Dia cinco de Dezembro: dia internacional do voluntário para
a economia e desenvolvimento social. O tema do voluntariado não me é estranho. A
experiência como voluntária foi vivenciada em várias situações, em diversos
contextos e com motivações distintas. Se bem que distintas apenas na aparência.
Até há uns anos, considerando os meus próprios motivos para
partilhar o tempo, pensava que o voluntariado acontecia sobretudo, senão quase
unicamente, pela dádiva. Este ‘apenas’ não é redutor – reporto-me ao facto de
supor que, como eu, aqueles que se dispõem a contribuir com o seu tempo para
uma ‘qualquer’ causa, o fazem com esse mesmo fim.
Como escuteira e avezinha (uma das categorias nos grupos
femininos de Cristo Rei, seguindo-se as guias, nas quais não cheguei a
entrar...) participei amiúde em peditórios e actividades similares. Partilhava o
tempo, ajudando de alguma forma, alguma causa, alguma instituição, ou alguma
comunidade.
Em adulta, as tardes que passei a separar alimentos, no
armazém do Banco Alimentar, proporcionaram-me a sensação de ser útil. Os meus
afazeres eram colocados de lado, em prol de pessoas desconhecidas, é certo, mas
certamente necessitando de ajuda. O ambiente no armazém era claramente de boa disposição.
Nos últimos anos que fui, havia tanta gente ao longo dos tapetes rolantes que,
mais do que me sentir relevante, emergiu o desconforto de me sentir a mais.
Muita gente com vontade de ajudar, excelente! Muita confusão inibindo movimentos,
ao ponto de aceitar que, enfim, a minha presença era desnecessária. Até que
notícias acerca das pessoas que dirigiam o Banco Alimentar e sobre o seu
usufruto dúbio dos bens alimentares, doados por gente com muita frequência com
mais necessidades do que se vislumbra, me fizeram questionar a continuidade nas
iniciativas promovidas pelo Banco. Não regressei ao armazém de Perafita.
Por outro lado, as experiências que fui vivendo tornaram
evidente que a minha perspectiva acerca do voluntariado era deveras pobre. O
contacto com estudantes universitários apostando no seu futuro profissional,
mostrou-me que o seu Curriculum Vitae
é muito mais atractivo se integrar pelo menos uma linha dedicada ao serviço comunitário,
ao voluntariado. Um aluno afirmava com recorrência ser voluntário no Banco
Alimentar – o M era um fervoroso e activo militante de um partido político, no
qual trabalhava infatigavelmente, demonstrando claras pretensões em ser
dirigente político.
Os meus horizontes alargaram-se com a investigação, através
da qual entrevi que muitas pessoas, sobretudo as mais jovens, preparam as suas
viagens, pesquisando também sobre como podem contribuir para as comunidades dos
seus destinos.
Os meus horizontes alargaram-se quando as minhas viagens se
tornaram mais longas e, como consequência, com mais tempo – esse tesouro!,
talvez o mais valioso – para observar as pessoas e os seus modos de agir.
Conheci pessoas que viajam com o intuito de aprender. A melhor maneira de
aprenderem, de crescerem afirmam, é participando nas actividades quotidianas de
uma comunidade em particular, compartilhando as suas valências. Ensinando
inglês às crianças menos favorecidas, por exemplo. O retorno é tão evidente que
o seu benefício é, sem margens para dúvidas, muito superior.
O ano passado conheci Alberto, no México. Um professor
espanhol de férias naquele país. Passou um mês numa comunidade indígena – o seu
olhar era refulgente, o seu sorriso era luminoso, as suas palavras eram de
deslumbramento. Alberto sentia-se feliz e profundamente grato por ter sido
acolhido e por terem aceite o seu modesto contributo. Os presentes, em formas
de abraços apertados das crianças da região de Chiapas, eram a maior oferenda
que alguma vez recebera.
Houve uma época em que pesquisei afincadamente (mesmo que
sem resultados) sobre como ser voluntária em diversas ONG’s. O valor que eu
tinha de pagar era tão elevado (para mim...) que desisti das ilhas Galápagos,
de Madagáscar... – locais onde desejava realizar voluntariado... Com essas
incursões percebi que muitas ONG's se mantêm com base nos donativos dos que
querem ser voluntários. Se nessa altura me era estranho pagar para servir,
posteriormente compreendi um pouco melhor as circunstâncias – mesmo que ainda
me seja difícil concordar e candidatar-me ao voluntariado nesse tipo de acção.
Em finais de 2014, o sítio das Nações Unidas publicava um
anúncio para os Jogos Olímpicos de 2016. Inscrevi-me! Realizei diversos testes on-line, ao longo de um ano, que
culminaram com a participação em corpo presente no Evento-Teste de Mountain Bike. No início de Outubro de
2015 voava desde a Cidade do Panamá para o Rio de Janeiro. Estava exultante e
orgulhosa por ter sido seleccionada para o maior acontecimento desportivo do
planeta. No dia nove de Outubro de 2015, chorava baba e ranho quando, na sala
de formação, era transmitido um vídeo da candidatura do Rio de Janeiro para a
realização dos Jogos Olímpicos. As lágrimas eram de emoção incontida: eu fazia
parte do maior evento à face da Terra. Pela primeira vez na vida, testemunhava
de dentro outra forma de ser voluntária, ao mesmo tempo que o contacto com
outros voluntários me apresentava outras razões para que também eles ali
estivessem.
Quando este ano, também como voluntária, participei na
realização do Campeonato Europeu de Natação Adaptada no Funchal, os
significados do voluntariado tornaram-se ainda mais ambíguos. As mais de cem
crianças, jovens, adultos e idosos que ali estavam sorridentes, disponíveis e
ansiosas para integrarem a equipa tão diversa de voluntários, traziam consigo
uma energia desprovida de expectativas em relação a eventuais ganhos. Estavam
ali para doar o seu tempo: como contrapartida, bastava-lhes desfrutar desse
tempo com outras pessoas e aprender algo com essa experiência. Ah, como puderem
aprender e apreender como são, como éramos todos tão abençoados. Os atletas
especiais demonstravam ao minuto, ao segundo, como a minha vida é fácil, ao
mesmo tempo que nada, vezes nada, é garantido. Escutei algumas mães dizerem que
no dia seguinte levariam os filhos para que observassem e comprovassem a vida privilegiada
que viviam.
No final das duas semanas maravilhosas que vivi na ilha
atlântica das flores, era forçoso integrar mais factores de ordem pessoal e
social. E, se em Maio, decidi parar de pensar sobre esse assunto, ser
coordenadora (ainda que paga) de voluntários no Rio 2016, ampliou infinitamente
os elementos para possíveis reflexões.
A alegria expressa, por aqueles que eram chamados a
participar (após as várias etapas por que também eu anteriormente passara),
confirmou como pode ser ilimitada a disponibilidade do ser humano para ajudar:
tão-somente estando no centro do universo desportivo (e não só!) durante três
ou quatro dias.
Sagan, um jovem indiano ilustra-me. Quando recebeu o meu
telefonema, extático, só lhe escutava desde o outro lado da linha: “Obrigado!
Obrigado! Obrigado!” A única coisa que eu havia feito fora ler o seu percurso
na ficha de voluntário e contactá-lo para saber se ainda estava disponível.
Como? Claro!!! E confirmei a sua presença sorrindo. Alguma vez me passara pela
cabeça que o Sagar, da Índia, e a Azucena do México (dois de múltiplos exemplos
que poderia expor) ansiavam tanto como eu integrar os Jogos Olímpicos e ajudar
a escrever uma linha na história da humanidade?
O Sagar marcou nesse mesmo dia a sua viagem desde Mumbai.
Às suas custas, claro! Reservou alojamento. Às suas custas, claro! No seu
primeiro dia de actuação, e depois de ter passado no centro de acreditação e de
uniforme orgulhosamente vestido, oferecia-me mais um presente (os seus abraços
e palavras de rejubilo já me tinham avassalado...): uma saia cor-de-rosa, linda.
Apenas por lhe ter telefonado e de o ter incluído na equipa de voluntários do
Ciclismo.
Talvez tenha sido um dos momentos mais bonitos daqueles
quase quatro meses no Rio de Janeiro, e que me permitiu apreender, ainda que de
forma ténue, o alcance de um mero acto inerente às funções para que fora
contratada. A experiência prévia como voluntária no Evento-Teste ajudou-me a
compreender um pouco a euforia de Sagar, assim como a de muitos outros
voluntários, em particular os estrangeiros – aqueles que organizaram as suas
férias para participar e oferecer o seu tempo na realização dos Jogos
Olímpicos. Contribuindo, assim, para o tal desenvolvimento económico e social
implícito no conceito de voluntário.
A teoria não me explica, porém, os sentidos de acção e de
dádiva dos cinquenta mil inscritos na base de dados do Rio 2016. A proximidade
aos atletas, aos super-atletas, aos heróis desportivos é, indubitavelmente, um
elemento a ponderar. Mas não me esclarece cabalmente. Na verdade, a renitência
e mesmo recusa de brasileiros, residentes no Rio de Janeiro, em participar acrescentou
dúvidas acerca do assunto. Cada vez que desligava o telefone após uma resposta
negativa num português quente e carioca, perguntava-me como era possível que
aquela pessoa, tão próxima do centro do mundo (para mim...), apresentasse
razões mais do que plausíveis para, no fim de contas, não estar disponível e
não vestir um uniforme de voluntária. E, ao contrário dos estrangeiros, sem
qualquer custo, a não ser o seu tempo – ah!, esse bem tão precioso, que de tão
valioso me provoca indagações sobre como viver cada instante de forma a
eternizá-lo.
Questionamentos pessoais à parte, vou despendendo tempo a
pensar sobre este tópico, até porque dia cinco de Dezembro intervirei numa
sessão dedicada voluntário. A P convidou-me para participar numa sessão
dedicada ao assunto na escola em que lecciona. Tenho, pois, mais uma
oportunidade de ser útil, nem que seja apenas para a minha querida amiga P.
É nesta acepção de utilidade, de realizar algo pelo outro
que me parece estar o cerne de todas as iniciativas associadas ao voluntariado.
Esta é, aliás, uma tendência em crescendo – não fosse eu, por exemplo, tal como
outros voluntários que conheci no Rio de Janeiro, já nos termos candidatado a
futuros eventos desportivos.
Os dados que os meus sentidos captam – naturalmente
condicionados pelas minhas experiências – sugerem-me que existem cada vez mais
pessoas insatisfeitas com os seus empregos. Aqueles que lhes providenciam o
suficiente (ou, talvez, nem sempre suficiente) para as suas necessidades (e
aqui incluo todos os tipos de necessidades, desde as básicas, às mais
supérfluas, ainda que não deixem de ser necessárias para o bem-estar vivenciado
como um todo). O que vou assistindo, no entanto, é que essas mesmas
necessidades se têm tornado cada vez mais insuficientes. A sensação que tenho é
que, de alguma forma, um crescente número de pessoas se questiona quanto ao
sentido que faz ter um emprego que não satisfaz por aí além, tão-pouco garante
os bens (materiais, sublinho), que entretanto vão perdendo importância.
Ao escutar o senhor presidente do Uruguai, as minhas
cogitações tomaram forma nas suas palavras. E creio que para muitas outras
pessoas, também. Gastar tempo – o bem mais valioso e cada vez mais escasso –
num emprego que não satisfaz para comprar coisas que ao fim de meia dúzia de
dias (estou a ser optimista) se juntam as outras mil e uma coisas – num
armário... cheio, talvez a abarrotar. E é aqui que encaixo o aumento da
participação no voluntariado. É um trabalho. Um trabalho no sentido mais humano
que apreendo. Um trabalho, cujo propósito é palpável e que, acima de tudo,
proporciona o sentimento único de se ser útil, de se estar a contribuir para
algo que realmente confere sentido – sem com isso se esperar retorno
financeiro.
É possível – e o contacto com voluntários do IPO apoia-me
neste raciocínio – que muitos daqueles que têm necessidade e/ou desejo de serem
voluntários numa causa ‘maior’ – coloco assim – procurem situações que lhes
promovam esse sentimento ‘superior’ de serem importantes, úteis.
O que me provoca outras indagações do género: o que será
que aconteceu para que cada vez mais gente viva em contextos e a viver uma
profissão que cada vez menos contribui para o bem da Humanidade.
Quem sabe o ficcional “Admirável mundo novo” de Aldous
Huxley seja tudo menos ficção. E assim aquele mundo virtuoso, onde o apanágio
da felicidade era ‘real’; aquele em que se fazia acreditar gostar daquilo que
se é obrigado a fazer – o tal segredo da felicidade daquele ‘admirável mundo’ –
tenha deixado de ser ficção científica (foi escrito em 1931!) e seja mais real que admirável...
Não obstante, nos Jogos Olímpicos, os meus sentidos
apreenderam uma matéria infinita de sorrisos imateriais e ilimitados, em pessoas
vindas de todo o mundo (admirável ou não), que se expandiam numa felicidade só
invisível e ‘obrigada’ ao mais céptico dos examinadores...
Admirável, para mim, é o voluntário despojado que partilha
o seu tempo sem orgulho. Admirável, para mim, é a pessoa que compartilha o seu
tempo, porque sim, porque está cheia, porque tem um emprego que lhe providencia
os sentimentos de realização e felicidade. Cheia que está, partilha-se, é útil,
sem estar a pensar que a sua utilidade contribuirá para o tal desenvolvimento
social e económico...
16 a 21 de
Novembro de 2016
Matosinhos,
Portugal