a chegar ali. Os olhos emudeceram-se perante a brancura e beleza inefáveis.
O deslumbramento começara logo pela manhã, mesmo antes de sair de Upper Pisang – o lugarejo com meia dúzia de alojamentos para caminheiros, aventureiros, trekkers, hikers... ‘himalaianos’, onde me hospedara no dia anterior. Aí chegara exaurida, no fim da jornada do quarto dia de caminhada.
Chovera todo o dia, transformando uma caminhada lenta num exercício físico tenaz. Mais de vinte quilómetros calcorreados sob chuva fraca, é certo, mas a temperatura não convidara à contemplação. A satisfação era, mesmo assim, real, tendo aumentado ao entrar no local onde me abrigaria nessa noite. A recepção à minha chegada marcou-se pela simpatia quer dos anfitriões, quer dos hóspedes, já aquecidos e bem acomodados.
Depois de um duche quente, juntei-me ao grupo sentado em redor de uma salamandra que ardia com bosta de vaca. A temperatura continuou a aumentar até ao jantar. As experiências vividas de quem se propõe a este tipo de aventura abarcam diversos sentidos. Nessa noite, houve oportunidade para degustar o vinho local: raksi.
Só não expeli o líquido nepalês por delicadeza. Mais do que isso, atrevi-me a beber mais um nico. O odor estava muito próximo do álcool etílico. Era demais para mim. Ofereci o meu copo a dois jovens caminhantes que, como eu, se deleitavam com o calor reconfortante que emanava da salamandra. O australiano e o norte-americano aceitaram de bom grado a minha partilha.
Era uma noite cosmopolita. Aém deles, um casal de belgas e outro norte-americano. O elemento feminino chamava-se, nada mais nada menos que: Ana Pereira.
            A manhã do dia seguinte começou em grande risota. Quando finalmente nos apresentámos, eu e a tal rapariga californiana, com pais portugueses.
Nessa manhã, ao despertar, a neve que cobria a pousada e o solo e tudo em redor, era um presente maravilhoso. Esfregávamos os olhos, beliscávamos os braços para nos certificarmos que, sim senhor, estávamos acordados. O cenário era admirável. O céu ia ficando mais azul, à medida que o sol ia subindo, e os picos todos brancos despertavam as crianças remanescentes de todos os hóspedes que subiam ao terraço para se deslumbrarem. Pressentia-se gratidão nos sorrisos e nos “Uaus” sonoros e partilhados.

Saíra de Upper Pisang totalmente rendida e, naquele momento, a rendição continuava a ser o meu estado de alerta... caminhava numa floresta com aroma a Natal. Os pinheiros de forma cónica cobertos de neve eram os elementos que excitavam a imaginação e as memórias por viver.
Recordo a batida do coração, amenizada pelas botas sobre a ponte. Crâche, crâche, crâche. O pé direito, depois o outro, e de novo o direito, devagar, muito devagar e mais crâche, crâche... uma mão agarrava o vão da ponte e a outra o bastão de madeira. Ou talvez tenha pendurado o cajado, para melhor me segurar nessa ponte suspensa, com centenas de metros de vazio até ao rio... muito lá em baixo.
As vertigens são uma sensação que bem aprecio. A ansiedade era devida à remota probabilidade da ponte se desmoronar... Como se depreende, tal não sucedeu.
Quando alcancei a outra margem, olhei para trás. Uau! Os pés marcados na neve, na ponte. Estava tudo bem. Podia prosseguir em modo contemplativo. Escutando uma ou outra ave mais ousada. Continuando com os sentidos vigilantes. De olhos bem abertos, de pés bem apoiados, um passo, e a seguir outro... até ao pico seguinte.
A Natureza é frágil, caminha com gentileza – lembrava a todo o momento, um aviso que se lia em placas ao longo do trilho e que guardo em mim.
A Natureza é frágil, cuidemos de nós com gentileza.



Março, 2019

* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Fragmentos de viagens... *



... De Lisboa à terra


“Vamos passar a Páscoa à terra”; “Vamos para a terra nas férias de Verão”. Era deste modo que nos referíamos a Nogueira do Cravo, quando era miúda. “Vou à terra”. Não dizíamos: “Vou a Nogueira”. Isso era a resposta para: “Onde é a tua terra?”
Não era propriamente a minha terra, mas sim a do pai um pormenor de somenos importância. Era, e continua a ser, a nossa terra. Nogueira do Cravo.
Até aos 12 anos, a origem da nossa viagem à nossa terra era Lisboa. Mais concretamente Olivais Sul ou Portela de Sacavém.
O fiat 124 verde dos pais e o mini azul escuro do tio Zé Alberto e da tia Alexandrina eram os bólides de serviço. Demorávamos nada mais, nada menos que cinco horas a percorrer o trajecto! Sim, cinco horas de curva, contracurva e mais curvas, até que as crianças deixavam de aguentar o pequeno-almoço no estômago. A bola de berlim sem creme e o leite achocolatado da ucal nem sempre pediam licença e eram expelidos de uma assentada pela boca fora.
Quando tinham o discernimento suficiente, as crianças pediam para parar e a bola mastigada e o leite fermentado no estômago ficavam na berma da estrada.
Era preciso ter sorte. Raramente os miúdos conseguiam terminar o périplo sem chorar, sem vomitar, sem se zangarem, uns com os outros (até 1982 ano em que nasceu a Ana Cristina - os miúdos incluíam o Miguel, meu irmão e o Pedro, o primogénito do tio Zé Alberto, para além da narradora).  Não era bem zangar. Era mais uma espécie de jogo de resistência, ou de poder sobre quem tinha mais capacidade de perseverança. Para os pais, pura e simplesmente: teimosia.
As viagens começavam sempre com boa disposição. No carrito verde de quatro portas, era a janela do condutor que ia quase sempre aberta. No mini também era essa a janela que se abria. Até porque as janelas de trás tinham uma pseudo-abertura, com uma mola que só os adultos tinham força para abrir.  
O que se vai seguir, actualmente seria punido por lei. E se tal acontecesse hoje, é quase certo que daria azo a que a protecção de menores ousasse retirar os filhos dos meus pais e dos tios da sua guarda.
O meu pai fumou até aos quarenta e poucos anos. O que significa que nessas viagens de cinco horas, o meu pai, que era menino para fumar dois maços de tabaco por dia, não parava na primeira curva para fumar o seu SG filtro  aquele de pacote azul escuro. Era dentro do carro que matava a traça, partilhando com generosidade o seu prazer.
Outra coisa que não choca os pais dos meus sobrinhos é o facto de também eles terem viajado de joelhos nos assentos traseiros, virados para trás e a observar e a fazer caretas aos perseguidores mais ou menos velozes.
O cinto não era obrigatório e as cadeirinhas, se existiam, era para os muito ricos e, mesmo assim, tenho sérias dúvidas.
Nessa posição, de costas voltadas para os pais (sorte deles, se assim nos entretínhamos), começávamos entusiasticamente um dos jogos favoritos de quem fazia viagens de carro: cada um escolhia uma marca de carro e/ou cor. Eu e o meu mano. Ganhava aquele que contava mais durante o tempo que uma criança de cinco ou oito anos pode aguentar renault's 5, 4L ou carochas. Quer dizer, não se ganhava assim. Fácil. Não. Era necessário ser persistente, perseverante (ou teimosos...), e fazer ver, provar e comprovar a sua vitória. As chapadas confirmavam quem teria contabilizado mais carros verdes.
Regra geral, o verde era a cor favorita. Nessa época (antes de 1980 e até 1984, 85, mais coisa menos coisa), havia motivos para nos orgulharmos sem pruridos de gostar de usar o verde intercalado com riscas brancas. Na horizontal, note-se. Há que dizer que praticávamos ginástica em Alvalade. Local sagrado, nesse tempo... pelo menos para a nossa família.
Mas essa é outra viagem que agora não tem interesse. Até porque escrevo este texto no dia seguinte à derrota com os vizinhos vermelhos da segunda circular: 2-4!! Fico por aqui neste assunto triste como uma noite de Inverno, de céu nublado, ou mesmo nevoeiro e de temperaturas abaixo de zero.
Quando a temperatura era baixa, a chauffage era ligada ao máximo, no fiat 124 verde. O carro ficava ainda mais quentinho com o expelido do SG filtro do pai, que abria um pouco mais o seu vidro para lançar a beata borda fora.
Pergunto-me se alguns dos incêndios das décadas de 1970 e 80 teriam sido provocados pelo Amadeu e o Zé Alberto. Mas nesse tempo não era proibido deitar lixo pela janela. Nós até fazíamos várias pausas, por isso, o pai devia aproveitar para despejar o cinzeiro do fiat.
Sair do carro do tio Zé Alberto era quase outra aventura. Viajar no banco traseiro do mini azul do tio, da década de 1970, não se compara a viajar no Mini Cooper de hoje. Era necessário ser lesto e muito ágil, para sair a tempo de salvar os estofos dos fluidos das entranhas, prestes a saltar pela boca fora. 
Repito-me. Eu sei. Mas quem, como nós, vinha dos Olivais até Nogueira, sabe bem que a partir de Condeixa ou Cantanhede  não sei precisar as curvas eram uma contra a outra, em modo contínuo. Não havia estômago que aguentasse tal sinuosidade. Já para não dizer que contar as curvas era outro jogo; com maus resultados, como se depreende. Era isso ou acabar com a paciência dos adultos com a pergunta em modo repetir: “ainda falta muito?” 
“Está quase!” E era só. Não havia mais nada. Os pais não podiam dizer: “vê mais um filme”, ou “ultrapassa mais um nível desse jogo tão excitante”, ou “entretém-te com o teu pseudo-amigo youtuber”, ou “faz mais um scroll no instagram”. Nada disso! Eventualmente, as opções eram outras: cassetes TDK gravadas com antecedência, a fim de gerar alguma cantoria pelo caminho.
Sobre esse tema, muito poderia ser discutido, mas os gostos dos meus pais, como quase todos, não se discutem. O relevante era o potencial do Marco Paulo para nos distrair com os seus dois amores.
Na pior das hipóteses para os miúdos e a mãe, na melhor para o pai, era o Sporting jogar durante a viagem. O relato era inevitável. Deve ser por isso que às vezes dou por mim a mudar para TSF quando tal acontece...
Como já mencionado, nessa época até nem era mau ser "lagarto". Não era raro chegarmos a Nogueira a cantar olé, olé, Sporting olé, com a camisola a tresandar a vómito seco. E muito felizes por ver a Avó Altina e o Avó Alfredo. E mais um companheiro de brincadeiras, o primo Zé Fernando, que viveu com os avós até aos 12 anos. A tia Lurdes era quem avisava, vinha a correr à porta, mal escutava os motores do fiat 124 e do mini azul a chegarem ao Largo de Santo António.

Hoje, a viagem para Nogueira tem início no Porto  para onde nos mudámos, entretanto. Demoramos, no máximo, duas horas e é porque fazemos uma pausa para um café, na estação de serviço da Mealhada.
À porta da casa azul, em Nogueira, já não há ninguém para nos dar as boas-vindas... fica a memória doce dos avós e da tia que continuarão em nós... sempre. 

Fevereiro, 2019
Idanha-a-Nova

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Solidariedade*





O dia 6 de Agosto é internacionalmente dedicado à Solidariedade (o dia de aniversário do Tio Zé Alberto - o benjamim dos Nunes Pereira; aproveito para o felicitar).
Ciente das minhas limitações, questiono-me amiúde acerca do mundo que me rodeia e em que vivo, acerca dos seres humanos com quem me cruzo e com quem interajo e me relaciono de modo mais ou menos próximo.
Apesar da fragilidade do que vou publicando, e admitindo que poderia aprofundar mais, acredito e confio que a partilha de determinadas ideias e até mesmo anseios pode suscitar, pelo menos, alguma reflexão por parte dos leitores. Por conseguinte arrisco no tema da solidariedade.
Comecei por perguntar a diversas pessoas o que compreendem por solidariedade e se se consideram pessoas solidárias. As respostas foram várias, o que sugere um entendimento diferenciado do conceito. Não obstante, todas detinham um ponto em comum: a ideia de partilha.
Segundo um dicionário, a solidariedade é o sentimento que leva a prestar auxílio a alguém; é a responsabilidade recíproca entre os elementos de um mesmo grupo (social, profissional, institucional ou de uma comunidade); é a adesão ou apoio a uma causa, a um movimento ou princípio; pode ser também o sentimento de partilha do sofrimento alheio.
De acordo com outro dicionário, a solidariedade é um acto de bondade com o próximo ou um sentimento, uma união de simpatias, interesses ou propósitos entre os membros de um grupo; é a cooperação mútua entre duas ou mais pessoas; é a interdependência entre seres...
Quanto aos sinónimos, entre outros encontram-se os seguintes: ajuda, amparo, apoio, companheirismo, interdependência.
Cooperação, interdependência, partilha, reciprocidade - elementos inerentes à ideia de solidariedade.
Quando agimos e vivemos em cooperação, estamos atentos às necessidades dos outros. Nesse agir, é mais do que frequente que recebamos ajuda alheia para alcançar os nossos próprios intentos. Mais do que isso, é usual que, em situações de competitividade, a cooperação seja fundamental para o melhor cumprimento de objectivos mútuos, ainda que pessoas ou empresas ou instituições ou clubes, etc., sejam concorrentes entre si.
A interdependência pressupõe que estamos todos dependentes uns dos outros. Por mais independentes que aparentemente sejamos, é indubitável que sozinhos (quase) nada possamos fazer, que sozinhos (quase) nada possamos ser. Sendo certo que as circunstâncias em que nos encontramos em cada instante decorrem do contributo de muito mais pessoas (e instituições) do que aquelas que conhecemos. Motivo pelo qual, aliado ao conceito de solidariedade, está, inevitavelmente, o sentimento de gratidão. Pelo menos para mim.
Adicionalmente, não há como descartar o facto de sermos todos, sem excepção, seres vivos da mesma Natureza. Cada ser vivo tem o seu papel e função no ecossistema do qual faz parte, influenciando e sendo influenciado por outros seres vivos. E cada ecossistema interage no seu todo com todos os outros ecossistemas, de forma mais ou menos visível, mais ou menos intensamente. As repercussões são incalculáveis, são intangíveis. Depreende-se ‘apenas’ que as vidas estão todas ligadas, que estamos todos ligados, que dependemos todos, sem excepção, uns dos outros.
A reciprocidade surge, assim, de forma natural, como natural poderia ser partilhar todos os bens materiais e imateriais que nos estão disponíveis. Sim, disponíveis hoje, mas não necessariamente amanhã. Parecem ser ‘nossos’ hoje, mas a posse, não só é relativa, como momentânea e, com frequência, até aparente.
É neste contexto que a solidariedade pode ser vivida de forma contínua, sem pensar, sem hesitar. Basta que estejamos um pouco atentos para, em momento algum, nos esquecermos que se alguém necessita de ajuda, esse mesmo alguém poderíamos ser nós próprios. E se alguém está a passar por uma situação difícil, é possível que também nós ou uma pessoa que nos seja muito querida venha a passar por algo semelhante. E mesmo que tal, aparentemente, seja totalmente improvável, que importância tem isso?
Relevante é o facto de alguém estar a precisar de ajuda e, estando nós mais ou menos próximos, com mais ou menos capacidade para intervir, tenhamos pelo menos o cuidado de olhar para a pessoa de forma compassiva, de forma empática.
Por vezes, para ser solidário basta olhar, sem desviar o rosto, sem desviar a atenção. Basta reconhecer que o outro é um prolongamento de nós próprios... E isso, sem dúvida, faz toda a diferença!


*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Amigo*





 







Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e canções.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este inútil e velho desejo de vencer.
Bebe do meu cântaro se tens sede.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.
                               Amigo,
se tens fome come do meu pão.

Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verás na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelos muros direitos
- como o meu coração - sempre buscando altura.

Sorriste - amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares,
e toda eu ta dou... menos aquela lembrança...

... Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...

A 12 de Julho de 1904, Chile era o país onde nascia o grande Poeta do amor – Pablo Neruda.
Vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1971, a poesia do chileno canta o Amor de uma forma extraordinária. Mas Neruda também exaltou a Amizade; exemplo disso é o poema ‘Amigo’ – a minha escolha para celebrar a amizade, com o dia 20 dedicado ao Amigo.
                  Todos aqueles que têm bons amigos sabem e sentem que a amizade é, provavelmente, a ligação mais forte, duradoura, segura, diria mesmo mais tranquilizadora, que se pode viver.
                  Viver – a palavra não é aleatória. A Amizade vive-se, cultiva-se, fermenta-se, rega-se, alimenta-se... Mas mesmo que se passe uma eternidade sem que nenhum dos verbos seja colocado em acção, um bom amigo é sempre um bom amigo. Está lá, está ali, está aqui, está em nós. Baste que ele acene e vamos. Baste que o chamemos e ele acorre.
                  O amigo – e aqui a palavra é sem género ou sexo – é sempre um Amigo.

                  Neste mês de Julho vale a pena evocar (novamente) Nelson Mandela. No dia 18 comemora-se o centenário do seu nascimento. Um século de histórias, um século de lutas pelos direitos humanos. Um século de vidas perdidas e muitas vidas ganhas. Um século de coragem – disso não restam dúvidas.
                  O Homem que se desenhou, projectou e concretizou para um país mais justo e tolerante.
                  Invocar determinadas pessoas é lembrar que a sua história, dedicação e caminho não terminam com a sua partida. De facto, o modo como outros apartheids surgem e crescem (!!??) demonstram como a humanidade ainda tem tanto a fazer, tem tanto a aprender, no que à tolerância e solidariedade concerne.
                  Creio que essa aprendizagem e evolução é muito mais simples do que aparenta ser. Bastaria que aqueles que constroem muros e barreiras se colocassem um instante (eterno), que fosse, no lugar daqueles que sofrem as consequências desses mesmos muros e barreiras. Mesmo que seja um cliché...



*Pablo Neruda, in "Crepusculário"
Tradução de Rui Lage

PS: Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro