À beira-rio





 
            Hoje seria o voo desde a Guatemala para a Colômbia, onde teria outro de regresso a Portugal. Estou longe do aeroporto da capital. Em Lanquin, no El retiro lodge. Um paraíso na terra. Numa hamaca. A menos de cinco metros, o rio. Uma corrente forte que convida a descer em tubos - câmaras cheias de ar de grandes dimensões. Algumas raparigas aventuraram-se. Uma delas acabou de apanhar um susto. A sua bóia não parou no suposto local de chegada. Foi rapidamente resgatada pelo guia atento. À saída da água um rosto ansioso. "Enfim salva. Será que poderia ter acontecido alguma coisa?" A especulação que disso não terá passado. O melhor é evitar os "se". Não conduzem a lado nenhum e geralmente são um desperdício de tempo; sobretudo de energia. É tempo de relaxar. Mais um mergulho na margem, com a devida proximidade.
            Outras pessoas jovens descem nas bóias gigantes. Para bailar la bamba. Vozes alegres e descontraídas. Descem desde Semuk Shampey. O meu destino seguinte depois de visitar as grutas de Lanquin. Aqui, mais um ou dois dias; contemplando as borboletas de todas as cores a esvoaçarem por entre as flores do jardim também multicolor. À beira-rio. Um rio muito verde, num verde seco, diferente de todos os rios em que já me banhei. Daqui a pouco vou experimentar a sua temperatura e sentir a água nas pernas muito brancas.
            Pela primeira vez o calor na Guatemala impele à frescura das águas que correm. Águas sempre diferentes num rio que se vai transformando a cada instante. Nunca as mesmas águas no seu leito. Assim eu. Em cada minuto atravessada por pulsões e pensamentos a esvoaçarem. A que sabe o vento?

16 de Julho, 2015
Lanquin, Guatemala

Jantar em Lanquin







             
            O primeiro corte é o mais profundo. Aberto. O homem mais rico da aldeia. Aberto à felicidade. Também é o homem mais triste. Quer amar de novo. Na porta vinte e sete, um jantar na varanda colonial. Ninguém se lembra do jardim de orquídeas vermelhas. Escreveu um bilhete. A esperança de a ver sorrir ao ler as suas palavras. Um encontro em Belize. Meu amor!, às vezes ainda preciso de ti. Só desejo uma coisa. Que aceites o amor que sinto por ti. É branco. É dourado. Entrego-to sem reflectir. O balão a zarpar, leva a sabedoria para a liberdade.
            No Domingo vamos de pára-quedas. Aterremos na Atlântida. Fica um pouco. Sinto-me com sorte. Sei que um dia caminharemos de mãos dadas. Que um dia os nossos corações baterão em uníssono. Sorrio. No espelho, o teu rosto. A minha mão na tua. E então feliz. A união simples sem alienação. Ainda na Guatemala...
    

Chicken bus na Guatemala




            Eram nove e cinquenta quando me sentei no que seria o primeiro autocarro até ao meu destino. De Antigua para Panajachel. Objectivo: contemplar o Lago Atitlán, onde me encontro neste momento.
            Antes de decidir a forma de aqui chegar, fiz algumas pesquisas na internet. Os comentários sobre as alternativas aos shutlles sugeriam que não seria complicado. O preço desse tipo de transporte é incrivelmente mais caro. Mesmo que sejam directos ao destino. Tendo a conta a pesquisa, isso não é assim tão linear.

            Quis viajar nos mesmos modos que fazem os locais. Não era uma estreia. Fui de chicken bus da cidade da Guatemala - a capital - para Antigua. De acordo com os comentários, seria necessário mudar de veículo em Chimaltenango. Foram cerca de quarenta e cinco minutos nesse primeiro percurso.
            Tal como sucede noutros países, em cada paragem entram vendedores ambulantes. Também pessoas com dificuldades económicas, como foi o caso. Um homem com uma deficiência entrou e justificou as razões para pedir ajuda. Por várias vezes desculpou-se pelo incómodo que estaria a causar aos passageiros, todavia as necessidades que passava assim o obrigavam.
            Não me tem sido fácil gerir este tipo de situação. Há muita gente com dificuldades a vender coisas que para mim não têm qualquer utilidade, bem como gente a pedir ajuda. Que fazer? De vez em quando contribuo, como na deslocação entre a cidade da Guatemala e Antigua. Comprei dois cadernos de espanhol por cinco quetzales (menos de 1; 1~8Q).
            Ajudei o rapaz e fiquei com literatura para melhorar o espanhol. Um dos cadernos é para aprender inglês (primeiro nível, segundo a informação na capa) e o outro de Kaqchikel - um dos dialectos da Guatemala. Estou certa que encontrarei novas palavras e expressões. Foi há três dias. Ainda não abri nenhum dos cadernos.
            O primeiro autocarro desde Antigua teve o mesmo custo dos dois cadernos. O homem que pedia sentou-se ao meu lado. Coxeando e segurando-se de forma precária, percorreu o autocarro. Granjeou muitas moedas. Note-se que o valor máximo das moedas é de um quetzal. Mesmo assim vou observando a amabilidade das pessoas da Guatemala. Apesar do pouco que parecem ter, partilham. O mesmo percebi na Colômbia.
            Os olhos escuros semi-cerrados pela deficiência perscrutaram-me. Para onde ia, a sua pergunta. Respondi de forma distante, com a delicadeza possível.
            A mochila maior com os seus quase dezassete quilos estava arrumada atrás do meu assento. Na última fila do chicken bus. Impedi que à saída o rapaz colocasse a mochila no topo do autocarro. À medida que a viagem ia decorrendo, os bancos iam sendo preenchidos até chegarem ao pleno. A janela aberta permitia que o vento tocasse com exuberância o meu rosto. Talvez em demasia. O vizinho do lado solicitou-me que encerrasse a janela. O autocarro cheio. Em cada banco de dois lugares, três pessoas. O revisor entrou então em funções e finalmente alcançou as traseiras.
            As moedas que o homem que pedia conseguira não pareciam suficientes. Paguei dois bilhetes, o meu e o dele. Assim pelo menos sei que estou a ajudar de forma concreta e no momento necessário.
            O revisor lá me avisou que estava a chegar ao destino. Abriu a porta de trás e rapidamente tirou a mochila. Em segundos o autocarro arrancava, deixando-me no meio de uma estrada em Chimaltenango. Não tive tempo para respirar, muito menos para arrumar a mochila nas costas. De imediato outro rapaz pegava na minha bagagem. Um outro chicken bus atrás de mim. Sem me dar tempo para dizer que queria ir para Panajachel. Que não me preocupasse, que sim senhora ia para lá. E vi-o a lançar a mochila para o topo do autocarro, sem tempo ou alternativa. O coração batia. Acelerou quando entrei pelas traseiras nesse novo autocarro. Não estava cheio. Estava apinhado. Não tinha lugar para me sentar. Estava insegura, sem qualquer certeza quanto ao destino. Claro que isso pode ser o menos.
            Foram várias as pessoas, em especial guatemaltecas, que se demonstraram muito ciosas em relação aos turistas. Aconselham sempre a deslocação dos estrangeiros em autocarros mais caros ou em shutlles. Como aconteceu à saída da capital. No hostel Theatre International foi-me sugerido que apanhasse um autocarro de trinta e cinco quetzales em vez dos cinco que paguei. Como eu, a Valentina, uma rapariga argentina a estudar em Oaxaca (México) pensámos que seria muito mais interessante deslocarmo-nos nos antigos autocarros escolares norte-americanos. O senão, dizem os guatemaltecos, é a possibilidade do autocarro ser obrigado a uma travagem brusca... para ser assaltado! Quais são as probabilidades, não sei. As estatísticas valem o que valem. Nada sucedeu até ao momento. Confio que assim continue. Pelo sim, pelo não, pela primeira vez desde que aterrei na América Latina estou a usar a bolsa 'invisível', onde guardo os documentos e o dinheiro. Está colada ao peito, por baixo da roupa. Não sou a única a usar. Tenho reparado em muitos viajantes. Sendo usual, é quase certo que os interessados e potenciais ladrões saibam da existência dessas pretensas protecções. A melhor atitude é estar atenta e ser cuidadosa sem contudo viver com medo. Precaução e confiança.
            Quando entrei no segundo autocarro, em Chimaltenango, senti-me vulnerável. Reparei num jovem moreno, como a maioria das pessoas da Guatemala. O seu olhar confirmou o que eu pensava. O autocarro não era directo para Panajachel, o meu destino final. Informou-me que depois desse ainda teria de apanhar mais dois! Não era esse o resultado da minha investigação. A minha apreensão também resultava do lançamento dos meus parcos mas importantes pertences para o topo do autocarro pelo rapazote voluntarioso, enquanto me dizia que seriam trinta quetzales pela viagem. Nem pensar!, eu. Ficou nos vinte.
            De pé, a tentar obter mais informações desse passageiro amável, depreendi que o valor era demasiado e que com efeito não estava num autocarro directo. Ok, não vou pagar e vou sair o quanto antes - o primeiro pensamento. Entretanto, sentia a simpatia do passageiro jovem cheio de coisas no seu colo. Como quase todos os que viajam nestes autocarros. Ele sairia em Los Encuentros, a localidade onde eu deveria apanhar o terceiro chicken bus! Fiquei a saber que em vez dos vinte seriam quinze quetzales.
            Em pé, nas traseiras do autocarro, o meu olhar focava-se agora na estrada. E se a mochila cai? Sabia que não estava sozinha e que provavelmente estaria presa como a restante mercadoria. O pior que poderia acontecer era ficar sem a roupa, o pouco calçado e acessórios de higiene. Nem todos. Na mochila mais pequena, trago sempre uma bolsa com o básico. Há coisas piores, já se sabe. Lembrei-me dos dois cadernos já escritos de fio a pavio. Esses sim. O meu pequeno tesouro.
            As nuvens negras a saírem do tubo de escape eram sombras que me assustavam. Só sombras, nem sinal da mochila na estrada. Negro estava também o céu. Estação das chuvas na Guatemala. Começou a chover. Ainda mais quarenta minutos de caminho na auto-estrada ladeada de ribanceiras. As curvas acentuadas, a chuva e a mochila lá em cima.
            Tomei a atitude! Dirigi-me por entre o corredor exíguo até ao motorista. "Por favor, pode descer a minha mochila? Está a chover. Vai ficar toda molhada!!" Acenando afirmativamente e com facilidade, acedeu dirigindo-se ao revisor para que o fizesse. Este subiu com o autocarro a mais de setenta à hora. A mochila deixou de me preocupar. Aquele homem lá em cima, com curvas e contra-curvas, numa velocidade muito acima do aconselhável e a chover... Até que vi a mochila pela janela. O tal rapaz atrevido agarrou nela e colocou-a na prateleira já cheia de muitas outras sacas e sacos. Arrumada, segura, a mochila, também eu arranjei um lugar. Finalmente respirava com alívio. Pelo menos sabia que mais tarde ou mais cedo chegaria a Panajachel.              
          Desfrutei finalmente da paisagem e do discurso interminável de um homem de cabelos brancos e com os dentes da frente debruados a ouro que entretanto entrara. Uma bíblia numa mão, a outra mão sempre com o indicador em riste, numa voz ressonante. Os pecados, os pecadores, a salvação em Jeová, os conselhos às mulheres para tratarem bem dos esposos e do lar. Ninguém interrompeu. Fiquei com a sensação que o melhor seria deixá-lo falar. Sabe-se lá se o inferno seria tão abrasador como o pregador pressagiava. A personagem masculina do livro que estou a ler, "The Sibhyl" (de Pär Lagerkvist), vive essa mesma incerteza, pela maldição de deus. Não era o meu caso, pois então já desfrutava deslumbrada pela agilidade de uma mulher que vendia pupuzas no autocarro. Agora com menos gente. Preparava-as com frango e molho picante. Uma mão pegava com uma saca de plástico em duas tortilhas, enquanto a outra as recheava. Sempre nas curvas e sem vacilar. Sim senhora! Cinco quetzales para quem quisesse lanchar.
            Em Solalá saí do autocarro e logo outro já pronto para Panajachel. Não! Primeiro era fundamental encontrar uma casa-de-banho. O tempo que demorei a aliviar-me é proporcional ao prazer posterior. Compreendia então Salvador Dali, quando descrevia o seu comportamento bizarro. Mantinha-se o mais tempo possível em aflição para então obter um prazer equivalente - na sua perspectiva - ao orgasmo.
            Oito quilómetros separam Solalá de Panajachel. Os suficientes para que mais um chicken bus chegasse ao pleno na sua ocupação. Gente carregada de compras no mercado famoso de Solalá. Um casal de americanos também com compras do mercado. Flores para as jarras, uma das suas aquisições. Na Guatemala os americanos são muitos. Sobretudo turistas. Mas também muitos que aqui decidiram assentar arraiais.
            Finalmente cheguei ao centro de Panajachel. Basicamente uma rua na qual não fazia ideia da minha localização, nem tão-pouco onde me alojar. Foi o primeiro lugar para onde me desloquei sem reserva prévia. Apenas uma busca na noite anterior pelo mundo virtual que me deu a segurança necessária para não marcar. A saída nas primeiras horas da manhã e a certeza (?) de chegar antes do almoço assim me incentivaram.
            De mochila às costas, vi de imediato indicações para o 'Hotel do Viajero' entre outras. Todas com Wi-Fi. Importante para quem viaja e quer falar com a família por skype. No dia seguinte o Rodi completaria um ano de vida. Um beijinho à distância e um abraço virtual ao amor da minha vida, o Gonçalo. Dois passos na rua em direcção aos potenciais alojamentos e de imediato um homem. Percebi ser o dono de uma pousada para onde me deixei guiar, à medida que ele me ia dando a informação necessária quanto ao preço e comodidades. Quarto privado com casa-de-banho partilhada. Cinquenta quetzales por noite. O suficiente.
            Debaixo da esplanada onde escrevo, as águas do Atitlán respaldam na areia. Os três vulcões chamam-me de vez em quando. Talvez amanhã me aventure até ao vulcão San Pedro. Por ora desfruto da música das esferas, sendo interrompida amiúde por vendedores ambulantes. Pulseiras, fitas para o cabelo, lenços, bolsas. Tecidos e muitas cores atractivas, difícil resistir. Mantenho-me firme e hirta na decisão de não comprar nada. Não preciso de nada! Tudo está bem!    

10 de Julho, 2015
Panajachel, Guatemala