Desde há muito que
quero escrever sobre o apartamento onde estou a viver desde o início de
Novembro passado. Pela primeira vez na vida, tenho o extraordinário privilégio
de, em cada manhã, tomar o pequeno-almoço contemplando o mar, assim como em
todas as refeições que realize em casa. Quer dizer, a escuridão é uma cortina
quase impenetrável. A linha do horizonte só é possível vislumbrar em noites de
lua cheia e de céu limpo.
De quando em
quando, o reflexo do luar espalha-se de forma visível para contentamento dos
olhos, cuja recepção desses espelhos reflectidos no mar se repercute em
sensações agradáveis pelo corpo.
Apesar da manhã
ter começado chuvosa, alguns farrapos de azul claro (mesmo que esbatido), no
céu, são elementos que me sopram. Alertam-me, convocando o olhar para o azul
mais escuro que me é possível captar na linha do horizonte.
O navio de
mercadorias, a centenas de milhas da costa, e o barco de pesca vermelho são fácil
e nitidamente observáveis. Confirmo, assim, a boa saúde do meu sentido de
visão. A informação visual vai-se tornando cada vez mais azul, alastrando-se no
espaço abstracto da pele – a exibição do sentido sensorial da pele confirma o
seu bom estado de saúde. De quando em vez, as gaivotas esvoaçam perto das
janelas grasnando com jovialidade1, banindo qualquer dúvida que
existisse quanto às capacidades auditivas. Quanto ao olfacto e ao paladar, o
pequeno-almoço tomado meia hora antes consolida o fulgor de todos os sistemas e
órgãos biológicos, que me permitem fruir (com gratidão) pelas linhas que se vão
escrevendo.
Poderia continuar
a enumerar todos os bens materiais e imateriais que me estão disponíveis e me
rodeiam, concedendo-me uma sensação de conforto e bem-estar, muito para além do
que as palavras possam expressar.
As experiências
vividas raramente são percepcionadas ou compreendidas através dos outros.
Quando muito, podem gerar reacções. Se, por ventura, as houver, resultarão da
interpretação das palavras escutadas ou lidas e não da experiência de quem as,
pelo menos, tenta partilhar.
Se me alongasse
naquele inventário, encontraria elementos, sem dúvida, suficientes, para, sem
leviandade alguma, afirmar: “Sou e tenho tudo o que necessito!” A felicidade é
a minha opção e prioridade diária, a qual aproveito para celebrar no dia 20
deste mês – o dia internacional da Felicidade. As Nações Unidas instituíram
este dia com a seguinte resolução: “A busca da felicidade é um objectivo humano
fundamental”.
Foi com surpresa
que, ao pesquisar sobre as datas comemorativas e efemérides de Março, me
deparei com esta informação. Não obstante, esse quase espanto rapidamente se
transmudou para a aquiescência. Se é verdade que, na maioria das vezes, se
instituem datas comemorativas para (re)lembrar que muito há ainda a realizar em
determinadas dimensões da vida – e aqui incluo todas as formas de vida –,
pergunto-me, então, sobre a necessidade de nos recordar essa busca pela
felicidade. Sempre pensei que, como eu, todas as pessoas tivessem como grande
objectivo de vida ser feliz.
Até que comecei a
estar mais atenta às palavras (acompanhadas de gestos e atitudes) das pessoas
que me rodeiam e com quem me vou cruzando. E quando escuto as pessoas que me
são queridas afirmarem de forma lacónica e resignada “pelo menos não sou
infeliz”, com uma certa tristeza, apreendo melhor a ideia das Nações Unidas: a
de provocarem, pelo menos, um laivo de ensejo pela busca da felicidade.
Essa busca é,
aliás, uma constante na minha vida, promovendo debates internos de quando em
quando. As reflexões têm resultado em mudanças no meu modo de viver e
compreender o conceito de felicidade, para além da teoria. Isto significa, que
também a minha maneira de estar se tem modificado ao longo do tempo. Entender
esta característica – a de tudo ser impermanente e estar em constante mudança –
inerente à natureza e à vida, tem sido o que mais tem contribuído para
apreender o que para mim é fundamental para me sentir feliz.
Hoje, no dia em
que escrevo, para mim ser feliz é trabalhar com um propósito, ao mesmo tempo
que é ser e estar serena e em paz, quaisquer que sejam as circunstâncias em que
me encontre. Aceitando, por exemplo, cada instante de alegria do mesmo modo que
aprendo a aceitar cada instante de desconforto ou mesmo tristeza. Acima de tudo,
sabendo que tudo passa, tudo muda... Por isso, trabalhando em algo em que
acredito, e desfrutando e aprendendo com serenidade e tranquilidade tudo o que
me é concedido viver; assim é hoje, para mim, ser feliz!
No mesmo dia 20,
acontece o equinócio da Primavera – a minha estação preferida. É com grande
alegria que dou as boas-vindas à estação das flores, dos amores primaveris... O
Inverno passou, dando assim entrada à poesia, que se celebra mundialmente no
dia seguinte, juntamente com o dia europeu da criatividade artística. Com mais
ou menos criatividade podemos comemorar outras datas através da partilha. Um
desses dias é a 27, o dia Nacional do Dador de Sangue. Uma data que nos recorda
que até nos é possível a dádiva de vida, através de um gesto tão simples como
estender o braço durante alguns minutos...
Aproveito para
assinalar que a dádiva é igualmente incomensurável por parte dos pais. Por
isso, no dia 19 temos mais uma oportunidade de agradecer ao nosso pai,
mostrando-lhe (novamente) como ele é importante e como terá contribuído para
que sejamos quem somos...
1. Com jovialidade a mais... minutos depois de enviar
a crónica para o jornal, uma senhora gaivota lembrou-se de marcar território na
janela da sala! Confesso que só me ri durante breves segundos pelo caricato da situação
– limpar os seus dejectos é coisa que não me agrada particularmente. Enfim, viver
perto do mar é uma surpresa a cada dia...
* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro
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