Expandir




Expandir. Um verbo muito utilizado por P no regresso de um retiro de Vipassana em que participei, no Algarve. O contexto e o modo como P proferia a palavra, frisando diversas vezes a necessidade de contemplar o mar e a linha do horizonte, pairou-me durante algum tempo. Até que consegui transpor para palavras...

A alteração da boleia para o Porto, meia hora antes da saída de Tavira, proporcionou-me um passeio pela Costa Algarvia e pela Costa Vicentina. Se é verdade que poderia ter chegado ao Porto dez ou onze horas antes, também é verdade que o passeio de carro expandiu o meu vocabulário sensorial.

Após dez dias em silêncio meditativo, a P avisara à saída que desejava ver o mar, pela necessidade que sentia de se expandir. O retiro de Vipassana ampliara o seu ser e a linha azul do vasto horizonte seria um modo de abraçar a sua infinitude – dentro do possível.

À época morava num apartamento, no oitavo e último andar de um edifício, cuja altitude e proximidade ao mar me permitiam a sua contemplação constante. Enquanto realizava as refeições diárias e me sentava para trabalhar na mesa da sala, o meu olhar era insuficiente para abarcar a vastidão oceânica. A Qualidade e a Força do verbo, sugeridas por P, ajudaram-me finalmente a atentar e a captar o seu significado, experienciando-o de forma consciente. Desde então, a linha do horizonte insinua-se dia após dia, num azul distinto em cada manhã, mostrando-me irrevogavelmente uma vida sem limites.

Se aquela necessidade de P me impacientava pelo avançar das horas, hoje reconheço que a linha do horizonte, o mar, e o oceano se tornaram elementos ainda mais relevantes para mim, consagrando o seu estatuto venerável. Em cada passeio à beira-mar, sou estimulada a reflectir sobre o termo que P aplicou ao abrir os braços na Ponta de Sagres. 

A imensidão do oceano é comparável à vastidão que me esmagou quando estive no deserto de Atacama ou quando caminhei na cordilheira dos Andes.  A comparação que arrisco deve-se à angústia que me assoberbou. A confirmação vívida da minha pequenez ante o infinito, incomensurável e a grandeza que a Natureza exibe e oferece sem hesitar. 

Compreendo finalmente, dentro do que me é possível, experienciando e indo, por isso, para além da teoria, o conceito de sublime. Os meses que tive o privilégio de me sentar à janela do oitavo andar encetaram transformações no modo de apreender a incomensurabilidade da linha do horizonte. Se, por um lado, entrevia o infinito como imensidade, como expansão; por outro lado, era assaltada pela noção de limite e fronteira. Se em ocasiões decisivas, a tranquilidade era o estado perante um porvir desconhecido – a possibilidade de ser imenso, vasto, ilimitado, infinito: podia ser qualquer coisa, em qualquer lugar, com qualquer pessoa –; ocasiões houve em que me observei eminentemente limitada.

A frase de Mempo Giardinelli ajuda a expressar-me: “A imensidão tem essa virtude: de tão ilimitada impõe limites”1. O limite da minha própria existência, da minha própria finitude, das minhas limitações físicas, psicológicas e emocionais. Sou, pois, impelida a questionar-me de forma constante: Qual é o meu limite? Até onde posso ir?

Essa imensidade, essa impossibilidade de abarcar a totalidade da vida, por vezes influencia-me negativamente, como diria Ryzard Kapuscinsky. Como continua o autor, referindo-se à Rússia, tudo perde o vigor, se dilui, se afunda na imensidão disforme. Se, por um lado, o mundo, a vida ela própria, é “um espaço amplo, aberto e infinito, por outro, essa mesma imensidão sufoca tanto que nos tira a coragem e não conseguimos respirar”2.

Creio que os limites que pressinto, e amiúde me imponho, ressurgem pelo receio do desconhecido: estabeleço (mesmo que de modo inconsciente) uma linha intransponível e, no medo, escuto a voz interior: só posso ir até aqui, para lá deste muro (mesmo que invisível) está o incognoscível; quero eu atravessar essa passagem apenas visível ao medo? Mesmo sabendo que esse medo me terá sido incutido socialmente... mesmo sabendo que é um produto cultural e historicamente desenvolvido?

Das fronteiras físicas que o meu corpo impõe emergem os desassossegos face à vastidão do deserto, das altas montanhas, dos mares e dos oceanos.

De quando em vez sinto uma certa coragem e abro-me e dou espaço ao silêncio apaziguador. Coloco-me frente a frente com o desconhecido, com o que está para além de mim. E compreendo então que a fronteira que me limita é um corpo permeável, cuja entropia permite a expansão do ser que em mim habita. Se me permitir à mudança, se me permitir despir do medo construído pelos acordos sociais a que fui submetida pela formatação social e histórica, tenho possibilidade de multiplicar as perspectivas do meu olhar que, ganhando novos ângulos, provoca inevitavelmente um aumento da amplitude do ser em mim.

E rendo-me então: talvez o céu azul-celeste não é seja o limite, talvez a noite mais ou menos estrelada, com ou sem luar seja alcançável.
E lembro-me então que o corpo em que me escondo é um limite só para mim intransponível – se acaso me esquecer que o universo é ilimitado.
Se me entender como um fractal, relaxo e compreendo que em mim cabe o mar imenso, a vastidão do deserto e o horizonte infinito.

Abro os braços, como P, e deixo-me invadir pelo som ondulatório na areia, pelo odor fresco da maresia e pelo céu azul e expando-me. Sou muito mais que o corpo físico. Sou o universo inteiro, infinito, ilimitado. Sou o oceano da vida, expandindo-me em cada P que importo em mim, em cada grão de areia do deserto, em cada gota de água da chuva, do mar, em cada estrela e noite de luar.
E o mar à vista é, enfim, o meu limite infinito, se me permitir expandir.



10 de Maio, de 2017
Porto, Portugal

1.     Fim de Novela na Patagónia, Mempo Giardinelli, Quetzal
2.     O Império, Ryzard Kapuscinsky, Campo das Letras

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