Deixa-te levar pela criança que foste. Um conselho
de El-Rei Dom Duarte, citado por José Saramago.
Junho começa com a celebração mundial da Criança.
Se me deixar levar pela criança que fui, e me
render à criança que ainda aqui vive, estarei certamente muito mais apta a
reverenciar as crianças que me rodeiam.
O dia 1 de Junho é para nos lembrar isso mesmo: é
fundamental amar incondicionalmente cada menino e cada menina, seja ele ou ela
mais ou menos próximo ou próxima.
Se me esquecer de mim e da personalidade adulta em
que me tornei, dou espaço à menina que ainda sou e quero ser. Se tal se
concretizar, serei capaz de brincar com as outras crianças e, desse modo,
compreender como lhes posso proporcionar, providenciar, conceder, partilhar o
espaço e o tempo que necessitam, a que têm direito, que lhes é imprescindível
para serem crianças e continuarem a ser crianças enquanto forem crianças. Sem
terem de se lembrar como é ser criança.
Se assim for, se assim forem crianças, manterão uma
das capacidades mais bonitas da existência: a capacidade de se deslumbrarem em
cada instante. Deslumbrando-se com cada gota de chuva, com cada borboleta a
esvoaçar, com cada arco-íris, com cada raio de sol a tocar na pele, com cada
trinca numa fatia de salame de chocolate, com cada salto no desconhecido...
Deixa-te levar pela criança que foste e repara e
deixa-te ficar também em cada momento, sem te perderes com comparações e
suposições. Só assim não te perderás num passado que não existe mais, tão-pouco
num futuro impossível de prever.
A criança que em mim habita só deseja uma coisa:
brincar aqui, só mais um minuto, só mais uma vez, a última, a última das
últimas... nem que esteja a chorar baba e ranho de sono. Tão-somente porque em
cada criança que conheço, a coordenada do tempo é-lhe difícil de alcançar,
diria mesmo impossível. Não existe. Só o presente em que vive.
Ah... quem me dera ser só aquela criança que lá
ficou. Ah... mas então inspiro profundamente e procuro esquecer as
personalidades adultas que me rodeiam e procuro ser envolvida pelo Rodi (um dos
meus amores...). Nos seus três anitos ainda subsiste só este instante. Amanhã é
um enigma que nem sequer pretende entender. Por isso corremos atrás da bola e
marcamos só mais um golo. Por isso corremos e escondemo-nos atrás do sofá só
mais uma vez e saltamos o muro só mais uma vez.
Ainda que, de quando em quando, a memória passe uma
rasteira e atire a imagem de um salto que correu um bocadinho mal e me fez
partir um dente e quase o nariz e atire outra memória ainda que me levou para o
hospital a jorrar sangue. E? Estava a brincar! Estava a brincar na rua com os
outros meninos e meninas e saltávamos e corríamos e escondíamo-nos e
aparecíamos a correr e a saltar. E se fosse a última corria ainda mais e mais
depressa e tocava na parede e gritava alto e feliz: 1,2,3, ana salva todos.
Até que as mães viam as estrelas e chamavam os que
ainda andavam na rua. Sem medo do escuro. Sem medo de nada.
As crianças nascem sem medo. O medo começa quando
os adultos, com medo de as perderem, lhes inculcam os seus medos. E então
aparecem os polícias ou os monstros ou os papões...
Ainda hoje, mesmo debaixo de um céu tórrido, tenho
de dormir com os pés tapados. Sei lá se o bicho que está debaixo da cama vem e
come os meus pés.
Deixa-te levar pela criança que foste e esquece-te
de ti...
PS: À memória de José Saramago, que morreu no dia
18 de Junho de 2010
*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro
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