... De Lisboa à terra
“Vamos passar a Páscoa à terra”; “Vamos para a
terra nas férias de Verão”. Era deste modo que nos referíamos a Nogueira do
Cravo, quando era miúda. “Vou à terra”. Não dizíamos: “Vou a Nogueira”. Isso
era a resposta para: “Onde é a tua terra?”
Não era propriamente a minha
terra, mas sim a do pai –
um pormenor de somenos importância. Era, e
continua a ser, a nossa terra. Nogueira do Cravo.
Até aos 12 anos, a origem da
nossa viagem à nossa terra era Lisboa. Mais concretamente Olivais Sul ou
Portela de Sacavém.
O fiat 124 verde dos pais e o mini azul escuro do tio Zé Alberto e da
tia Alexandrina eram os bólides de serviço. Demorávamos nada mais, nada menos
que cinco horas a percorrer o trajecto! Sim, cinco horas de curva, contracurva
e mais curvas, até que as crianças deixavam de aguentar o pequeno-almoço no
estômago. A bola de berlim sem creme e o leite achocolatado da ucal nem sempre
pediam licença e eram expelidos de uma assentada pela boca fora.
Quando tinham o discernimento
suficiente, as crianças pediam para parar e a bola mastigada e o leite
fermentado no estômago ficavam na berma da estrada.
Era preciso ter sorte. Raramente
os miúdos conseguiam terminar o périplo
sem chorar, sem vomitar, sem se zangarem, uns com os outros (até 1982
– ano em
que nasceu a Ana Cristina - os miúdos incluíam o Miguel, meu irmão e o Pedro, o
primogénito do tio Zé Alberto, para além da narradora). Não era bem zangar. Era mais uma espécie de
jogo de resistência, ou de poder sobre quem tinha mais capacidade de
perseverança. Para os pais, pura e simplesmente: teimosia.
As viagens começavam sempre com
boa disposição. No carrito verde de quatro portas, era a janela do condutor que
ia quase sempre aberta. No mini também era essa a janela que se abria. Até
porque as janelas de trás tinham uma pseudo-abertura, com uma mola que só os
adultos tinham força para abrir.
O que se vai seguir, actualmente seria punido por lei. E se tal acontecesse hoje, é quase certo que daria azo a que a protecção de menores ousasse retirar os filhos dos meus pais e dos tios da sua guarda.
O que se vai seguir, actualmente seria punido por lei. E se tal acontecesse hoje, é quase certo que daria azo a que a protecção de menores ousasse retirar os filhos dos meus pais e dos tios da sua guarda.
O meu pai fumou até aos quarenta
e poucos anos. O que significa que nessas viagens de cinco horas, o meu pai,
que era menino para fumar dois maços de tabaco por dia, não parava na primeira
curva para fumar o seu SG filtro
–
aquele de pacote azul escuro. Era dentro do
carro que matava a traça, partilhando com generosidade o seu prazer.
Outra coisa que não choca os
pais dos meus sobrinhos é o facto de também eles terem viajado de joelhos nos
assentos traseiros, virados para trás e a observar e a fazer caretas aos
perseguidores mais ou menos velozes.
O cinto não era obrigatório e as
cadeirinhas, se existiam, era para os muito ricos e, mesmo assim, tenho sérias
dúvidas.
Nessa posição, de costas
voltadas para os pais (sorte deles, se assim nos entretínhamos), começávamos
entusiasticamente um dos jogos favoritos de quem fazia viagens de carro: cada
um escolhia uma marca de carro e/ou cor. Eu e o meu mano. Ganhava aquele que
contava mais –
durante o tempo que uma criança de cinco ou oito anos pode
aguentar
–
renault's 5, 4L ou carochas. Quer dizer, não se ganhava assim. Fácil.
Não. Era necessário ser persistente, perseverante (ou teimosos...), e fazer
ver, provar e comprovar a sua vitória. As chapadas confirmavam quem teria
contabilizado mais carros verdes.
Regra geral, o verde era a cor
favorita. Nessa época (antes de 1980 e até 1984, 85, mais coisa menos coisa),
havia motivos para nos orgulharmos sem pruridos de gostar de usar o verde
intercalado com riscas brancas. Na horizontal, note-se. Há que dizer que praticávamos ginástica em Alvalade. Local sagrado, nesse tempo... pelo menos para a
nossa família.
Mas essa é outra viagem que
agora não tem interesse. Até porque escrevo este texto no dia seguinte à
derrota com os vizinhos vermelhos da segunda circular: 2-4!! Fico por aqui
neste assunto triste como uma noite de Inverno, de céu nublado, ou mesmo
nevoeiro e de temperaturas abaixo de zero.
Quando a temperatura era baixa,
a chauffage era ligada ao máximo, no fiat
124 verde. O carro ficava ainda mais quentinho com o expelido do SG filtro
do pai, que abria um pouco mais o seu vidro para lançar a beata borda fora.
Pergunto-me se alguns dos incêndios
das décadas de 1970 e 80 teriam sido provocados pelo Amadeu e o Zé Alberto. Mas
nesse tempo não era proibido deitar lixo pela janela. Nós até fazíamos várias
pausas, por isso, o pai devia aproveitar para despejar o cinzeiro do fiat.
Sair do carro do tio Zé Alberto
era quase outra aventura. Viajar no banco traseiro do mini azul do tio, da
década de 1970, não se compara a viajar no Mini
Cooper de hoje. Era necessário ser lesto e muito ágil, para sair a tempo de
salvar os estofos dos fluidos das entranhas, prestes a saltar pela boca fora.
Repito-me. Eu sei. Mas quem, como nós, vinha dos Olivais até Nogueira, sabe bem que a partir de Condeixa ou Cantanhede – não sei precisar – as curvas eram uma contra a outra, em modo contínuo. Não havia estômago que aguentasse tal sinuosidade. Já para não dizer que contar as curvas era outro jogo; com maus resultados, como se depreende. Era isso ou acabar com a paciência dos adultos com a pergunta em modo repetir: “ainda falta muito?”
Repito-me. Eu sei. Mas quem, como nós, vinha dos Olivais até Nogueira, sabe bem que a partir de Condeixa ou Cantanhede – não sei precisar – as curvas eram uma contra a outra, em modo contínuo. Não havia estômago que aguentasse tal sinuosidade. Já para não dizer que contar as curvas era outro jogo; com maus resultados, como se depreende. Era isso ou acabar com a paciência dos adultos com a pergunta em modo repetir: “ainda falta muito?”
“Está quase!” E era só. Não havia mais nada. Os
pais não podiam dizer: “vê mais um filme”, ou “ultrapassa mais um nível desse
jogo tão excitante”, ou “entretém-te com o teu pseudo-amigo youtuber”,
ou “faz mais um scroll no instagram”. Nada disso! Eventualmente,
as opções eram outras: cassetes TDK gravadas com antecedência, a fim de gerar
alguma cantoria pelo caminho.
Sobre esse tema, muito poderia
ser discutido, mas os gostos dos meus pais, como quase todos, não se discutem.
O relevante era o potencial do Marco Paulo para nos distrair com os seus dois
amores.
Na pior das hipóteses para os
miúdos e a mãe, na melhor para o pai, era o Sporting jogar durante a viagem. O
relato era inevitável. Deve ser por isso que às vezes dou por mim a mudar
para TSF quando tal acontece...
Como já mencionado, nessa época
até nem era mau ser "lagarto". Não era raro chegarmos a Nogueira a
cantar olé, olé, Sporting olé, com a camisola a tresandar a vómito seco. E
muito felizes por ver a Avó Altina e o Avó Alfredo. E mais um companheiro de
brincadeiras, o primo Zé Fernando, que viveu com os avós até aos 12 anos. A tia
Lurdes era quem avisava, vinha a correr à porta, mal escutava os motores do fiat 124 e do mini azul a chegarem ao
Largo de Santo António.
Hoje, a viagem para Nogueira tem
início no Porto –
para onde nos mudámos, entretanto. Demoramos, no máximo, duas
horas e é porque fazemos uma pausa para um café, na estação de serviço da
Mealhada.
À porta da casa azul, em
Nogueira, já não há ninguém para nos dar as boas-vindas... fica a memória doce
dos avós e da tia que continuarão em nós... sempre.
Fevereiro,
2019
Idanha-a-Nova
*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro
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