Eram nove e cinquenta quando me
sentei no que seria o primeiro autocarro até ao meu destino. De Antigua para
Panajachel. Objectivo: contemplar o Lago Atitlán, onde me encontro neste momento.
Antes de decidir a forma de aqui chegar,
fiz algumas pesquisas na internet. Os comentários sobre as alternativas aos shutlles
sugeriam que não
seria complicado. O preço
desse tipo de transporte é incrivelmente
mais caro. Mesmo que sejam directos ao destino. Tendo a conta a pesquisa, isso não é assim tão linear.
Quis viajar nos mesmos modos que
fazem os locais. Não era
uma estreia. Fui de chicken bus da cidade da Guatemala - a capital - para
Antigua. De acordo com os comentários,
seria necessário
mudar de veículo
em Chimaltenango. Foram cerca de quarenta e cinco minutos nesse primeiro
percurso.
Tal como sucede noutros países, em cada paragem
entram vendedores ambulantes. Também
pessoas com dificuldades económicas,
como foi o caso. Um homem com uma deficiência entrou e justificou as razões para pedir ajuda. Por
várias
vezes desculpou-se pelo incómodo
que estaria a causar aos passageiros, todavia as necessidades que passava assim
o obrigavam.
Não me tem sido fácil gerir este tipo de situação. Há muita gente com
dificuldades a vender coisas que para mim não têm qualquer utilidade, bem como gente a pedir
ajuda. Que fazer? De vez em quando contribuo, como na deslocação entre a cidade da
Guatemala e Antigua. Comprei dois cadernos de espanhol por cinco quetzales
(menos de 1€; 1€~8Q).
Ajudei o rapaz e fiquei com
literatura para melhorar o espanhol. Um dos cadernos é para aprender inglês (primeiro nível, segundo a informação na capa) e o outro de
Kaqchikel - um dos dialectos da Guatemala. Estou certa que encontrarei novas
palavras e expressões. Foi
há três dias. Ainda não abri nenhum dos
cadernos.
O primeiro autocarro desde Antigua
teve o mesmo custo dos dois cadernos. O homem que pedia sentou-se ao meu lado.
Coxeando e segurando-se de forma precária, percorreu o autocarro. Granjeou muitas moedas.
Note-se que o valor máximo
das moedas é de um
quetzal. Mesmo assim vou observando a amabilidade das pessoas da Guatemala.
Apesar do pouco que parecem ter, partilham. O mesmo percebi na Colômbia.
Os olhos escuros semi-cerrados pela
deficiência
perscrutaram-me. Para onde ia, a sua pergunta. Respondi de forma distante, com
a delicadeza possível.
A mochila maior com os seus quase
dezassete quilos estava arrumada atrás do meu assento. Na última fila do chicken bus. Impedi que à saída o rapaz colocasse a mochila no topo do
autocarro. À medida
que a viagem ia decorrendo, os bancos iam sendo preenchidos até chegarem ao pleno. A
janela aberta permitia que o vento tocasse com exuberância o meu rosto. Talvez em demasia. O
vizinho do lado solicitou-me que encerrasse a janela. O autocarro cheio. Em
cada banco de dois lugares, três
pessoas. O revisor entrou então em
funções e
finalmente alcançou as
traseiras.
As moedas que o homem que pedia
conseguira não
pareciam suficientes. Paguei dois bilhetes, o meu e o dele. Assim pelo menos
sei que estou a ajudar de forma concreta e no momento necessário.
O revisor lá me avisou que estava a chegar ao destino.
Abriu a porta de trás e
rapidamente tirou a mochila. Em segundos o autocarro arrancava, deixando-me no
meio de uma estrada em Chimaltenango. Não tive tempo para respirar, muito menos para
arrumar a mochila nas costas. De imediato outro rapaz pegava na minha bagagem.
Um outro chicken bus atrás de
mim. Sem me dar tempo para dizer que queria ir para Panajachel. Que não me preocupasse, que
sim senhora ia para lá. E
vi-o a lançar a
mochila para o topo do autocarro, sem tempo ou alternativa. O coração batia. Acelerou
quando entrei pelas traseiras nesse novo autocarro. Não estava cheio. Estava apinhado. Não tinha lugar para me sentar.
Estava insegura, sem qualquer certeza quanto ao destino. Claro que isso pode
ser o menos.
Foram várias as pessoas, em especial
guatemaltecas, que se demonstraram muito ciosas em relação aos turistas. Aconselham sempre a
deslocação dos
estrangeiros em autocarros mais caros ou em shutlles. Como aconteceu à saída da capital. No hostel Theatre
International foi-me sugerido que apanhasse um autocarro de trinta e cinco
quetzales em vez dos cinco que paguei. Como eu, a Valentina, uma rapariga
argentina a estudar em Oaxaca (México)
pensámos
que seria muito mais interessante deslocarmo-nos nos antigos autocarros
escolares norte-americanos. O senão,
dizem os guatemaltecos, é a
possibilidade do autocarro ser obrigado a uma travagem brusca... para ser
assaltado! Quais são as
probabilidades, não sei.
As estatísticas
valem o que valem. Nada sucedeu até ao
momento. Confio que assim continue. Pelo sim, pelo não, pela primeira vez desde que aterrei na
América
Latina estou a usar a bolsa 'invisível',
onde guardo os documentos e o dinheiro. Está colada ao peito, por baixo da roupa. Não sou a única a usar. Tenho
reparado em muitos viajantes. Sendo usual, é quase certo que os interessados e
potenciais ladrões
saibam da existência
dessas pretensas protecções. A
melhor atitude é estar
atenta e ser cuidadosa sem contudo viver com medo. Precaução e confiança.
Quando entrei no segundo autocarro,
em Chimaltenango, senti-me vulnerável.
Reparei num jovem moreno, como a maioria das pessoas da Guatemala. O seu olhar
confirmou o que eu pensava. O autocarro não era directo para Panajachel, o meu destino
final. Informou-me que depois desse ainda teria de apanhar mais dois! Não era esse o resultado
da minha investigação. A
minha apreensão também resultava do lançamento dos meus parcos mas
importantes pertences para o topo do autocarro pelo rapazote voluntarioso,
enquanto me dizia que seriam trinta quetzales pela viagem. Nem pensar!, eu.
Ficou nos vinte.
De pé, a tentar obter mais informações desse passageiro amável, depreendi que o valor
era demasiado e que com efeito não
estava num autocarro directo. Ok, não vou pagar e vou sair o quanto antes - o primeiro
pensamento. Entretanto, sentia a simpatia do passageiro jovem cheio de coisas
no seu colo. Como quase todos os que viajam nestes autocarros. Ele sairia em
Los Encuentros, a localidade onde eu deveria apanhar o terceiro chicken bus!
Fiquei a saber que em vez dos vinte seriam quinze quetzales.
Em pé, nas traseiras do autocarro, o meu olhar
focava-se agora na estrada. E se a mochila cai? Sabia que não estava sozinha e que
provavelmente estaria presa como a restante mercadoria. O pior que poderia
acontecer era ficar sem a roupa, o pouco calçado e acessórios de higiene. Nem todos. Na mochila
mais pequena, trago sempre uma bolsa com o básico. Há coisas piores, já se sabe. Lembrei-me dos dois cadernos já escritos de fio a
pavio. Esses sim. O meu pequeno tesouro.
As nuvens negras a saírem do tubo de escape
eram sombras que me assustavam. Só sombras,
nem sinal da mochila na estrada. Negro estava também o céu. Estação das chuvas na Guatemala. Começou a chover. Ainda mais
quarenta minutos de caminho na auto-estrada ladeada de ribanceiras. As curvas
acentuadas, a chuva e a mochila lá em
cima.
Tomei a atitude! Dirigi-me por entre
o corredor exíguo até ao motorista. "Por
favor, pode descer a minha mochila? Está a chover. Vai ficar toda molhada!!" Acenando
afirmativamente e com facilidade, acedeu dirigindo-se ao revisor para que o
fizesse. Este subiu com o autocarro a mais de setenta à hora. A mochila deixou de me preocupar.
Aquele homem lá em
cima, com curvas e contra-curvas, numa velocidade muito acima do aconselhável e a chover... Até que vi a mochila pela
janela. O tal rapaz atrevido agarrou nela e colocou-a na prateleira já cheia de muitas outras
sacas e sacos. Arrumada, segura, a mochila, também eu arranjei um lugar. Finalmente
respirava com alívio.
Pelo menos sabia que mais tarde ou mais cedo chegaria a Panajachel.
Desfrutei finalmente da paisagem e do discurso interminável de um homem de cabelos brancos e com os dentes da frente debruados a ouro que entretanto entrara. Uma bíblia numa mão, a outra mão sempre com o indicador em riste, numa voz ressonante. Os pecados, os pecadores, a salvação em Jeová, os conselhos às mulheres para tratarem bem dos esposos e do lar. Ninguém interrompeu. Fiquei com a sensação que o melhor seria deixá-lo falar. Sabe-se lá se o inferno seria tão abrasador como o pregador pressagiava. A personagem masculina do livro que estou a ler, "The Sibhyl" (de Pär Lagerkvist), vive essa mesma incerteza, pela maldição de deus. Não era o meu caso, pois então já desfrutava deslumbrada pela agilidade de uma mulher que vendia pupuzas no autocarro. Agora com menos gente. Preparava-as com frango e molho picante. Uma mão pegava com uma saca de plástico em duas tortilhas, enquanto a outra as recheava. Sempre nas curvas e sem vacilar. Sim senhora! Cinco quetzales para quem quisesse lanchar.
Desfrutei finalmente da paisagem e do discurso interminável de um homem de cabelos brancos e com os dentes da frente debruados a ouro que entretanto entrara. Uma bíblia numa mão, a outra mão sempre com o indicador em riste, numa voz ressonante. Os pecados, os pecadores, a salvação em Jeová, os conselhos às mulheres para tratarem bem dos esposos e do lar. Ninguém interrompeu. Fiquei com a sensação que o melhor seria deixá-lo falar. Sabe-se lá se o inferno seria tão abrasador como o pregador pressagiava. A personagem masculina do livro que estou a ler, "The Sibhyl" (de Pär Lagerkvist), vive essa mesma incerteza, pela maldição de deus. Não era o meu caso, pois então já desfrutava deslumbrada pela agilidade de uma mulher que vendia pupuzas no autocarro. Agora com menos gente. Preparava-as com frango e molho picante. Uma mão pegava com uma saca de plástico em duas tortilhas, enquanto a outra as recheava. Sempre nas curvas e sem vacilar. Sim senhora! Cinco quetzales para quem quisesse lanchar.
Em Solalá saí do autocarro e logo outro já pronto para Panajachel. Não! Primeiro era
fundamental encontrar uma casa-de-banho. O tempo que demorei a aliviar-me é proporcional ao prazer
posterior. Compreendia então
Salvador Dali, quando descrevia o seu comportamento bizarro. Mantinha-se o mais
tempo possível em
aflição
para então
obter um prazer equivalente - na sua perspectiva - ao orgasmo.
Oito quilómetros separam Solalá de Panajachel. Os suficientes para que
mais um chicken bus chegasse ao pleno na sua ocupação. Gente carregada de compras no mercado
famoso de Solalá. Um
casal de americanos também com
compras do mercado. Flores para as jarras, uma das suas aquisições. Na Guatemala os
americanos são
muitos. Sobretudo turistas. Mas também muitos que aqui decidiram assentar arraiais.
Finalmente cheguei ao centro de
Panajachel. Basicamente uma rua na qual não fazia ideia da minha localização, nem tão-pouco onde me alojar.
Foi o primeiro lugar para onde me desloquei sem reserva prévia. Apenas uma busca na noite anterior
pelo mundo virtual que me deu a segurança necessária para não marcar. A saída nas primeiras horas da manhã e a certeza (?) de
chegar antes do almoço
assim me incentivaram.
De mochila às costas, vi de imediato indicações para o 'Hotel do
Viajero' entre outras. Todas com Wi-Fi. Importante para quem viaja e quer
falar com a família por skype. No dia seguinte o Rodi completaria um ano de vida. Um
beijinho à distância e um abraço virtual ao amor da minha vida, o Gonçalo. Dois passos na rua em direcção aos potenciais alojamentos e
de imediato um homem. Percebi ser o dono de uma pousada para onde me deixei
guiar, à medida que ele me ia dando a informação necessária quanto ao preço e comodidades. Quarto privado com casa-de-banho
partilhada. Cinquenta quetzales por noite. O suficiente.
Debaixo
da esplanada onde escrevo, as águas do Atitlán respaldam na areia. Os três vulcões chamam-me de vez em quando. Talvez amanhã me aventure até ao vulcão San Pedro. Por ora desfruto da música das esferas, sendo interrompida amiúde por vendedores ambulantes. Pulseiras, fitas
para o cabelo, lenços, bolsas. Tecidos e muitas cores atractivas, difícil resistir. Mantenho-me firme e hirta na decisão de não comprar nada. Não preciso de nada! Tudo está bem!
10 de Julho, 2015
Panajachel, Guatemala
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