Fragmentos de viagens... *



... De Lisboa à terra


“Vamos passar a Páscoa à terra”; “Vamos para a terra nas férias de Verão”. Era deste modo que nos referíamos a Nogueira do Cravo, quando era miúda. “Vou à terra”. Não dizíamos: “Vou a Nogueira”. Isso era a resposta para: “Onde é a tua terra?”
Não era propriamente a minha terra, mas sim a do pai um pormenor de somenos importância. Era, e continua a ser, a nossa terra. Nogueira do Cravo.
Até aos 12 anos, a origem da nossa viagem à nossa terra era Lisboa. Mais concretamente Olivais Sul ou Portela de Sacavém.
O fiat 124 verde dos pais e o mini azul escuro do tio Zé Alberto e da tia Alexandrina eram os bólides de serviço. Demorávamos nada mais, nada menos que cinco horas a percorrer o trajecto! Sim, cinco horas de curva, contracurva e mais curvas, até que as crianças deixavam de aguentar o pequeno-almoço no estômago. A bola de berlim sem creme e o leite achocolatado da ucal nem sempre pediam licença e eram expelidos de uma assentada pela boca fora.
Quando tinham o discernimento suficiente, as crianças pediam para parar e a bola mastigada e o leite fermentado no estômago ficavam na berma da estrada.
Era preciso ter sorte. Raramente os miúdos conseguiam terminar o périplo sem chorar, sem vomitar, sem se zangarem, uns com os outros (até 1982 ano em que nasceu a Ana Cristina - os miúdos incluíam o Miguel, meu irmão e o Pedro, o primogénito do tio Zé Alberto, para além da narradora).  Não era bem zangar. Era mais uma espécie de jogo de resistência, ou de poder sobre quem tinha mais capacidade de perseverança. Para os pais, pura e simplesmente: teimosia.
As viagens começavam sempre com boa disposição. No carrito verde de quatro portas, era a janela do condutor que ia quase sempre aberta. No mini também era essa a janela que se abria. Até porque as janelas de trás tinham uma pseudo-abertura, com uma mola que só os adultos tinham força para abrir.  
O que se vai seguir, actualmente seria punido por lei. E se tal acontecesse hoje, é quase certo que daria azo a que a protecção de menores ousasse retirar os filhos dos meus pais e dos tios da sua guarda.
O meu pai fumou até aos quarenta e poucos anos. O que significa que nessas viagens de cinco horas, o meu pai, que era menino para fumar dois maços de tabaco por dia, não parava na primeira curva para fumar o seu SG filtro  aquele de pacote azul escuro. Era dentro do carro que matava a traça, partilhando com generosidade o seu prazer.
Outra coisa que não choca os pais dos meus sobrinhos é o facto de também eles terem viajado de joelhos nos assentos traseiros, virados para trás e a observar e a fazer caretas aos perseguidores mais ou menos velozes.
O cinto não era obrigatório e as cadeirinhas, se existiam, era para os muito ricos e, mesmo assim, tenho sérias dúvidas.
Nessa posição, de costas voltadas para os pais (sorte deles, se assim nos entretínhamos), começávamos entusiasticamente um dos jogos favoritos de quem fazia viagens de carro: cada um escolhia uma marca de carro e/ou cor. Eu e o meu mano. Ganhava aquele que contava mais durante o tempo que uma criança de cinco ou oito anos pode aguentar renault's 5, 4L ou carochas. Quer dizer, não se ganhava assim. Fácil. Não. Era necessário ser persistente, perseverante (ou teimosos...), e fazer ver, provar e comprovar a sua vitória. As chapadas confirmavam quem teria contabilizado mais carros verdes.
Regra geral, o verde era a cor favorita. Nessa época (antes de 1980 e até 1984, 85, mais coisa menos coisa), havia motivos para nos orgulharmos sem pruridos de gostar de usar o verde intercalado com riscas brancas. Na horizontal, note-se. Há que dizer que praticávamos ginástica em Alvalade. Local sagrado, nesse tempo... pelo menos para a nossa família.
Mas essa é outra viagem que agora não tem interesse. Até porque escrevo este texto no dia seguinte à derrota com os vizinhos vermelhos da segunda circular: 2-4!! Fico por aqui neste assunto triste como uma noite de Inverno, de céu nublado, ou mesmo nevoeiro e de temperaturas abaixo de zero.
Quando a temperatura era baixa, a chauffage era ligada ao máximo, no fiat 124 verde. O carro ficava ainda mais quentinho com o expelido do SG filtro do pai, que abria um pouco mais o seu vidro para lançar a beata borda fora.
Pergunto-me se alguns dos incêndios das décadas de 1970 e 80 teriam sido provocados pelo Amadeu e o Zé Alberto. Mas nesse tempo não era proibido deitar lixo pela janela. Nós até fazíamos várias pausas, por isso, o pai devia aproveitar para despejar o cinzeiro do fiat.
Sair do carro do tio Zé Alberto era quase outra aventura. Viajar no banco traseiro do mini azul do tio, da década de 1970, não se compara a viajar no Mini Cooper de hoje. Era necessário ser lesto e muito ágil, para sair a tempo de salvar os estofos dos fluidos das entranhas, prestes a saltar pela boca fora. 
Repito-me. Eu sei. Mas quem, como nós, vinha dos Olivais até Nogueira, sabe bem que a partir de Condeixa ou Cantanhede  não sei precisar as curvas eram uma contra a outra, em modo contínuo. Não havia estômago que aguentasse tal sinuosidade. Já para não dizer que contar as curvas era outro jogo; com maus resultados, como se depreende. Era isso ou acabar com a paciência dos adultos com a pergunta em modo repetir: “ainda falta muito?” 
“Está quase!” E era só. Não havia mais nada. Os pais não podiam dizer: “vê mais um filme”, ou “ultrapassa mais um nível desse jogo tão excitante”, ou “entretém-te com o teu pseudo-amigo youtuber”, ou “faz mais um scroll no instagram”. Nada disso! Eventualmente, as opções eram outras: cassetes TDK gravadas com antecedência, a fim de gerar alguma cantoria pelo caminho.
Sobre esse tema, muito poderia ser discutido, mas os gostos dos meus pais, como quase todos, não se discutem. O relevante era o potencial do Marco Paulo para nos distrair com os seus dois amores.
Na pior das hipóteses para os miúdos e a mãe, na melhor para o pai, era o Sporting jogar durante a viagem. O relato era inevitável. Deve ser por isso que às vezes dou por mim a mudar para TSF quando tal acontece...
Como já mencionado, nessa época até nem era mau ser "lagarto". Não era raro chegarmos a Nogueira a cantar olé, olé, Sporting olé, com a camisola a tresandar a vómito seco. E muito felizes por ver a Avó Altina e o Avó Alfredo. E mais um companheiro de brincadeiras, o primo Zé Fernando, que viveu com os avós até aos 12 anos. A tia Lurdes era quem avisava, vinha a correr à porta, mal escutava os motores do fiat 124 e do mini azul a chegarem ao Largo de Santo António.

Hoje, a viagem para Nogueira tem início no Porto  para onde nos mudámos, entretanto. Demoramos, no máximo, duas horas e é porque fazemos uma pausa para um café, na estação de serviço da Mealhada.
À porta da casa azul, em Nogueira, já não há ninguém para nos dar as boas-vindas... fica a memória doce dos avós e da tia que continuarão em nós... sempre. 

Fevereiro, 2019
Idanha-a-Nova

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Solidariedade*





O dia 6 de Agosto é internacionalmente dedicado à Solidariedade (o dia de aniversário do Tio Zé Alberto - o benjamim dos Nunes Pereira; aproveito para o felicitar).
Ciente das minhas limitações, questiono-me amiúde acerca do mundo que me rodeia e em que vivo, acerca dos seres humanos com quem me cruzo e com quem interajo e me relaciono de modo mais ou menos próximo.
Apesar da fragilidade do que vou publicando, e admitindo que poderia aprofundar mais, acredito e confio que a partilha de determinadas ideias e até mesmo anseios pode suscitar, pelo menos, alguma reflexão por parte dos leitores. Por conseguinte arrisco no tema da solidariedade.
Comecei por perguntar a diversas pessoas o que compreendem por solidariedade e se se consideram pessoas solidárias. As respostas foram várias, o que sugere um entendimento diferenciado do conceito. Não obstante, todas detinham um ponto em comum: a ideia de partilha.
Segundo um dicionário, a solidariedade é o sentimento que leva a prestar auxílio a alguém; é a responsabilidade recíproca entre os elementos de um mesmo grupo (social, profissional, institucional ou de uma comunidade); é a adesão ou apoio a uma causa, a um movimento ou princípio; pode ser também o sentimento de partilha do sofrimento alheio.
De acordo com outro dicionário, a solidariedade é um acto de bondade com o próximo ou um sentimento, uma união de simpatias, interesses ou propósitos entre os membros de um grupo; é a cooperação mútua entre duas ou mais pessoas; é a interdependência entre seres...
Quanto aos sinónimos, entre outros encontram-se os seguintes: ajuda, amparo, apoio, companheirismo, interdependência.
Cooperação, interdependência, partilha, reciprocidade - elementos inerentes à ideia de solidariedade.
Quando agimos e vivemos em cooperação, estamos atentos às necessidades dos outros. Nesse agir, é mais do que frequente que recebamos ajuda alheia para alcançar os nossos próprios intentos. Mais do que isso, é usual que, em situações de competitividade, a cooperação seja fundamental para o melhor cumprimento de objectivos mútuos, ainda que pessoas ou empresas ou instituições ou clubes, etc., sejam concorrentes entre si.
A interdependência pressupõe que estamos todos dependentes uns dos outros. Por mais independentes que aparentemente sejamos, é indubitável que sozinhos (quase) nada possamos fazer, que sozinhos (quase) nada possamos ser. Sendo certo que as circunstâncias em que nos encontramos em cada instante decorrem do contributo de muito mais pessoas (e instituições) do que aquelas que conhecemos. Motivo pelo qual, aliado ao conceito de solidariedade, está, inevitavelmente, o sentimento de gratidão. Pelo menos para mim.
Adicionalmente, não há como descartar o facto de sermos todos, sem excepção, seres vivos da mesma Natureza. Cada ser vivo tem o seu papel e função no ecossistema do qual faz parte, influenciando e sendo influenciado por outros seres vivos. E cada ecossistema interage no seu todo com todos os outros ecossistemas, de forma mais ou menos visível, mais ou menos intensamente. As repercussões são incalculáveis, são intangíveis. Depreende-se ‘apenas’ que as vidas estão todas ligadas, que estamos todos ligados, que dependemos todos, sem excepção, uns dos outros.
A reciprocidade surge, assim, de forma natural, como natural poderia ser partilhar todos os bens materiais e imateriais que nos estão disponíveis. Sim, disponíveis hoje, mas não necessariamente amanhã. Parecem ser ‘nossos’ hoje, mas a posse, não só é relativa, como momentânea e, com frequência, até aparente.
É neste contexto que a solidariedade pode ser vivida de forma contínua, sem pensar, sem hesitar. Basta que estejamos um pouco atentos para, em momento algum, nos esquecermos que se alguém necessita de ajuda, esse mesmo alguém poderíamos ser nós próprios. E se alguém está a passar por uma situação difícil, é possível que também nós ou uma pessoa que nos seja muito querida venha a passar por algo semelhante. E mesmo que tal, aparentemente, seja totalmente improvável, que importância tem isso?
Relevante é o facto de alguém estar a precisar de ajuda e, estando nós mais ou menos próximos, com mais ou menos capacidade para intervir, tenhamos pelo menos o cuidado de olhar para a pessoa de forma compassiva, de forma empática.
Por vezes, para ser solidário basta olhar, sem desviar o rosto, sem desviar a atenção. Basta reconhecer que o outro é um prolongamento de nós próprios... E isso, sem dúvida, faz toda a diferença!


*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Amigo*





 







Amigo, toma para ti o que quiseres,
passeia o teu olhar pelos meus recantos,
e se assim o desejas, dou-te a alma inteira,
com suas brancas avenidas e canções.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este inútil e velho desejo de vencer.
Bebe do meu cântaro se tens sede.

Amigo - faz com que na tarde se desvaneça
este desejo de que todas as roseiras
me pertençam.
                               Amigo,
se tens fome come do meu pão.

Tudo, amigo, o fiz para ti. Tudo isto
que sem olhares verás na minha casa vazia:
tudo isto que sobe pelos muros direitos
- como o meu coração - sempre buscando altura.

Sorriste - amigo. Que importa! Ninguém sabe
entregar nas mãos o que se esconde dentro,
mas eu dou-te a alma, ânfora de suaves néctares,
e toda eu ta dou... menos aquela lembrança...

... Que na minha herdade vazia aquele amor perdido
é uma rosa branca que se abre em silêncio...

A 12 de Julho de 1904, Chile era o país onde nascia o grande Poeta do amor – Pablo Neruda.
Vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1971, a poesia do chileno canta o Amor de uma forma extraordinária. Mas Neruda também exaltou a Amizade; exemplo disso é o poema ‘Amigo’ – a minha escolha para celebrar a amizade, com o dia 20 dedicado ao Amigo.
                  Todos aqueles que têm bons amigos sabem e sentem que a amizade é, provavelmente, a ligação mais forte, duradoura, segura, diria mesmo mais tranquilizadora, que se pode viver.
                  Viver – a palavra não é aleatória. A Amizade vive-se, cultiva-se, fermenta-se, rega-se, alimenta-se... Mas mesmo que se passe uma eternidade sem que nenhum dos verbos seja colocado em acção, um bom amigo é sempre um bom amigo. Está lá, está ali, está aqui, está em nós. Baste que ele acene e vamos. Baste que o chamemos e ele acorre.
                  O amigo – e aqui a palavra é sem género ou sexo – é sempre um Amigo.

                  Neste mês de Julho vale a pena evocar (novamente) Nelson Mandela. No dia 18 comemora-se o centenário do seu nascimento. Um século de histórias, um século de lutas pelos direitos humanos. Um século de vidas perdidas e muitas vidas ganhas. Um século de coragem – disso não restam dúvidas.
                  O Homem que se desenhou, projectou e concretizou para um país mais justo e tolerante.
                  Invocar determinadas pessoas é lembrar que a sua história, dedicação e caminho não terminam com a sua partida. De facto, o modo como outros apartheids surgem e crescem (!!??) demonstram como a humanidade ainda tem tanto a fazer, tem tanto a aprender, no que à tolerância e solidariedade concerne.
                  Creio que essa aprendizagem e evolução é muito mais simples do que aparenta ser. Bastaria que aqueles que constroem muros e barreiras se colocassem um instante (eterno), que fosse, no lugar daqueles que sofrem as consequências desses mesmos muros e barreiras. Mesmo que seja um cliché...



*Pablo Neruda, in "Crepusculário"
Tradução de Rui Lage

PS: Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Let yourself go by the child you once were*




Let yourself go by the child you once were. An advice from the king Dom Duarte, that I read in a José Saramago’s book.
June starts celebrating the World Children’s day.
If I let myself go by the child I once was, and if I surrender myself to the child that still lives within me, I’m sure that I’ll be better prepared to reverence myself to the children that surround me.
            That’s the meaning of the June first. To reminds us that it is fundamental to unconditionally love each little boy and little girl. Be him or her more or less close to us.
If I forget myself... If I forget the adult personality in which I turned to...I'll have the space to offer to the little girl that I still am and that I still want to be. If this happens, I’ll be able to play with the other children. Only then I’ll understand how to provide them the indispensable space they need, and they are entitled to. The space to be and to continue being the children they are as long as they are children.
If the children can still be children, they will be able to keep on dazzling themselves: one of the most beautiful abilities of human existence. Being amazed with a drop of rain, with a fluttering butterfly, with every rainbow, with each ray of sun touching the skin, with each bite of chocolate cake, with every leap into the unknown…
Let yourself go by the child you once were and notice and let yourself be in each moment. Don’t lose yourself with comparisons and assumptions. Only then you’ll not lose yourself in that past that no longer exists. Only this way you’ll not lose yourself in such an unpredictable future.
There’s only one thing that the child who dwells in me aspires: playing here, playing here for just another minute, just one more time, the last one, the last of the last… even if she is crying of sleep. This is just because there’s no child to whom time is understandable. In fact, there’s no child who can catch up this anthropological coordinate. It does not exist. Every single child lives at the present time. Only now exists.
Oh… I wish I could be that child who stayed there… ah… and then I take a deep breath, trying to forget all those grownups that surround me. Instead, I reach for my beloved nephew Rodi. For this three years old child there’s nothing else than this moment. Tomorrow is an enigma that he not even wants to understand. So, we run after the ball and score just one more goal. So, we run and hid behind the coach just once more. And jump the wall just once more.
Even if, from time to time, the memory trips me and shoots an image of a jump that went bad and made me break a tooth, and almost the nose. And again shoots another image of me going bleeding to the hospital. And? I was playing. And I was playing with other boys and girls in the street. And we were running and jumping and hiding and showing up running and jumping. And if I was the last one, I’d run even more and even faster and I’d touch the wall and I’d shout out loud: 1,2, 3 ana saves every one.
Till the moment that moms would notice the stars in the sky and would call those still playing in the street. Fearless of darkness. Fearless of nothing.
Children are born without fear.
Fear starts with the adults. In their fear of losing their children, adults inculcate them their own fears. And that’s when the monsters, policeman and the big bogeyman show up...
            Even today, even under a torrid sky, I must cover my feet while I sleep. Who knows if the beast underneath my bed comes and eats my feet...
Let yourself go by the child you once were and forget about yourself…

PS: To José Saramago’s memory, who died on June 18, 2010


 *To celebrate World Children’s day.

Deixa-te levar pela criança que foste...*



Deixa-te levar pela criança que foste. Um conselho de El-Rei Dom Duarte, citado por José Saramago.
Junho começa com a celebração mundial da Criança.
Se me deixar levar pela criança que fui, e me render à criança que ainda aqui vive, estarei certamente muito mais apta a reverenciar as crianças que me rodeiam.
O dia 1 de Junho é para nos lembrar isso mesmo: é fundamental amar incondicionalmente cada menino e cada menina, seja ele ou ela mais ou menos próximo ou próxima.
Se me esquecer de mim e da personalidade adulta em que me tornei, dou espaço à menina que ainda sou e quero ser. Se tal se concretizar, serei capaz de brincar com as outras crianças e, desse modo, compreender como lhes posso proporcionar, providenciar, conceder, partilhar o espaço e o tempo que necessitam, a que têm direito, que lhes é imprescindível para serem crianças e continuarem a ser crianças enquanto forem crianças. Sem terem de se lembrar como é ser criança.
Se assim for, se assim forem crianças, manterão uma das capacidades mais bonitas da existência: a capacidade de se deslumbrarem em cada instante. Deslumbrando-se com cada gota de chuva, com cada borboleta a esvoaçar, com cada arco-íris, com cada raio de sol a tocar na pele, com cada trinca numa fatia de salame de chocolate, com cada salto no desconhecido...
Deixa-te levar pela criança que foste e repara e deixa-te ficar também em cada momento, sem te perderes com comparações e suposições. Só assim não te perderás num passado que não existe mais, tão-pouco num futuro impossível de prever.
A criança que em mim habita só deseja uma coisa: brincar aqui, só mais um minuto, só mais uma vez, a última, a última das últimas... nem que esteja a chorar baba e ranho de sono. Tão-somente porque em cada criança que conheço, a coordenada do tempo é-lhe difícil de alcançar, diria mesmo impossível. Não existe. Só o presente em que vive.
Ah... quem me dera ser só aquela criança que lá ficou. Ah... mas então inspiro profundamente e procuro esquecer as personalidades adultas que me rodeiam e procuro ser envolvida pelo Rodi (um dos meus amores...). Nos seus três anitos ainda subsiste só este instante. Amanhã é um enigma que nem sequer pretende entender. Por isso corremos atrás da bola e marcamos só mais um golo. Por isso corremos e escondemo-nos atrás do sofá só mais uma vez e saltamos o muro só mais uma vez.
Ainda que, de quando em quando, a memória passe uma rasteira e atire a imagem de um salto que correu um bocadinho mal e me fez partir um dente e quase o nariz e atire outra memória ainda que me levou para o hospital a jorrar sangue. E? Estava a brincar! Estava a brincar na rua com os outros meninos e meninas e saltávamos e corríamos e escondíamo-nos e aparecíamos a correr e a saltar. E se fosse a última corria ainda mais e mais depressa e tocava na parede e gritava alto e feliz: 1,2,3, ana salva todos.
Até que as mães viam as estrelas e chamavam os que ainda andavam na rua. Sem medo do escuro. Sem medo de nada.
As crianças nascem sem medo. O medo começa quando os adultos, com medo de as perderem, lhes inculcam os seus medos. E então aparecem os polícias ou os monstros ou os papões...
Ainda hoje, mesmo debaixo de um céu tórrido, tenho de dormir com os pés tapados. Sei lá se o bicho que está debaixo da cama vem e come os meus pés.
Deixa-te levar pela criança que foste e esquece-te de ti...


PS: À memória de José Saramago, que morreu no dia 18 de Junho de 2010

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro



Caminho térreo para a Índia...*

Templo Dourado, Amritsar

Escrevo à beira-rio, a ver os elefantes passarem... Em Chitwan, a cidade de onde regressarei à Índia daqui a uns dias, com intenção de visitar Dharamshala, no Estado Himachal Pradesh. Aí vive Dalai Lama, exilado do seu país, o Tibete, considerado território chinês desde 1950. A invasão da China transformou, adulterou, destruiu uma cultura, um país, em nome da sua "libertação pacífica" face ao império da Índia britânica. Invasão sobre invasão, o Tibete continua a ser um anexo chinês, cujo controlo se repercute muito além da geografia.
 
Cerimónia Kalachacra, Templo Dalai Lama, Dharamshala

Os assuntos geopolíticos não são um assunto fácil. Não obstante, quando se adentra um pouco mais por outras realidades e contextos, as influências sócio-políticas ficam mais evidentes, com implicações e repercussões não apenas sobre os destinos a conhecer, mas sobretudo nas práticas quotidianas das respectivas populações. É difícil ficar indiferente, mesmo que o tema da territorialidade e das fronteiras políticas me intimide. É com demasiada frequência que estas linhas imaginárias que os homens criam resultam em conflitos, na sua maioria armados. Conflitos apenas termináveis para os que perecem durante essas guerras.


Dada a natureza pacífica do povo tibetano, o "acordo" foi assinado, mas uma grande parte das gentes exilou-se no mencionado Estado do norte da Índia Himachal Pradesh. Arrisco, por isso, a atravessar novamente a fronteira de autocarro (o corpo ainda se lembra das quase 40 horas sobre rodas) em direcção a Déli.

Não arrisco ir à ainda mais populosa Calcutá onde, no dia 20 de Maio de 1498, terá chegado Vasco da Gama. O explorador cumpria assim o sonho de D. João II: o de descobrir o caminho marítimo para a Índia. Ainda que o rei português já não fosse vivo para celebrar a descoberta.

As incursões dos portugueses pela Índia, ao longo da História, não se ficaram por aí. Goa é um exemplo de como Portugal terá expandido o seu império à escala global. Invasão atrás de invasão, soberania sobre soberania. É difícil aceitar de braços cruzados a necessidade que certos homens sentem em dominar, controlar, subjugar tantos outros homens.

Recorro novamente à 'nossa' História para ilustrar, de forma pouco colorida, aquele que é, a meu ver, o início de uma das épocas mais negras da vida portuguesa: o estabelecimento da 'santa'(???) inquisição em Portugal. A 23 de Maio de 1536 começava oficialmente a perseguição aos 'hereges'. Mais um pretexto, creio, para alguns aumentarem o seu poder sobre muitos outros.

Corro o risco. Mas pergunto: em nome de deus? qual deus? o do cristianismo? o do islão? o do judaísmo? ou em nome dos milhares do hinduísmo? o do sikhismo ou o do janaísmo? ou em nome das pessoas que terão dado origem ao budismo, confucionismo ou taoísmo?
Serve esta enumeração para realçar a pluralidade e a diversidade, sem com isso pretender fazer sobressair ou apagar qualquer crença religiosa.

Templo Sique, Amritsar


Na génese de (quase) todas está a necessidade humana de dotar sentido à existência. Ao mesmo tempo, podemos entrever em todas elas uma base compassiva, cujos princípios são, afinal, semelhantes e coincidentes entre si na sua essência: os do amor compassivo e incondicional.

O amor infinito que a Natureza nos demonstra a cada instante, providenciando de forma amorosa e incondicional o necessário para todos os seres vivos. Estejam eles atentos. Todavia, quando um homem se põe a pensar, transforma e quantas vezes adultera aquela ideia básica de compaixão. E, sem que se dê conta, surge aqui e ali uma luta de deuses (humanos) pelo poder... em nome de outros deuses. Ah... Como pode ser triste a vitória do deus do islão sobre o deus cristão e vice-versa.

Tristezas, angústias e pessimismo à parte, em alguns países é possível observar a co-existência de diferentes crenças religiosas. O Nepal e a Índia são disso exemplo. A entrada em algumas cidades nepalesas suscita, até, certas dúvidas. É no Nepal que encontramos o hinduísmo como religião oficial, mesmo que em Lumbini existam centenas de templos dedicados a Buda. Não fosse esta a cidade-berço de Siddhartha Gautama Buda. Aqui, os templos construídos e doados por muitos países asiáticos, como a Coreia do Sul, Myanmar, Camboja, Índia, concorrem entre si, em termos de grandiosidade, e com os pequenos templos dedicados a Shiva ou a Krishna ou a outros deuses hindus.
Lumbini, Cidade berço de Buda

Esta convivência cultural estende-se aos níveis mais prosaicos da vida quotidiana. 

Ao ponto de por vezes me perguntar se estou no Nepal ou na Índia. As vestes coloridas das mulheres, os cabelos pintados de quase todas as pessoas com cabelos brancos quantas vezes ficando de cor alaranjada, pela fraca qualidade da tinta , a música, os filmes de Bollywood, a mescla culinária entre o dal bath nepalês e o curry indiano, alguns hábitos como o de mascar paan (uma semente a que se junta nicotina e outras forma de tabaco, enrolado em folhas da árvore bétele) são facilmente visíveis em Chitwan a cidade que dá acesso ao Parque Nacional com o mesmo nome.

No 'parque protegido', (ainda) se podem observar muitos animais selvagens, como o rinoceronte, veados, crocodilos ou elefantes. Quanto a estes, a maioria já não é assim tão selvagem, e o uso e abuso a que estão sujeitos para satisfazer os caprichos turísticos, sugerem muitas outras questões...



Mas as semelhanças entre os dois países, pelo menos nas proximidades fronteiriças, são de tal modo visíveis que se pode perguntar se as guerras a que assistimos fazem sentido... Sobretudo num tempo em que a globalização promove o intercâmbio de culturas, tornando ainda mais difícil encontrar diferenças de substância. Daí que me questione cada vez mais acerca da necessidade de manter as fronteiras territoriais, geopolíticas... Claro que este assunto é sensível, mas fica uma semente para reflectirmos acerca do que queremos para as gerações vindouras...

Ironicamente, a data de 23 de Maio serve para evocar a proclamação da independência a Portugal, em 1179, concedida pelo Papa Alexandre III, através da bula "Manifestis Probatum".

Também nesta data, mas já em 1977, nascia uma pessoa muito especial, por isso, sinto-me compelida a abusar deste espaço para desejar feliz aniversário ao meu querido irmão...

Para terminar e tentando fazê-lo com mais cor, o mês de Maio é, a meu ver, um mês muito propício à contemplação em todo o território 'português'. De norte a sul, as flores oferecem-se aos insectos que espalham, voando, ainda mais cor e possibilidade para germinar muitas outras vidas. Uma celebração constante, iluminada e pintada pelas vozes das aves que cantam, em modo contínuo, para quem quiser escutar.

Depende, pois, de cada um de nós reconhecer e receber a generosidade infinita da Natureza. E depende, sem dúvida de nós, humanos, estar atentos e conscientes para A proteger e preservar. Se quisermos proteger e preservar a vida... Humana. E que seja uma vida mais humana...



*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro