... ao quinto dia nas montanhas mais altas...
... do mundo.
Há precisamente um ano cumpria um dos sonhos da minha vida: realizar
uma caminhada nos Himalaias. Optei
pelo Circuito do Annapurna. Caminhei durante dezassete dias de mochila às
costas, sempre apoiada por um cajado. Esta prótese, assim o integrei ao longo do caminho, em particular
nas subidas, fez parte do meu corpo até ao fim. Tal presente foi-me concedido logo na primeira hora de marcha, depois de atravessar a primeira de muitas pontes suspensas que ligam as margens dos rios e ribeiros
do Nepal.
É sobre a travessia de uma dessas pontes suspensas que este texto
se detém.
Nem todas as pontes me inspiravam confiança. Pelo contrário, houve
uma ou outra ponte suspensa, cuja vulnerabilidade (por mim percepcionada...) me
terá provocado certas indagações: “Que faço eu aqui? Quero mesmo atravessar
esta ponte? Será que vale a pena chegar ao outro lado, e a que custo? Ou ainda,
e talvez ainda mais séria questão, será que conseguirei chegar ao outro lado,
sã e salva?”
Arrisco a impressão de estar a exagerar. Não obstante, quando me
defrontei com mais uma ponte suspensa, coberta por um manto de neve virgem, a
três mil e quatrocentos metros de altitude, pouco depois das oito da manhã,
também o meu olhar se suspendeu durante um lapso de tempo – o suficiente para
eternizar aquele instante. A brancura ofuscante inebriou-me e ‘obrigou-me’ a
parar. O sol ia alto e, naquela manhã fulgurante, os óculos escuros de lentes
azuladas eram obrigatórios.
O receio não era sentimento que me assaltasse na quinta manhã do percurso
dos Annapurnas. O coração batia com um ritmo acelerado – por dois motivos. Um
deles, fisiológico. Aquela altitude, e em sentido ascendente, impõe respeito a
quem, como eu, vive ao nível do mar. A cadência que se impunha era em lentidão.
Além disso, havia a mochila, ainda que nessa manhã me parecesse
substancialmente mais leve. Os cerca de doze quilos com que iniciara o trajecto
mantinham-se, mas o corpo adaptava-se rapidamente. Mas a pressa não era
desejável. De todo!
Um dos objectivos do empreendimento a que me propusera era a
contemplação. Como tal, o estado em que me procurava manter era o de
receptividade. Só desse modo me poderia conectar com a Natureza e assim
deslumbrar-me com o caminho, com toda a envolvência ... extraordinária. Afinal,
caminhar pela montanha, seja qual for a montanha, pela manhã e em silêncio é
uma experiência arrebatadora.
Arrebatada – como me senti quando me deparei com essa primeira
ponte suspensa, ao quinto dia do Circuito. Não é estranho, por isso, que, além dos efeitos fisiológicos da altitude, o meu coração tivesse entrado em
arritmia por motivos emocionais, admito. Observava as sensações que o êxtase me
provocava. Os pêlos eriçaram-se instantaneamente, qual pele de galinha. O
sorriso era do tamanho dos picos que me rodeavam. Os joelhos tremelicavam e o
cajado confirmava a sua valia com respeito.
Como nevara
durante toda a noite, além das árvores cobertas de neve, que se balançavam
a cada raio de sol mais forte, libertando-se assim de algum peso, também a
ponte me aguardava com um tapete macio e imaculado. Era a primeira a chegar
ali. Os olhos emudeceram-se perante a brancura e beleza inefáveis.
O deslumbramento começara logo pela manhã, mesmo antes de sair de
Upper Pisang – o lugarejo com meia dúzia de alojamentos para caminheiros,
aventureiros, trekkers, hikers... ‘himalaianos’,
onde me hospedara no dia anterior. Aí chegara exaurida, no fim da jornada do
quarto dia de caminhada.
Chovera todo o dia, transformando uma caminhada lenta num
exercício físico tenaz. Mais de vinte quilómetros calcorreados sob chuva fraca,
é certo, mas a temperatura não convidara à contemplação. A satisfação era,
mesmo assim, real, tendo aumentado ao entrar no local onde me abrigaria nessa
noite. A recepção à minha chegada marcou-se pela simpatia quer dos anfitriões,
quer dos hóspedes, já aquecidos e bem acomodados.
Depois de um duche quente, juntei-me ao grupo sentado em redor de
uma salamandra que ardia com bosta de vaca. A temperatura continuou a aumentar até
ao jantar. As experiências vividas de quem se propõe a este tipo de aventura
abarcam diversos sentidos. Nessa noite, houve oportunidade para degustar o
vinho local: raksi.
Só não expeli o líquido nepalês por delicadeza. Mais do que isso,
atrevi-me a beber mais um nico. O odor estava muito próximo do álcool etílico. Era
demais para mim. Ofereci o meu copo a dois jovens caminhantes que, como eu, se
deleitavam com o calor reconfortante que emanava da salamandra. O australiano e
o norte-americano aceitaram de bom grado a minha partilha.
Era uma noite cosmopolita. Aém deles, um casal de belgas e
outro norte-americano. O elemento feminino chamava-se, nada mais nada menos que:
Ana Pereira.
A
manhã do dia seguinte começou em grande risota. Quando finalmente nos
apresentámos, eu e a tal rapariga californiana, com pais portugueses.
Nessa manhã, ao despertar, a neve que cobria a pousada e o solo e tudo em redor, era um
presente maravilhoso. Esfregávamos os olhos, beliscávamos os braços para nos
certificarmos que, sim senhor, estávamos acordados. O cenário era admirável. O
céu ia ficando mais azul, à medida que o sol ia subindo, e os picos todos
brancos despertavam as crianças remanescentes de todos os hóspedes que subiam
ao terraço para se deslumbrarem. Pressentia-se gratidão nos sorrisos e nos “Uaus”
sonoros e partilhados.
Saíra de Upper Pisang totalmente rendida e, naquele momento, a
rendição continuava a ser o meu estado de alerta... caminhava numa
floresta com aroma a Natal. Os pinheiros de forma cónica cobertos de neve eram
os elementos que excitavam a imaginação e as memórias por viver.
Recordo a
batida do coração, amenizada pelas botas sobre a ponte. Crâche, crâche, crâche. O pé direito, depois o outro, e de novo o
direito, devagar, muito devagar e mais crâche,
crâche... uma mão agarrava o vão da ponte e a outra o bastão de madeira. Ou
talvez tenha pendurado o cajado, para melhor me segurar nessa ponte suspensa,
com centenas de metros de vazio até ao rio... muito lá em baixo.
As vertigens
são uma sensação que bem aprecio. A ansiedade era devida à remota probabilidade
da ponte se desmoronar... Como se depreende, tal não sucedeu.
Quando
alcancei a outra margem, olhei para trás. Uau! Os pés marcados na neve, na
ponte. Estava tudo bem. Podia prosseguir em modo contemplativo. Escutando uma
ou outra ave mais ousada. Continuando com os sentidos vigilantes. De olhos bem
abertos, de pés bem apoiados, um passo, e a seguir outro... até ao pico
seguinte.
A Natureza é frágil, caminha com gentileza – lembrava a todo o momento, um
aviso que se lia em placas ao longo do trilho e que guardo em mim.
A Natureza é
frágil, cuidemos de nós com gentileza.
Março, 2019
* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro
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