Fotografia de um instante*
Há palavras que nos tocam como beijos de uma criança.
Há sons que nos adentram como o abraço da avó.
Há cores que se espalham tão brilhantes que nos
iluminam o caminho.
Há gestos simples que, de tão subtis, se sentem como
uma leve brisa de Primavera à beira-mar.
Há bebidas tão suaves, que nos alimentam tanto como um
fausto jantar.
Comecei deste modo, a propósito da obra “A quinta dos animais”,
inicialmente traduzida para português como “O triunfo dos Porcos”. A sua
publicação remonta a 17 de Agosto de 1945. Um livro da autoria de George Orwell
que me tocou profundamente. Há palavras que continuam (e continuarão) a
reverberar em mim. A parábola do autor é, na minha perspectiva, uma metáfora
muito actual. Actual em demasia, diria até. Em particular quando se resgata o
último dos princípios instituídos pelos animais. Um princípio adulterado pelos
porcos que se encarregaram de liderar, de forma totalitária, os restantes
animais em revolta contra os proprietários da Quinta do Infantado: “Os animais
são todos iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Na sua origem, o
mandamento era ‘apenas’: “Os animais são todos iguais”.
O que resta da essência da Política? Aquela que se reportava
à organização de uma cidade-estado, a cidade dos cidadãos. Quando os cidadãos
que a ‘administram’ se posicionam como mais iguais do que os outros, com mais
direitos do que aqueles a quem, em teoria, estão a servir...
Servir ou controlar. Como noutra obra tão ou mais
emblemática do mesmo autor: “1984”. O fictício (?) ‘grande irmão’ é de tal
ordem visível na sua ‘invisibilidade’ aparente, que a distopia publicada em
1949 continua a ser fonte de fervorosos debates. Actualmente, quando se pára
para reflectir um pouco – neste tema, nem sequer é necessário aprofundar o
nível de reflexão –, é facilmente perceptível que não existe (quase) nada que
escape ao controlo e escrutínio alheio.
Se parte da responsabilidade é individual, uma grande
parte é totalmente incontrolável e mesmo desconhecida do comum dos mortais. Só
quando nos detemos em determinados pormenores (só na aparência) despiciendos é
que nos ocorre questionar: Como diabo é que isto veio aqui parar? Como diabo se
sabe que estou aqui ou acolá a fazer isto ou a comprar aquilo?
Dá que pensar...
As teorias da conspiração – se é que são teorias e se
é que são conspirativas – deixaram, no entanto, de ser uma fonte de
‘pre-ocupação’ para mim. Há muito que compreendi que não tenho controlo sobre
quase nada, tão-pouco sobre a minha própria privacidade. Desisti de me
incomodar. Guardo a energia para dimensões mais relevantes e enriquecedoras.
Procuro ler mais, por exemplo.
Escuto mais música.
Abro mais os olhos para caminhar de forma mais atenta.
Uso menos roupa, menos coisas, para assim captar
melhor a temperatura dourada do sol de Verão.
Saboreio mais lentamente um refresco de melancia,
sentindo o abraço dos meus sobrinhos, que são cada vez mais.
“Tiaaaaa!!” – o Rodi, a Matilde e a Carlota. Uau! As
lágrimas até saltam quando o Gu me pergunta expectante: “E tu vens, tia?” (ao
espectáculo de Dança onde, entretanto, actuou muito feliz por estar em palco a
realizar o que adora).
Quando a Íris sorri e ri... Ah, um ano já: a Íris, no
dia 9 de Agosto! A minha ‘sobrinha’ mais nova. Há mais ‘sobrinhas’ e
‘sobrinhos’ das minhas amigas – ‘irmãs’ que me acompanham e enchem o coração.
Que bom que temos máquinas fotográficas; desse modo
temos como gravar instantes de alegria; desse modo temos como tornar esses
instantes eternos, não apenas no coração, mas também na memória futura.
No dia 19 deste mês comemora-se mundialmente a
fotografia. A data que a Academia Francesa anunciou como sendo da invenção do
daguerreótipo, em 1837, por Louis Daguerre. O daguerreótipo foi considerado,
então, como um presente de Daguerre para o mundo. E nós agradecemos a
possibilidade de fotografar, mesmo que as fotografias se fiquem pelo formato
digital. Pelo menos assim não se gastam recursos...
Contudo, tenho de confessar que a fotografia impressa
dos meus sobrinhos e das pessoas que me são queridas são e serão um dos
presentes que me acompanham, também nas viagens. Até porque me transportam em
viagens... no tempo e no espaço.
* Texto publicado no Jornal Chapinheiro
Mapas e fronteiras...*
No dia 1 de Julho, a TAP – transportadora aérea
portuguesa – celebra mais um aniversário. A sua inauguração ocorreu em 1953.
Mas em Portugal, é sabido, esse é apenas o corolário de séculos de histórias,
de séculos na História dos Descobrimentos. Não fosse o povo português um povo
ávido pela descoberta de novos ‘mundos’.
Foi em Julho, também, mas no dia 8 em 1497, que Vasco
da Gama iniciou a viagem marítima desde a Europa, até à Índia. É possível que o
ensejo para os Descobrimentos tenha sido suscitado pela necessidade de
expansão, de expansão do território. Sendo certo que não existia mais espaço
terreno a conquistar e descobrir nas imediações, o mar, o além-mar tornou-se o
desconhecido a descobrir... a conquistar, também...
É de realçar o contributo que os portugueses, desde o
início do século XV até meados do século XVI, tiveram na composição dos mapas através
das explorações marítimas por todo o mundo. O ‘Planisfério de Cantino’ ilustra
isso mesmo, sendo a mais antiga carta náutica portuguesa conhecida. Data de
1502 e resulta daquela mesma viagem de Vasco da Gama, juntamente com a de
Cristóvão Colombo à América Central, Gaspar Corte-Real à Terra Nova e a de
Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500.
Já no século XX, outras viagens se estrearam. Viagens
que, pelo menos na minha perspectiva, demonstram o desejo incontestável da
humanidade em descobrir novos lugares, lugares além do limite planetário. E
assim, em 1969, no dia 16 de Julho, era lançada Apollo 11 – a primeira missão
espacial tripulada que, quatro dias depois (contabilizados pelo relógio terreno),
aterrava na Lua. E assim, no dia 20 de Julho de 1969, Neil Armstrong era o
primeiro homem a pisar solo lunar. Materializava, deste modo, o mapa lunar,
ampliando, por consequência, a espacialidade ‘palpável’ do universo.
Se este evento já aqui foi referido, o tema desta
crónica motiva-me à sua alusão. Tão-somente demonstra a necessidade que o ser
humano tem de conhecer e expandir os seus limites. A necessidade, parece-me, de
ultrapassar as suas próprias fronteiras, sejam elas físicas, territoriais,
sejam psicológicas, emocionais, ou de qualquer outra índole. Por conseguinte,
questiono-me amiúde acerca da possibilidade de vivermos sem limites, sem
fronteiras – reporto-me, em concreto, à ausência de limites e fronteiras
territoriais, à ausência de muros fronteiriços e todos os sinónimos que se
possam aqui incluir.
É muito provável que as viagens me tenham aberto os
olhos, e ampliado os outros sentidos para outras experiências sensoriais.
Sim, são incontáveis os estímulos a que tenho estado sujeita, através do espaço
além-fronteiras e, por consequência, experimentando a passagem de fronteiras;
uma passagem tantas vezes aborrecida.
‘Aborrecida’ é um adjectivo aplicável para quem se vê
obrigado aos procedimentos de segurança, controlo e vigilância dos serviços de
estrangeiros e fronteiras. É uma situação ‘aborrecida’ pelos incómodos que
causa a todos quantos viajam por uma razão ou por outra. Todavia, esse é apenas
um dos inconvenientes das fronteiras. Talvez seja o mais facilmente aceite, de
todos os aspectos desconfortáveis inerentes às viagens. Pode passar a imagem de
uma menina petulante e/ou mimada. Mas trata-se, sob o meu ponto de vista, muito
mais do que um contratempo. Para mim, é a constatação da fronteira, do limite,
do muro construído que obsta a um passo livre no território, a mais um passo no
mundo, no planeta.
Por isso, mimada ou petulante, em cada passagem pelos
corredores fronteiriços, em cada carimbo no passaporte, questiono-me sobre a
necessidade, para mim vazia de sentido, em abrir ou passar pela câmara de
vigilância os meus poucos pertences, como se fosse uma criminosa.
Ademais, nos dias de hoje, a distância que separa o criminoso de um terrorista
é uma separação apenas aparente. Aos olhos de quem controla os postos
fronteiriços todos são suspeitos, todos sem excepção são alvo de controlo.
Todos sem excepção são vigiados: para quê? Para manter a ilusão: “O meu país
está seguro”, ou, “No meu país, só entra quem eu quero”, ou “No meu país quem
manda sou eu”. No limite: “Este país é só para quem eu deixo entrar”.
Estou a exagerar, é certo. Mas o exagero permite a
caricatura e a caricatura também é o excesso possível: um excesso visível!
Seria interessante perscrutar os políticos – os
presidentes das repúblicas, ou federações por exemplo – e incitá-los a desenhar
o mapa do mundo à luz dos seus desejos mais recônditos, mesmo que insidiosos.
Seria interessante observar a dimensão que cada um daria ao ‘seu país’. Talvez
baste abrir os manuais de geografia e história de cada país. Talvez a
comparação mostre diferenças no destaque. O mapa-múndi da Rússia será
certamente díspar do mapa-múndi dos EUA.
Pergunto-me, ainda, se a perspectiva com que nos são
mostrados os mapas é casual. Porquê o norte assim e o sul assado, colocando no
hemisfério norte os países ditos desenvolvidos... quando o planeta Terra é
redondo (ou uma elipse).
Bem sei que estes são assuntos algo polémicos. Na
verdade, se se pensar no primeiro Rei de Portugal, nascido no dia 25 de Julho
de 1109, e se se pensar no seu cognome – o Conquistador –, logo se encontram
mais achas para a fogueira da territorialidade e para o desenho dos mapas
políticos... e quantas vidas se continuam a perder para ganhar mais um
centímetro de poder...
Para terminar e terminar de um modo mais terno,
relembro o dia 26 de Julho: o dia dedicado aos avós. Este ano exaltarei os avós
dos meus queridos sobrinhos, e o leitor e a leitora?
*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro
Na Casa do Povo de Nogueira do Cravo*
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Fotografia de Amadeu Pereira |
É inevitável, para
mim, que a crónica deste mês se reporte à apresentação do livro, Borboleta Azul
– um postal da América Latina.
Após o lançamento
em Fevereiro passado, foram realizadas três sessões de apresentação, a última
das quais na Casa do Povo de Nogueira do Cravo, no dia 7 de Maio.
Foi com grande
alegria e satisfação que regressei ao Porto no final da tarde desse Domingo, o
corolário de um processo que envolveu diversas pessoas e entidades. É por esse
mesmo motivo que me sinto impelida a referenciar essa sessão. O cuidado e
atenção de que fui alvo confirmam-me, mais uma vez, como sou uma pessoa
privilegiada. De facto, as pessoas que me rodeiam e as circunstâncias que me
são concedidas viver provocam-me constantemente um profundo sentimento de
gratidão.
Quando entrei na
Casa do Povo fiquei extasiada. A sala de soalho, onde tantas vezes dancei nos
bailaricos e festas da Aldeia, estava diligentemente preparada. Nas cadeiras
enfileiradas sentaram-se muitos familiares e amigos que fizeram questão de
demonstrar o seu apoio e afecto à neta da Tia Altina.
Por detrás da
cortina do palco, onde fui atriz de teatro durante um Verão da minha
adolescência, ensaiava o Grupo de Danças e Cantares de Nogueira do Cravo. Quando
tudo ficou a postos, escutei e meneei-me com as alegres canções do grupo,
amorosamente empenhado, que dava então início à sessão.
A mesa estava linda.
O centro de flores coloridas enchia o meu coração, sobre a toalha cujo bordado
reconheci – o desenho e o ponto de flor eram seguramente da avó Altina e da tia
Lurdes. Na parte frontal da mesa encontrava-se pousada uma borboleta azul.
Houve alguém que com muita arte e bom gosto desenhou, recortou, pintou e
decorou uma bela mariposa índigo! Ah!
As palavras
escutadas enaltecendo o livro e a autora comoveram-me sobremaneira,
mostrando-me que sem dúvida alguma estava em casa; tão bem acolhida me sentia.
No final, depois
de autografar os inúmeros livros que as pessoas Presentes adquiriram (muito
obrigada!) foi tempo de lanchar. Sim, porque para além da mesa central, havia
uma outra repleta de variados doces e salgados. E não é que também o delicioso
bolo de chocolate estava decorado com borboletas??!!
As dádivas não se
ficaram por aqui. Para além de ter a ocasião de rever pessoas queridas com quem
há muito não estava, fui agraciada com uma peça laboriosamente executada para o
dia: a ferramenta do ardina – o símbolo de Nogueira do Cravo, com uma
dedicatória alusiva à apresentação da Borboleta Azul na Casa do Povo de
Nogueira do Cravo.
Torna-se, por
consequência imperioso, agradecer, mais uma vez, a todos quantos estiveram
implicados na organização e preparação da sessão. Desde as pessoas do Jornal
Chapinheiro, às pessoas da Casa do Povo, da Junta de Freguesia de Nogueira, da
Câmara Municipal de Oliveira do Hospital e, claro, do Grupo de Danças e
Cantares.
Se o/a leitor/a me
permite, coíbo-me de citar nomes. Não vá dar-se o caso de, por lapso, alguém
ser omitido. Como sou humana, não seria estranho que tal acontecesse. E não
quero, de todo, incorrer em erros ou indelicadezas. Acredito que todas as
pessoas que contribuíram para a minha felicidade se sintam incluídas. E foram
todas as que estavam na sala e todas as que por algum motivo não lhes foi
possível estar.
De facto, sinto-me
feliz e profundamente grata. Cabe-me, no entanto, referir, que a minha
felicidade só será total quando receber o testemunho de que o livro ganhou
novas vidas.
A(s) vida(s) de
ser aberto e lido e partilhado. Afinal, como muito bem afirmou um dos queridos
intervenientes durante a sessão, a obra só está completa quando é lida. Assim
sendo, convido todos os leitores e leitoras do Chapinheiro a abrirem o livro
numa página ao acaso e a lerem uma das curtas histórias. Desse modo, em cada
visita ao livro, este renascerá e terá oportunidade de continuar a viver, novas
vidas...
O livro, seja este
ou qualquer outro, é muito mais do que um objecto. É um transporte que deseja
sair da estante. Convida à leitura e, através desta, à viagem.
Para mim, essa é uma
das grandes riquezas de um Livro: ser um passaporte para outros mundos, para
outras culturas, para outras pessoas, para outras vidas. Atrevo-me a dizer,
para mais Vida. E sem grande esforço, sem sair de casa. Ler, para mim, é
viajar, é conhecer e aprender.
Quem sabe o voo da
borboleta estimule o leitor e a leitora a continuarem a ler, a viajar, nem que
seja de uma página para outra, de um livro para outro...
* Este texto foi
publicado no Jornal Chapinheiro
Expandir
Expandir. Um verbo muito utilizado
por P no regresso de um retiro de Vipassana em que participei, no Algarve. O
contexto e o modo como P proferia a palavra, frisando diversas vezes a
necessidade de contemplar o mar e a linha do horizonte, pairou-me durante algum
tempo. Até que consegui transpor para palavras...
A alteração da boleia para o Porto,
meia hora antes da saída de Tavira, proporcionou-me um passeio pela Costa
Algarvia e pela Costa Vicentina. Se é verdade que poderia ter chegado ao Porto
dez ou onze horas antes, também é verdade que o passeio de carro expandiu o meu
vocabulário sensorial.
Após dez dias em silêncio
meditativo, a P avisara à saída que desejava ver o mar, pela necessidade que
sentia de se expandir. O retiro de Vipassana ampliara o seu ser e a linha azul
do vasto horizonte seria um modo de abraçar a sua infinitude – dentro do
possível.
À época morava num apartamento, no
oitavo e último andar de um edifício, cuja altitude e proximidade ao mar me
permitiam a sua contemplação constante. Enquanto realizava as refeições diárias
e me sentava para trabalhar na mesa da sala, o meu olhar era insuficiente para
abarcar a vastidão oceânica. A Qualidade e a Força do verbo, sugeridas por P,
ajudaram-me finalmente a atentar e a captar o seu significado, experienciando-o
de forma consciente. Desde então, a linha do horizonte insinua-se dia após dia,
num azul distinto em cada manhã, mostrando-me irrevogavelmente uma vida sem
limites.
Se aquela necessidade de P me
impacientava pelo avançar das horas, hoje reconheço que a linha do horizonte, o
mar, e o oceano se tornaram elementos ainda mais relevantes para mim,
consagrando o seu estatuto venerável. Em cada passeio à beira-mar, sou
estimulada a reflectir sobre o termo que P aplicou ao abrir os braços na Ponta
de Sagres.
A imensidão do oceano é comparável
à vastidão que me esmagou quando estive no deserto de Atacama ou quando
caminhei na cordilheira dos Andes. A comparação que arrisco deve-se à
angústia que me assoberbou. A confirmação vívida da minha pequenez ante o
infinito, incomensurável e a grandeza que a Natureza exibe e oferece sem
hesitar.
Compreendo finalmente, dentro do
que me é possível, experienciando e indo, por isso, para além da teoria, o
conceito de sublime. Os meses que tive o privilégio de me sentar à janela do
oitavo andar encetaram transformações no modo de apreender a
incomensurabilidade da linha do horizonte. Se, por um lado, entrevia o infinito
como imensidade, como expansão; por outro lado, era assaltada pela noção de limite
e fronteira. Se em ocasiões decisivas, a tranquilidade era o estado perante um
porvir desconhecido – a possibilidade de ser imenso, vasto, ilimitado,
infinito: podia ser qualquer coisa, em qualquer lugar, com qualquer pessoa –;
ocasiões houve em que me observei eminentemente limitada.
A frase de Mempo Giardinelli ajuda
a expressar-me: “A imensidão tem essa virtude: de tão ilimitada impõe limites”1.
O limite da minha própria existência, da minha própria finitude, das minhas
limitações físicas, psicológicas e emocionais. Sou, pois, impelida a
questionar-me de forma constante: Qual é o meu limite? Até onde posso ir?
Essa imensidade, essa
impossibilidade de abarcar a totalidade da vida, por vezes influencia-me
negativamente, como diria Ryzard Kapuscinsky. Como continua o autor,
referindo-se à Rússia, tudo perde o vigor, se dilui, se afunda na imensidão
disforme. Se, por um lado, o mundo, a vida ela própria, é “um espaço amplo,
aberto e infinito, por outro, essa mesma imensidão sufoca tanto que nos tira a
coragem e não conseguimos respirar”2.
Creio que os limites que
pressinto, e amiúde me imponho, ressurgem pelo receio do desconhecido:
estabeleço (mesmo que de modo inconsciente) uma linha intransponível e, no
medo, escuto a voz interior: só posso ir até aqui, para lá deste muro (mesmo
que invisível) está o incognoscível; quero eu atravessar essa passagem apenas
visível ao medo? Mesmo sabendo que esse medo me terá sido incutido
socialmente... mesmo sabendo que é um produto cultural e historicamente desenvolvido?
Das fronteiras físicas que o meu
corpo impõe emergem os desassossegos face à vastidão do deserto, das altas
montanhas, dos mares e dos oceanos.
De quando em vez sinto uma certa
coragem e abro-me e dou espaço ao silêncio apaziguador. Coloco-me frente a
frente com o desconhecido, com o que está para além de mim. E compreendo então
que a fronteira que me limita é um corpo permeável, cuja entropia permite a
expansão do ser que em mim habita. Se me permitir à mudança, se me permitir
despir do medo construído pelos acordos sociais a que fui submetida pela
formatação social e histórica, tenho possibilidade de multiplicar as
perspectivas do meu olhar que, ganhando novos ângulos, provoca inevitavelmente
um aumento da amplitude do ser em mim.
E rendo-me então: talvez o céu
azul-celeste não é seja o limite, talvez a noite mais ou menos estrelada, com
ou sem luar seja alcançável.
E lembro-me então que o corpo em
que me escondo é um limite só para mim intransponível – se acaso me esquecer
que o universo é ilimitado.
Se me entender como um fractal,
relaxo e compreendo que em mim cabe o mar imenso, a vastidão do deserto e o
horizonte infinito.
Abro os braços, como P, e deixo-me
invadir pelo som ondulatório na areia, pelo odor fresco da maresia e pelo céu
azul e expando-me. Sou muito mais que o corpo físico. Sou o universo inteiro,
infinito, ilimitado. Sou o oceano da vida, expandindo-me em cada P que importo
em mim, em cada grão de areia do deserto, em cada gota de água da chuva, do
mar, em cada estrela e noite de luar.
E o mar à vista é, enfim, o meu
limite infinito, se me permitir expandir.
10 de Maio, de 2017
Porto, Portugal
1. Fim de
Novela na Patagónia, Mempo Giardinelli, Quetzal
2. O
Império, Ryzard Kapuscinsky, Campo das Letras
Maio, ao Sol*
Quando se desliza
de forma elegante pela superfície dos dias, ou de modo consciente pelos
caminhos do tempo, é possível distinguir o sorriso de uma criança.
Desenrugando a testa, elevando o
olhar e estendendo os braços, é possível captar os raios silenciosos da grande
estrela: o Sol. Para a sua celebração, além de muitas outras ocasiões mais
ou menos festivas, estipulou-se o dia três de Maio, para que nos lembremos de
homenagear - pelo menos neste dia - a nossa principal fonte de luz, fonte de
vida.
Num céu de silêncio, ao amanhecer,
escolho, com frequência, alongar os meus dias, iniciando-os em contemplação.
Caminhar, correr ou mesmo sentar-me na primeira hora do dia, dá-me oportunidade
de inspirar a espessura do Sol nascente. Observo a transmudação das cores: o
cor-de-laranja passa a amarelo dourado e, sem que me dê conta, o sol está mais
alto num amarelo pálido, quase branco. Os seus raios atravessam as árvores,
escorrendo em fios de luz até ao solo vibrante. As copas resplandecem num verde
exuberante e as folhas exalam o vapor de um orvalho que se vai dissipando...
devagar.
Maio, quando a Primavera segue
embalada no azul dos dias imensos, ao som da sinfonia das aves multicolores, é
o mês que mais aprecio. O meu mano faz anos, por exemplo. Mas não só.
Enquanto estudante universitária,
havia uma semana de boas razões para a minha preferência. A enxurrada de
memórias formiga incessante... o sorriso é acto contínuo.
Enquanto professora na faculdade
era, igualmente, com regozijo que recebia essa semana académica: uma semana sem
aulas - umas quase férias.
Nos dias que correm, o meu olhar
inunda-se de emoção, pelas minhas amigas que recentemente são mães pela
primeira vez. Aquelas que admiro profundamente pela coragem de seguir os seus anseios
maternais, mesmo depois dos quarenta anos.
As noites serenas e suaves, em que a
lua cheia nos presenteia com a sua luz morna, enchem-me o coração,
recordando-me que a liberdade vai e vem, quantas vezes como as marés. Talvez
seja por esse motivo que se terá instituído um dia para celebrar mundialmente a
liberdade de imprensa, também a três de Maio.
Inspiro profundamente, uma, duas,
três vezes e prossigo, reflectindo sobre a liberdade de um modo geral e a de
imprensa em particular. Os olhos doem-me com as notícias que a cada dia nos
pesam, enfraquecendo e, em muitos locais, aniquilando as acções e operações de
quem se arrisca a divulgar o que nem sempre é desejável que se torne púbico.
A realidade contaminada rompe muitos
corações. Mas a resignação fatalista também não é visível, tão-pouco, aceite
por aqueles que se entregam a salvar vidas. Refiro-me aos médicos e enfermeiros
que edificam uma das maiores, senão mesmo a maior instituição humanitária do
mundo: a Cruz Vermelha. Como o seu fundador, Henry Dunant, nasceu a oito de
Maio, escolheu-se esse dia para enaltecer todos quantos se dedicam às vítimas,
tendo como princípios de acção a humanidade, a imparcialidade, a neutralidade,
a independência, a unidade, a universalidade e o voluntariado. Princípios que,
apenas na aparência, são facilmente colocados em prática no quotidiano de todos
nós. Com efeito, as notícias que nos chegam de muitos lugares mais ou menos
distantes revelam, tristemente, como os homens agem sem qualquer sentido de
humanidade.
A mim, cabe-me, com a liberdade que
me é conferida, pelo menos lembrar que, mesmo que não tenha capacidade de acção
ou de decisão a um nível macro, tenho o poder de contribuir a cada instante
para o bem-estar das pessoas que me rodeiam. Cabe-me, dentro do que me é
possível, aplicar e viver os mesmos princípios da Cruz Vermelha, em cada
interação social em que me envolvo. Sejam as pessoas mais ou menos próximas.
Todas são, sem excepção, seres da mesma Natureza.
Além de outras comemorações em Maio,
o dia vinte e dois é dedicado ao autor português. É-me impossível deixar passar
esta oportunidade... No dia sete estaremos na Casa do Povo de Nogueira, a fim
de apresentar o livro Borboleta Azul, um postal da América Latina. Aí, o leitor
e a leitora encontrarão diversas crónicas do Chapinheiro que foram escritas
enquanto além-mar. Será, certamente, um dia muito feliz para mim, pois haverá
tempo e espaço para partilhar as experiências vividas com as pessoas de
Nogueira. São, pois, todos muito bem-vindos nessa tarde do dia de todas as
Mães.
Desta vez posso terminar esta
crónica com um até já, Nogueira do Cravo! E muito obrigada ao Chapinheiro pela
alegria de poder contribuir, de alguma maneira, para o jornal da nossa Aldeia.
*Este texto foi publicado no Jornal O Chapinheiro
Fora da caixa...*
A
Primavera chegou e o azul do céu está mais azul. Um dos motivos que torna esta
estação fonte da minha predilecção. Outros elementos irrefutáveis há,
nomeadamente a exuberância dos aromas das árvores em flor, os cantos apaixonados
dos pássaros esvoaçantes, o toque dos raios solares mais quentes, que se
estendem cada vez mais e por cada vez mais minutos ao longo do dia.
É
tempo de renovação. O clima convida à limpeza, abrindo as janelas que durante o
Inverno permaneceram fechadas; abrindo armários e libertando-os das roupas mais
quentes, mais escuras. Uma das práticas habituais nesta mudança de estação é a de
examinar a roupa: aquela que não é usada há pelo menos dois anos é oferecida a
quem eventualmente possa dar-lhe mais e melhor utilidade. Desse modo, cria-se
espaço no armário, ao mesmo tempo que outra pessoa lhe dá uma nova vida.
Num
dia de Primavera1, os olhos podem demorar-se numa amendoeira em
flor, enquanto o polegar e o indicador podem segurar uma gota do orvalho
reflectindo os primeiros raios de sol. Num resplandecente amanhecer, os ouvidos
podem dilatar-se com o trinar de um rouxinol ou o assobio de um melro.
Num pôr-do-sol, à
beira-mar, as mãos e os pés podem refrescar-se nas águas salgadas que as ondas
mais ou menos rasas conduzem até ao areal (não arrisco a mais que isso nas
águas gélidas das praias do Porto).
Entre
o mar e o parque, entre o parque e o mar, a exuberância de cada segundo é uma
manifestação guardada pelos sentidos, enquanto os pés, apoiados nos pedais,
pressionam languidamente de maneira a prolongar uma cena que só na aparência é
banal. Pedalando com atenção, a experiência de uma manhã de Primavera pode providenciar
uma renovação há muito desejada, pelo menos inconscientemente.
Os
sentidos expandem-se, abrem-se, receptivos à generosidade da Natureza. Perfumes
sem fim, fragrâncias silvestres multicolores espalham-se pelos jardins,
desabrochando curiosidades nas borboletas... azuis, brancas, amarelas. Que
aroma é este? Que odor é aquele?
Assim sopram as
flores azuis florescendo viçosas... Oferecem-se, partilham-se aos olfactos mais
ou menos atentos. Durante as deslocações de bicicleta pelas ruas do Porto e
arredores, tenho tido o privilégio de inspirar estes e outros odores. Enquanto
pedalo por entre os caminhos, ruas e ruelas surgem-me no pensamento inúmeras
coisas. E pergunto-me, então, se as caixas em que vivemos e nos movemos nos
concedem esses encontros com a ternura primaveril? E se os compartimentos, em
que nos guardamos, nos protegerem ao ponto de nem sequer nos apercebermos do
sentido do mundo, dos sentidos do mundo?
Nessas
deslocações diárias, se bem que seja fundamental permanecer em estado de alerta,
observo-me inspirando e pedalando, ao mesmo tempo que o meu olhar pára no
interior das caixas automóveis, nas quais ‘jazem’, com frequência, seres
adormecidos que ignoram aqueles que pedalam a seu lado, por vezes também
distraídos, e até embriagados, pelas cascatas de flores que se sacodem lançando
pétalas (azuis) pelo ar e para a estrada. Note-se que quando o dia acorda de
uma noite com chuva primaveril, essa desconcentração tende a aumentar, por
parte de certos ciclistas. As camélias vermelhas luxuriantes inclinam-se para
os moradores das cidades, oferecendo os seus aromas... quase em vão.
Em
vão... Existe uma grande maioria das gentes das cidades que, sem se aperceber,
vive numa moldura. O alarme que vibra de uma caixa sonora assusta o mais
inocente dos sonhadores. De compartimento em compartimento desloca-se pela casa
até à hora de sair. Da porta de casa caminha sonâmbulo para outra caixa que, em
sentido descendente, o transporta até à garagem, onde entra num compartimento
ambulante. Nesse recipiente fechado segue para outra garagem, a partir da qual
subirá noutra caixa para outro compartimento onde permanecerá grande parte do
dia...
De
caixa em caixa, de compartimento em compartimento, está ausente e protegido do
exterior. A pele deixa de sentir o ar ameno da Primavera, o olfacto não
distingue o cheiro de uma rosa e de uma erva molhada; o olhar só capta, como se
de um écran de televisão se tratasse, imagens fragmentadas: vermelho e pára;
verde e avança; amarelo e abranda. Como pode ser frágil o corpo que vive sem o
vento perfumado de um salgueiro, sem a maresia fresca num dia de Primavera.
Numa
curta viagem de bicicleta os sentidos estão todos abertos ao mundo. De um lado, golfadas de aromas flores de todas as cores. Do
outro, golfadas de gases dos canos de escape. Como os
que alguns autocarros da área metropolitana do Porto lançam sem prurido nos
trajectos entre Leça, Matosinhos, Porto e concelhos próximos. Os da Resende (é
forçosa a sua alusão) serpenteiam a velocidades inquietantes com o objectivo de
cumprir horários. O seu pára-arranque é um atentado ao ciclista e aos
transeuntes que com eles se cruzam. Desfazem-se na rua, ardem nas ruelas, soltando
nuvens negras. Às vezes tenho a sensação que recebo ondas de alfazema de um
lado e baforadas de pura poluição do outro. É desconcertante; ao mesmo tempo,
confesso que é em sorriso que ultrapasso esses autocarros azuis. Não sem sentir
um pouco de tristeza por aqueles que parecem viver de forma contínua em caixas,
vendo tudo através de um écran, como se encaixados numa moldura, ainda que
protectora...
Mas é
tempo de celebrar o toque de uma libelinha, em noite de lua cheia. À beira-mar
ou à beira-rio, contemplando o reflexo do luar. Mas que se cante fora da caixa,
qualquer caixa, caso contrário é impossível sentir a Primavera no espelho
decorado com amendoeiras, camélias ou crisântemos...
1: Intertexto com ‘O eremita viajante’ de Matsuo Bashô
* Este foi publicado no Jornal Chapinheiro
O voo d’ A borboleta azul
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Fotografia de Miguel Gonçalves |
A borboleta azul iniciou voo n’A Casa da Boavista. A casa
senhorial onde reside o Chiado Café Literário. A casa onde, há quase quinze dias,
se realizou o lançamento d’A borboleta Azul. Nenhum livro foi atirado ao ar,
como alguns amigos brincaram. Muitas borboletas azuis voaram para outras mãos –
quem sabe seguindo a sugestão de Luís Pires: o representante da Chiado Editora.
Durante a sua intervenção, Luís Pires soprou palavras doces
e suaves, num tom de voz igualmente macio e sereno. O tempo parou. O tempo
voou. Isso sentiu a C, que há pouco me dizia isso mesmo. Luís interveio num
pestanejar tão rápido, como intenso. Sugeriu a todas as pessoas presentes que
cuidassem dos livros, dando-lhes vida. O livro ganha vida quando é aberto,
quando é folheado, quando os olhos percorrem e absorvem as palavras ansiosas
por serem lidas e acolhidas.
Na sala Fernando Pessoa, uma das inúmeras divisões mágicas
d’A Casa da Boavista, Luís propunha aos muitos amigos presentes que, em vez de
colocar este livro, assim como qualquer outro, de imediato numa estante, se lhe
desse uma oportunidade para existir. À entrada de casa, por exemplo, ou na
mesinha de cabeceira; o caso da C... A C que, por estes dias, tem a companhia
nocturna de uma borboleta azul, estando deste modo, receptiva à metamorfose
onírica.
Na véspera da sessão de lançamento, Luís deixou-me
apreensiva ao lembrar-me do inevitável. Estava prestes a dar asas à borboleta,
qual mãe resignada que vê partir os filhos para viverem as suas vidas de forma
autónoma. Na perspetiva de Luís, publicar é um acto de coragem. Só então me dava
conta que deixaria de ter ‘poder’ sobre aquela borboleta. Enquanto agrilhoada
no mundo virtual, tinha capacidade de a mudar ou mesmo eliminar ou ‘deletar’,
como dizem os amigos brasileiros. Está livre. Cada palavra, cada linha, cada
frase será lida, interpretada sem que eu tenha como dizer: “ah, não era isso
que eu queria escrever; ah, que giro, foi isso que entendeste; ah esquece,
ah...”
Ah... Nada a fazer a partir de agora. O papel regista e
guarda para quem desejar ler o que há muito escrevi, de uma forma mais ou menos
pessoal, ficcional; enfim, de forma sentimental – a interpretação da G. A amiga
que telefonou a felicitar as histórias publicadas. “Expões-te muito” - acrescentava.
Ah, ah. Arrisquei sem estar a pensar se estaria ou não a expor a pessoa que em
mim vive as experiências... Mas a vida vai sendo vivida com a mesma intenção
consciente... Só quando me entrego, sem medo!, aprendo, apreendo, experiencio
cada instante que me é concedido viver.
As rugas de expressão ganharam profundidade através do
sorriso que cada pessoa presente estimulava. A gratidão crescia minuto a
minuto, envolvendo-me numa cápsula intemporal.
A sessão prosseguiu com o professor José Manuel Constantino,
que apresentou com a delicadeza e cuidado, ao mesmo tempo com a graça,
boa-disposição e descontracção que lhe reconheço. A escolha perfeita para a
lagarta que, libertando-se do casulo, se transforma – neste caso ainda insegura
– num livro com asas... azuis. As palavras escritas e pronunciadas, pelo amigo
professor, com carinho confirmaram, novamente, como estou tão bem rodeada.
Com efeito, a sala estava cheia de gente linda e muito querida
que na mesma medida me fazia sentir querida e linda. Os meus olhos captavam
sinais que se repercutiam tumultuosamente pelas veias e artérias. O sorriso,
captado na fotografia de Miguel Gonçalves, era a minha reacção. Como não?
Na sala Florbela Espanca, que a Maria Noronha preparara para os
autógrafos, os abraços sucediam-se. Agradecia, assim, de forma modesta às
pessoas amigas que me presentearam com a sua presença, enquanto bebericavam o Porto
de Honra na sala contígua – mais um dos muitos recantos acolhedores, expirando
inspiração, d’A Casa da Boavista. Um espaço que me chamou novamente e onde,
enquanto degusto um chocolate quente delicioso (com leite de soja, ah, ah), sem
pensar nos meses que esta bebida quente se deterá nas coxas, escrevo estas
linhas. Era impossível guardar para mim o sentimento de gratidão que me enche,
mesmo que, mais uma vez, me exponha... Expondo, talvez, a fragilidade que me
sustenta. Afinal, a vida é uma dádiva, que nem na aparência é garantida. Como
uma borboleta, é frágil, efémera e voa, voa...
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Fotografia de Miguel Gonçalves |
2 de Março de
2017
Porto,
Portugal
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