A janela do restaurante: uma imagem a dois tempos




A partir de "The restaurante window" de George Segal

De que matéria é feita o gesso?
De que substância são feitas as figuras de gesso?
O gesso: uma amálgama disforme, receptiva às mãos do artista. Antes de começar a esculpir o projecto desenhado no papel, o artista senta-se no banco de madeira. Esse banco em frente à varanda aberta para o mar. Aí detém o olhar sobre a espuma das ondas que tocam suavemente a areia. Também com suavidade pretende tocar na massa já pronta.
A janela do restaurante é larga, como longos são os dias da mulher do lado de dentro. Está sentada à mesa ainda vazia – tão vazia como as suas longas horas em espera. Aguarda companhia, mas no outro lado da mesa não existe qualquer cadeira para que alguém se sente. Nunca lhe colocaram outra cadeira, apesar de aí se deslocar todas as noites para jantar. O empregado está acostumado ao olhar da mulher – expectante e vazio. Não há necessidade de lhe lembrar que a cadeira ficaria, como sempre, desocupada.
O artista junta as palmas das mãos grossas elevando-as ao nível do queixo. Em posição de quem vagueia pelos meandros da imaginação; os dedos indicadores tocam os lábios, enquanto os olhos semicerrados perscrutam o movimento ondulatório e a sua marca gravada na areia, mesmo que por escassos segundos.
De pernas cruzadas sob o tampo amarelo, a mulher de feições tristes permanece com os braços sobre a mesa. As costas um pouco curvadas transparecem o peso dos anos, quiçá em solidão: o que o risco em oval descendente da boca selada sugere. O perfil está imóvel, com o olhar parado em frente. A janela ao seu lado direito não a convida, nem tão-pouco oferece um estímulo para que a cabeça faça qualquer movimento, mínimo que seja.
Após alguns minutos de contemplação da maré que vai lentamente subindo, o artista de bata que há muito deixou de ser branca levanta-se e arregaça as mangas. Sente-se pronto para receber a ordem da voz da maresia. Aguarda o chamamento que dará ímpeto às suas mãos calejadas.
Apesar de ser hora de jantar, a afluência ao restaurante está apagada. Apenas uma cliente. A que se vê da janela alta que expõe o interior da sala. Não há muito a observar. Uma mesa (pouco) habitada, uma pessoa a morar temporariamente à mesa. Uma parede branca desabitada. O possível observar pelo homem no exterior, se olhasse.
Como materializar o esboço em cima da mesa de trabalho? O artista quer solidificar uma ideia através da forma que o gesso irá ganhar. Depois de estudar minuciosamente o desenho no papel, chama os pais para a oficina. Precisa da sua pose a fim de confirmar o ainda projecto. Serão o molde para as figuras a encenar.
De mãos nos bolsos, o homem tão idoso como a mulher no outro lado da janela, congela os passos que eventualmente daria. Com uma perna à frente da outra, simula um caminhar absorto – a cabeça ligeiramente inclinada lança um olhar em frente que observa apenas os pensamentos.
Tranquilo e compenetrado, o artista envolve os pais com a matéria moldável. O pai, numa posição que se quer mostrar dinâmica – em pé como quem caminha. A mãe, sentada de pernas cruzadas com as mãos velhas sobre uma mesa. Os modelos em voluntariado compulsivo assistem, sentindo na superfície corporal o invólucro que lhes é aplicado de forma cuidada e atenta. Quanto tempo terão de se manter nesta posição? Questionam em silêncio para não romper a criatividade do filho.
Quererá o homem olhar através da janela? Adivinhará uma imagem semelhante à da noite anterior? Aquela de uma mulher tão ou mais só que ele próprio. Nem por isso entrou nas noites anteriores e nem por isso pretende alterar o seu comportamento, hoje. A solidão em que se revê no reflexo da janela impecavelmente transparente é mais segura do que o encontro com a desconhecida – também ela segura na sua mesmice. Uma verdade bruta de que ambos preferem desviar-se, essa a que os separa num tempo sem relógio. Entrar no restaurante seria quebrar uma realidade escolhida, ainda que sem vida.
O silêncio necessário para que o artista dê continuidade à sua obra é supremo e perfeitamente respeitado pelos pais, mesmo que não se identifiquem com o desenho no papel vegetal pousado sobre a mesa de trabalho. Observam, quietos. Não há nada a dizer. Estão acostumados a serem usados. Gostariam de estar noutra posição, aquela que os une enquanto progenitores. Todavia, o filho nem sequer olha para eles como tal: apenas objectos de expressão de uma voz que desconhecem.
O que resta das vidas já esquecidas. Sempre os mesmos lugares, sempre as mesmas pessoas, sempre os mesmos adereços. Tudo em branco. Assim se observa deste lado de uma instalação que se pretende admirada, compreendida. Quem ali está encenado, deve ser alguém que se projectara de algum modo, mas que resultou num espaço em branco: tal qual a parede nua.
O artista escuta atentamente o mar. De quando em vez o seu olhar desvia-se para a espuma e os seus ouvidos atentos guardam a sonoridade das ondas que levemente tocam na areia fina. Agradece calado à disponibilidade dos pais por serem o modelo do que felizmente nunca foram. Agradece calado aos pais por se manterem sem questionar a obra que espera ser contemplada. Haverá alguém que se queira esvaziar de si para o admirar?






A amiga louca sempre nas nuvens...



... um corte no pé XI 
Sou louca, dizem. Navego nas nuvens. Não é metafórico. Viajo de avião com frequência. Todavia, calculo que não seja essa a razão da alcunha preferida dos amigos. As nuvens são, com efeito, um lugar – chamo-lhe assim – deveras interessante. A sua textura húmida é-me familiar. O ano passado, por exemplo, estive sobre um mar branco esponjoso. Subi ao Toubkal. Pernoitei com a minha amiga Margarida em Imlil, a vila marroquina na base da montanha mais alta do Norte de África. Começáramos o nosso périplo por terras marroquinas em Casablanca duas semanas antes.
Uma das noites foi no deserto, em Merzouga. O camelo foi o nosso meio de transporte nas dunas até ao campo de expedição. As oscilações, quase até ao vómito no percurso, não nos impediram de gozar essoutro mar arenoso sob o céu estrelado. Descalças nas areias douradas pouco dormimos. Até porque a minha amiga estava receosa: não fosse um qualquer escorpião acordar-nos à força. Mitos ou não do deserto, a verdade é que depois do jogo de cartas nocturno com as holandesas que nos acompanhavam nessa aventura, pouco dormimos. Também, quem no seu perfeito juízo perderia uma noite no deserto do Sahara?
Improvisámos, então, uma cama ao relento para melhor desfrutar dessa experiência, talvez, única. Contámos estrelas cadentes – foram suficientes para enumerar os nossos desejos: alguns já se cumpriram. Duas horas depois das pestanas se terem unido, despregavam-se e sentimo-nos impelidas a subir a duna mais alta antes dos primeiros raios de sol – o palco perfeito para contemplar o amanhecer.
Marrocos é um daqueles países que se ama ou se detesta. Um jargão que escuto amiúde. Abstenho-me de tecer juízos de valores. Para mim, cada lugar tem os seus encantos. Na minha perspectiva, o fundamental é desfrutar e captar amorosamente cada momento que me é concedido. Por isso, ir a Marrocos e não passar por Imlil, seria quase como ir a Roma e não ver o Papa (outro jargão – já se sabe: nunca vi o Papa!). Nessa vila, ficámos muito bem instaladas e calcorreámos as ruas e vielas até ao anoitecer.
Deitámo-nos com as galinhas (como o namorado da minha amiga Margarida gosta) para nos levantarmos antes do seu cacarejar. A nossa intenção era contemplar o nascer do sol durante o percurso ascendente. Foi maravilhoso! O caminho rugoso e verdejante contrastava com a paisagem desértica que dominara a viagem nos dias anteriores.
Nessa ainda noite, as horas sobre passos lentos e conscientes iam cedendo lugar ao dia, à medida que progredíamos nas curvas de nível. O céu ia transmudando. O azul índigo rasgava-se por uma linha vermelha que, mais veloz que o desejável, passava a laranja tornando-se então dourada: o sol ia despontando. Aos primeiros instantes da aparição da esfera de fogo sentámo-nos. Valia a pena uma pausa para assistir ao espectáculo – mesmo que diário, não deixa de ser um espectáculo arrebatador. No ‘Canto dos Seres’, de Pedro Sinde, encontrei uma descrição maravilhosa que me sinto compelida a partilhar:
“Estamos a meio da noite, no momento mais profundo da escuridão; subitamente começamos a ver surgir no horizonte uma luz que se vai intensificando; aparece gradualmente um fogo mil vezes mais intenso do que o de qualquer uma das estrelas que vogam no céu. A luz dessa fogueira é tal que ilumina a terra inteira num resplendor doirado. Não seria um milagre espantoso? Não tremeríamos de emoção e admiração perante tal mistério: uma fogueira surgindo subitamente, inesperadamente, do mais profundo da noite? É, porém, isso que a cada dia se repete: o nascer do sol - uma fogueira que do mais profundo da noite nos vem iluminar a terra imensa. Assim saibamos nós ter olhos para ver e alma para contemplar”.
Eu e a minha amiga Margarida estávamos em sintonia. Nada é garantido, nem tão-pouco o nascer do sol, muito menos no Toubkal. A nossa já altitude permitia-nos igualmente estar acima das nuvens, acima dos homens: é consolador a gente sentir-se de quando em quando... acima dos homens – como diria Manuel Laranjeira.



Desde o Chile


... Um corte no pé X



            A viagem ao Chile. Calculo que tu, leitor ou leitora queiras saber um pouco mais. Afinal, pouca informação te terá dado a minha querida namorada Margarida, de quem com efeito sinto tremendas saudades. É natural. Sou português e o sentimento da saudade deve estar impregnado nos meus genes, assim como nos meus conterrâneos. E tu leitora ou leitor, costumas viver esse sentimento amiúde? Confesso que tento desviar-me da saudade: mostra-me o quão importante são os afectos, ao ponto de se tornarem mais do que isso e de se transformarem em autênticas algemas. Felizmente, no que à minha namorada concerne, a saudade mútua não nos impede de sermos e estarmos como ambos queremos.
O mesmo não posso dizer da minha figura maternal. Sim, já terás uma mínima ideia da minha idade; mas os meus vinte e nove anos não impedem que a minha mãe me continue a ver como o seu lindo e muito querido menino: “Ai, o meu Jorginho... será que se alimenta em condições? Será que tem onde dormir? Onde andará ele?” – guardaste, leitor ou leitora? Ainda não te tinha revelado o meu nome: Jorge. Dou-te mais alguma informação. Tenho 1,85 m – só para ficares com uma pequena imagem da minha longa e esguia (sim, esguia, mas não menos atlética) estatura.
            Aquelas e outras questões são muito vívidas e poderás perguntar, leitor ou leitora como se gerem. Não se gerem. Aceitam-se! Assim como aceito as minhas próprias questões, também essas no âmbito existencial. Terás até percebido, leitor ou leitora, que terão sido essas dúvidas que me terão conduzido até Santiago do Chile. O frio que sentia em Janeiro foi apenas um pretexto. Sentia-me um tanto esgotado do ram ram do meu emprego. Todos os dias entrava às nove da manhã no banco e todos os dias chegava a casa a hora incerta, depois de ter atendido uma série de rostos tão impessoais que não sou capaz de te traçar uma fisionomia com acerto.  
Bom, na realidade, é provável que tal também se deva ao facto de enquanto no balcão tentar uma outra realidade. Viste o filme ‘A Vida secreta de Walter Mitty’, leitor ou leitora? O meu caso era efectivamente muito semelhante, com a diferença de me observar, qual espectador confortavelmente instalado numa nuvem. Não é raro que esta atitude onírica me coloque em situações embaraçosas e chego mesmo a duvidar-me no estado em que me encontro. Tal como Lao Tsé questionou depois de sonhar ser uma borboleta: ao acordar viu que afinal era um homem. Nesse momento, não sabia se era um homem que sonhara ser borboleta ou se era uma borboleta que sonhava ser um homem. Às vezes eu não agarro o sonho; outras vezes não desperto... da realidade. Prefiro-me no sonho – e nas nuvens! Por isso, voei até ao Chile e daí para outros lugares – dar-te-ei pormenores a seu tempo.
Pergunto-me, então, quando observo em complacência a brancura macia sob os meus pés: estarei nas nuvens ou as nuvens estarão em mim? De que substância é feita a felicidade? De que substância é feita a liberdade? Calma, leitor ou leitora! Nem sempre divago sobre essas questões, pese embora tal me ocupe com certa frequência. De qualquer modo, é a planar nas nuvens que me sinto realmente bem. Diria mesmo que esse é um dos meus lugares preferidos: a paisagem é quase sempre singularmente extraordinária. Não é por isso estranho que aí me deseje o mais tempo possível.
Se pudesse manter-me-ia sempre nesse plano – a vista tende a ser muito mais abrangente. Consigo ter uma perspectiva global da realidade e não me retenho no que é normalmente acessório. Senti isso o ano passado na Madeira – onde fiz o baptismo de vôo de parapente. Como era a primeira vez, saltei acompanhado de um monitor. O vento nesse dia era brando, mas o suficiente para subir, subir bem alto. E do alto das nuvens, com o mar azul sob os meus pés, deslumbrei-me com a ilha das flores.
No parapente, qual sofá aéreo e sem chão, contemplei os socalcos de cultivo, as veredas e escarpas, as praias de cascalho e ao fundo o Vale do Curral das Freiras. “És doido, Jorge”, escutei quase de imediato. Ora, quem como eu já saltou de para-quedas, sabe perfeitamente que o vôo de parapente em tandem é para meninos. Foi o meu pai, outrora orgulhosamente para-quedista na tropa, que ofereceu o curso! Ficou todo satisfeito quando o seu Jorginho mostrou gosto em seguir as suas pisadas aéreas. Como dizia, saltar de para-quedas – sozinho! –dispara todas as endorfinas e mais algumas e nas várias fases.
A primeira aquando da passagem para a asa. No alto dos mil metros, sentado na borda da avioneta, a transferência para o vazio da asa é uma sensação indizível. Erguer-me para me transpor para a asa. E se o pé falhasse? Não falhou! Com as mãos apoiadas na barra da asa, o momento seguinte é elevar um dos joelhos até ao peito, contar até três e lançar-me para trás. O que é o mesmo que dizer, atirar-me para o espaço sideral. Cinco segundos contados e o para-quedas abre-se. E depois... depois é planar, planar... As mãos nos comandos guiando a velocidade da descida e a trajectória; mais para a direita, mais para a esquerda. O que não é propriamente o mais relevante. O fundamental é mesmo tentar desfrutar pelo maior período de tempo.
O último momento de tensão: a aterragem. A técnica de aproximação ao solo, a fim de evitar impactos bruscos nos joelhos e tentar uma abordagem suave do corpo ao relvado. Foi no último de quatro saltos: uma branca; falhou qualquer coisa. Esqueci-me totalmente dos procedimentos para a aterragem e embati de rabo no chão! A minha namorada Margarida observava-me estarrecida. Ficou em pânico: terei caído de cinco ou seis metros de altura. A fissura no cóccix diagnosticada pela radiografia ainda hoje me impede de estar mais de hora e meia sentado.
Deve ser uma das razões por que prefiro voar e planar ao invés de me sentar... no balcão do banco! Já não aguento mais os clientes. Muitos, como eu, sem dinheiro e sem saberem  como esticá-lo. Não saberão eles que o dinheiro não é como como as chicletes. Antes fosse, mascar e deitar fora. Mas não é bem assim. Na verdade, compreendo-os muito bem. Tivera eu uma árvore pejada de notas de cem euros e é quase certo que não mais me veriam sentado por mais de quinze minutos. A não ser que fosse com os pés debaixo de uma mesa rodeado de amigos com bom vinho maduro – tinto de preferência!






Dar sangue...






15 de Abril de 2014
Hoje fui dar sangue. Apesar dos níveis da hemoglobina estarem um pouco abaixo do ideal para a dádiva, a médica foi compassiva e autorizou. Lembrou-se de mim. No mês passado desloquei-me ao IPO para esse efeito, mas o sangue apresentava-se ainda mais débil. Dessa vez fiquei um tanto desapontada – não estava a contar com a rejeição. Não que seja de todo estranho; pelo contrário. Era até frequente. Mas em 2012, quando regressei da Índia, alterei definitivamente os meus hábitos alimentares. Retirei o animal da roda de alimentos e o sangue como se revigorou. Na época fiquei agradavelmente surpreendida. Seis meses depois de ter passado a alimentar-me de forma distinta, estava com os níveis da hemoglobina nunca vistos!
Quando regressei da Austrália em 2013, fiz uma tatuagem. Era necessário esperar pelo menos seis meses até nova dádiva. Não aguentei tal espera e duas semanas antes de findar o prazo, como estava no IPO para ver uma amiga, pensei ser o momento certo. E foi. Saí feliz do IPO. Dera um pouco de mim e sentia-me muito bem fisicamente.
Uma meia verdade à médica quando perguntou se fizera alguma tatuagem, piercing ou endoscopia (e afins) nos meses anteriores. Afinal, duas semanas não fariam diferença, pensei: era uma questão de protocolo.
Há uns tempos, em conversa num grupo de pessoas que se haviam reunido para uma meditação colectiva, mencionei que era dadora. A facilitadora do grupo disse algo que me fez pensar. Contesta totalmente as dádivas de sangue: na sua perspectiva, dar sangue tem implicações sob o ponto de vista energético. Isto é, ao dar o meu sangue este será distribuído sabe-se lá por quem, com a agravante de isso me provocar um qualquer desequilíbrio. A mesma pessoa era apologista da atitude dos crentes em Jeová: recusam liminarmente a transfusão de sangue. Mesmo quando a vida está em perigo. Desconheço a razão. O que sei é o do senso-comum – não aceitarão por entenderem que o sangue é proibido da alimentação e que a dádiva da vida é concedida apenas por deus. Ainda cheguei a pensar se seria por um motivo semelhante à da facilitadora: a de rejeitarem os fluídos de estranhos.
Nunca reflectira sobre o assunto até então. A tal pessoa reiterava veementemente a necessidade de nos resguardarmos e protegermos nessa dimensão; para si, muito mais que biológica. Como se depreende, as minhas cogitações não me conduziram à negação de me partilhar no pouco que sou. Na realidade, creio que todo a pessoa dadora de sangue se sentirá grata ao escutar: “sim senhora, está apta a dar sangue!” É com efeito um sentimento de gratidão que se difunde pelo meu ser.
A partilha também é isso. Pelo menos para mim. Dar sem esperar absolutamente nada em troca. A dádiva de sangue é provavelmente um dos exemplos mais ilustrativos do que me para mim significa a partilha. Não faço a mínima ideia de quem será a pessoa receptora de parte do sangue que me corria nas veias e artérias. E contudo... que paz sinto por terem aceite o que eu queria dar. Muito obrigada!

Abril em Nogueira*




Este ano a Páscoa acontece em Abril, o que torna este mês ainda mais cheio. Mais cheio de comemorações relevantes também para as gentes de Nogueira. Para além da celebração da ressurreição de Cristo, que exalta um novo nascer na aldeia serrana, as comemorações não menos relevantes da Revolução, às quais acrescem os dias dedicados à Imprensa (a 13), ao Livro (a 23) e à Dança (a 29).
Vivi muitas Páscoas em Nogueira. E prontamente uma torrente de memórias. Desde logo, as janelas coloridas de colchas ao passar da procissão. Os banhos eram no dia anterior, para Domingo de manhã não haver perdas de tempo, e assim nos juntarmos ao cortejo dos homens de opa. O meu avô Alfredo – que nasceu a 10 deste mês – estava sempre na frente. Outros transportavam os círios e outros elementos religiosos alusivos à data. Vestidos de branco com o azul nos ombros, o porte dos homens era ainda mais altivo. Os semblantes sérios, mas em regozijo pela honra de integrarem um momento de celebração. Os cantares começavam com o senhor prior à saída da Igreja. No meu tempo era o senhor padre Borges.
Quando chegavam ao largo da capela de Santo António, era a nossa vez de nos juntarmos à procissão. Seguíamos entoando os mesmos cantares: com ou sem boa voz. Mas isso não interessava nada. Depois da missa, era tempo de correr para casa e aguardar o compasso.
De porta em porta, o Zé Amaro desde cedo fez parte do grupo com ou sem a campainha que nos fazia bradar: “estão a chegar; já entraram em casa da Tia São, vamos lá”. Vamos lá, como íamos a todas as casas quantas podíamos. Afinal, em Nogueira existe um grau de parentesco entre quase todos, por mais ténue que seja: acabamos por encontrar um ramo que liga os coelhos aos pereira, os nunes aos nina...
Em cada casa cerimoniosamente preparada para receber a cruz, podíamos comer mais uma amêndoa. Assim pensávamos as crianças. Uma amêndoa ou um naco do bolo folar. O ovo no meio não retirava um dos sabores que o meu palato melhor recorda. Quando chegava a casa do meu padrinho, era tempo de receber o meu próprio folar. Durante muitos anos era uma nota de cinco contos: obrigada padrinho!
Em Abril... águas mil: mas desde que nasci, que este mês tem uma importância vital para os que sofreram com a guerra colonial e com os quarenta e oito anos precedentes. Tenho a mesma idade da revolução. Parte da sua razão de ser, transformou a vida dos meus pais e consequentemente a minha.
À pergunta em forma de piada, onde estavas no 25 de Abril, responderia com os meus pais: ainda em Luanda. Um ano depois e com um ano estava em Portugal. Não tenho, pois, qualquer memória vivida das ruas cheias de gente, acalentadas pelos militares cansados de ver os cadáveres dos seus companheiros a aportarem como tordos em Lisboa. Seguramente um dos maiores leitmotif para a revolução ela própria. Também não tenho qualquer memória dos cravos: as fotografias são os elementos que se juntam às histórias de um tempo anterior – o da ditadura, o da guerra colonial...
Qualquer tentativa para descrever esses dias revolucionários seria, com toda a certeza, assaz redutora. A única coisa que me ocorre registar é o facto de com o fim da ditadura ter advindo a esperança de liberdade. E esse é um ideal que prezo de tal modo, que a minha concepção de felicidade cabe toda na busca de assim viver. Sou filha, pois, não apenas dos meus pais, mas igualmente da descolonização e da liberdade que passa muito pelas escolhas que podemos agora fazer.
Calculo que os mais jovens desconheçam, como eu, o temor que se vivia antes de 1974. Bastava que se juntassem mais de duas pessoas na rua, e já a PIDE defraudava qualquer ensaio de conspiração: a sua leitura de pessoas em grupo. Em Nogueira isso não acontecia. Mas os que vinham de Coimbra, após meses de estudo, saberão o que quero dizer.
Hoje ainda valorizo mais este mês: comemora-se o dia do livro. O livro. Um bilhete para outros lugares, para muitas outras pessoas, para tantas histórias mais ou menos reais. A viagem vai acontecendo no desfolhar de cada página. Não tenho dúvida que o mundo se ampliou e vai crescendo por cada livro que me trespassa, que me adentra. Estou certa que muitos me são permitidos ler pela liberdade conquistada. 
Liberdade, livros... tanto em Abril. E tanto mais. Também é tempo de celebrar a imprensa: é esta que permite que este texto chegue a si, que lê o Chapinheiro. Não é um jornal qualquer. É o jornal das gentes de Nogueira: as que se permanecem física ou emocionalmente. A forma de nos ligar ao que importa: os afectos. E os da terra são muito, muito fortes. É por isso que Nogueira renasce em muitos momentos festivos, como na Páscoa.
Abril é também o mês para lembrar a dança; um mês primaveril – que melhor estação para celebrar dançando? Quem dança é mais feliz, diz o meu irmão, digo eu, dizem todos aqueles cujo corpo se mexe ao mais leve ritmo escutado – só porque sim. A Primavera: a minha estação preferida. Um mês que já consente muitas cores nos jardins, com as árvores muitos verdes, com folhas cada vez mais largas. Um mês da Primavera em crescendo nas cores, cheiros e sons: a estação dos amores, dizem. A temperatura começa a ser bem mais aprazível e o céu cada vez mais azul. Mesmo que o ditado nos diga que em Abril águas mil. 

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro