Volta ao mundo


            Gelado! Aí está, comendo gelado. Chega Markus, lambuzado de gelado. Um doce para consolar a solidão de viajante. Americano de nacionalidade, nascido na Lituânia há sessenta e oito anos.
            Olaf, nascido na Alemanha trinta anos antes, outro viajante; não desta vez. Olaf está na Colômbia de férias. Professor de Geografia e Matemática em Dortmund. Markus já não tem de se preocupar em ganhar a vida. A sua vida é viajando, quando não está na Tailândia. O país onde escolheu ter uma casa. É bom ter onde chegar. O que sentiu Olaf há três anos, depois de um ano de licença sabática para uma viagem à volta do mundo. Não chegou, todavia aos sessenta e cinco países já percorridos, ou pelo menos tocados, por Markus. Olaf viajou pelos cinco ou seis continentes, conforme se considere a Índia como pelo menos um subcontinente. Os dois por aí vaguearam pelo menos um mês.
            Markus mais de uma vez. Olaf foi compelido a interromper a sua grande viagem. A fuga à vida que o asfixiava. Nada consome, nem tão-pouco parece angustiar o americano com amigos em todo o mundo.
            Olaf adora dizer à mãe desde miúdo: "Tchauzinho, vou dar uma volta". Foi com os acampamentos organizados pelos escuteiros que o gosto por viajar se criou e desenvolveu, para não mais parar.
            Naquela viagem de sabática, Nepal foi o país por onde se deteve mais tempo. Dois meses. Até ao campo-base do Evereste, caminhou Markus. Um país extraordinário. É unânime a vontade de regressar. O que se escuta de quem tocou o solo dos Himalaias. Imperdível. Também a Índia é paragem obrigatória, pelo menos para aqueles que parecem buscar algo que nem sempre conseguem verbalizar.
            Foi em Goa, na praia, depois do transiberiano até à Mongólia e daí para a China, seguida do Nepal, que Olaf desfrutou das praias indianas. Apesar de Goa suscitar algumas dúvidas sugeridas pela arquitectura e notória influência portuguesa. "Vais para Goa? Oh, isso não é Índia..." Talvez os resquícios da colonização contrastem com as tendas de Mumbai sem qualquer estrutura sustentável.
            Em Goa, duas semanas. Mergulhava, nadava, desfrutava das águas quentes do Mar Arábico. Uma onda mais que uma onda arrastou sem freio o rapaz de compleição magra. O seu rosto caiu na areia nada fofa de beira-mar. As fotografias dos raios-x enviadas aos médicos alemães aconselhavam uma cirurgia urgente. A proximidade da fractura do osso zigomático ao globo ocular, denunciava futuros problemas na visão. Olaf regressou à Alemanha, aproveitando a época natalícia para consolar a mãe da morte da sua irmã gémea.
            No final do mês de convalescença voou para Istambul. Os cheiros e as cores descritas pelo Nobel Orhan Pamuk inebriaram o alemão. Conheceu Markus que se afastava por algum tempo do local que sente como casa em Chiang Mai. Juntaram-se e voaram para o Japão para se arregalarem com Tóquio.
            Daí para as avenidas largas de Melbourne, que extasiaram os dois viajantes. Desaguaram em Kindlepark. Assistiram a uma parada pelos direitos de igualdade. O parque estava ao rubro. A música era de um DJ acompanhado de uma cantora que dizia ser uma tarde absolutamente divinal. E eles ali estavam, bebericando um copo de vinho branco enquanto apreciavam os piqueniques, a festa, a praia, a feira de artesanato.
            A Nova Zelândia ficou de fora. Outra Nova conheceram. A Caledónia. A língua francesa não inibiu os viandantes de se fazerem entenderem. Há sempre alguém disponível e os gestos, não obstante as diferenças culturais, continuam a ser uma linguagem universal. Não há desculpas. Como alguns colombianos parecem recear: "só sei falar espanhol".
            Também Aurélien só falava francês. Outro viajante pelo mundo. Comprou, por pouco mais de dois mil euros, um pacote de dez viagens de avião. Um ano de sabática num hospital de Paris, onde é enfermeiro.
            Da Caledónia, Olaf decidiu viajar para os Estados Unidos da América. Um mês sobre carris em muita terra, muita terra. A forma que encontrou para se preparar psicologicamente para regressar ao local de onde escapara. Aprendeu muito sobre si. Compreendia então o que era necessário mudar na vida.
            "Aprendemos a adaptar-nos não apenas às circunstâncias, mas sobretudo à cultura e aos modos de vida dos países onde aterramos. Somos nós, os estrangeiros, que temos de nos ajustar" - a reposta de Markus a Juan, um jovem bogotano de vinte anos que perguntava aos viajantes qual a maior lição aprendida enquanto tal.
            Distinta, a de Olaf. Evasiva, até. Nunca pensara nesses termos. Neste momento é turista. De férias na Colômbia. Está em paz com o seu trabalho na Alemanha. Colocou em prática uma das mudanças que desejava promover na sua vida. Viver a profissão de professor como missão. Sentir que o seu trabalho na escola secundária de Dortmund é válido. Paralelamente, trabalhar menos e mudar de escola de quando em quando. Prefere ter um salário menor e ter mais tempo para se cultivar. Ainda assim é muito rico, ganha mais do que precisa e gasta.
            Em Villa de Leyva, Olaf reencontrou Markus ao fim de quase três anos. Aurélien juntou-se para uma caminhada até à Lagoa Sagrada de Iguaque. A juventude do francês não o coloca em vantagem ou desvantagem relativamente aos outros dois homens. A partilha foi acontecendo naturalmente e todos foram invadidos uns pelos outros. O que sentiu Juan, escutando os testemunhos com avidez. O colombiano em breve viajará para a Alemanha a fim de desenvolver os seus estudos de mestrado.
            A terceira mudança ainda não sucedeu na vida de Olaf. Markus é um espelho da sua carência. Os gelados não são conforto suficiente. Quem sabe até ao fim das férias viva um encontro e descubra a companheira com quem compartilhar e talvez regressar a casa. Regressar para partir. Uma das razões porque é bom voltar a casa. Saber que é tão fácil pegar novamente na mochila e caminhar. Não para fugir, para buscar e então chegar... a casa. 


5 de Julho, 2015
Villa de Leyva, Colômbia


Na biblioteca*



Na biblioteca...

      As bibliotecas são relembradas no primeiro dia de Julho. A exemplo de outras datas, se existe a necessidade de comemorar certos acontecimentos, pessoas, lugares, provavelmente deve-se ao facto de serem ou estarem esquecidos. 
      Lembro-me de quando era miúda - passava parte das férias grandes em Nogueira do Cravo, em casa dos avós - e ficar muito espantada e encantada com a chegada de um autocarro diferente. Era a biblioteca itinerante! Uma das leitoras assíduas era a Sónia. Ficava extasiada pela possibilidade de ir a uma estante e pegar num livro para ler durante algum tempo, como se fosse meu. 
      Actualmente não passo muito tempo em Nogueira. Não sei, pois, se a biblioteca mantém o seu itinerário pela aldeia. O hábito, esse, mantém-se. As bibliotecas são lugares especiais, para mim. Sinto-me invadida pelos livros que habitam as prateleiras atrás de prateleiras. Passo muitas tardes a ler e a escrever em bibliotecas. Nunca me sinto só. Se um livro não me cativa, pouso e pego noutro. É tão fácil! E é tão fácil ler e levar para casa. Não há desculpas. O preço dos livros - na maioria dos casos elevado, é verdade (pelo menos para mim) - não me impede de aprender, ler, conhecer outros lugares, outras pessoas, outras vidas. 
      Em quase todas as povoações existe uma biblioteca. Em caso de tal não acontecer, passa de quando em vez um autocarro a fazer as vezes. 
Iguaque é uma pequena povoação no interior da Colômbia. Onde me encontro neste momento. Duas dezenas de casas, uma igreja, algumas lojas ou tiendas (em espanhol), um centro de saúde e a Alcadia (o equivalente à junta de freguesia). Está em construção um pavilhão desportivo - o que muito me apraz. Existe ainda uma pequena escola e uma biblioteca! Tem tudo! Até internet sem fios. O que quer dizer que se podem pesquisar ainda mais bibliotecas por todo o mundo.  Não há pois, desculpas, para não entrar numa biblioteca, nem que seja virtualmente. Assim como não há como justificar a falta de um livro para ler. 
      Existem outras datas importantes neste mês. Entre elas, no dia vinte, o dia do amigo ou da amiga. Ter um amigo ou amiga. Ser amiga (no meu caso) é uma das dimensões mais importantes da minha vida. Gosto do provérbio: "quem tem amigos não morre na prisão!" Estou sempre a salvo! Obrigada a todas as pessoas que aceitam a minha amizade e me guardam no seu coração, assim como eu as guardo no meu!
      Na amizade não há promessas. Não é necessário. Diferentemente da família, os amigos escolhem-se, ou somos escolhidos. Os contratos, os laços de sangue estão ausentes. O que está presente é somente, e  muito, o afecto. A quantidade é o menos relevante. O que importa é sentir que se se precisar há alguém que escuta, alguém que abraça, alguém que dá a mão. Estou sempre de mão dada. Mesmo que neste momento tenha um oceano a separar-me fisicamente dos meus grandes amigos e amigas, o sentimento que nos une é um porto de abrigo. 
      Não me refiro aos amigos das redes sociais. Se é verdade que muitas pessoas são amigas, também é verdade que conheço mal grande parte. Ainda assim, esta possibilidade mais ou menos virtual ajuda-me em certas situações. Infelizmente, conheço pessoas cujos únicos amigos que têm são esses que conhecem pelas fotografias. Talvez lhes surja a oportunidade de conhecerem pelo menos um desses amigos pessoalmente e quem sabe vir a sentir a verdadeira amizade. Quem sabe...
      No dia vinte e seis comemora-se o dia dos avós. A crónica do ano passado foi dedicada sobretudo a estas pessoas tão especiais. De todo o modo, é-me impossível passar ao lado e aproveito o privilégio deste espaço para dizer à minha querida avó que é uma pessoa linda.
      Conheço muitos avós. Desses, não há nenhum que não tenha como maior prazer na vida estar com os seus segundos filhos. Se o leitor ou leitora for neto ou neta, pode sempre aproveitar a deixa e fazer um telefonema, se a distância o exigir. Se estiver próximo ou próxima, que tal fazer uma pequena surpresa aos avós?

* Texto publicado no Jornal Chapinheiro

Noite em Iguaque *


Fecho a porta. Apago as luzes. Tranco a porta por dentro. Calo as vozes das crianças. Vai amor, que a noite é velha. E quem amou já não sente. Não assim. Choro. Maltratas-me. Bebeste demasiado. Hoje, como na semana passada.
Fecho a porta. Apago-te da minha vida. Lá fora, as estrelas e os pirilampos iluminam a noite. A casa está na obscuridade. Assim partiste o meu coração. Triste. Desiludida. O desamor habita-me. Os nossos filhos merecem mais que um pai que gasta tudo em álcool. Pior que esse desperdício são as tuas palavras. Pior que as tuas palavras são as tuas mãos brutas. Basta!
Fecho a porta. Apago as luzes. Apago-te da minha vida.
Vamos acordar. Amanhã de manhã. Vamos acordar. Tu, na rua como um cão. Eu com os filhos, em casa que deixou de ser a nossa. Vais pedir como um cão depois da ressaca. Pediste como um cão - acusaste-me tantas vezes. Desisti de contar. Os cães são fiéis. Tratam bem os donos.
Amanhã de manhã. Vamos acordar. Quando abrires a porta não estarei. Os teus filhos não precisam de ti. Assim! Não sabem o que é um pai.
Amanhã de manhã, acorda. Desperta. Ainda vais a tempo. Não de nós! Pelo menos de ti. Liberta-te da ressaca. Quem sabe, um dia, os teus filhos conhecerão o verdadeiro pai.
Fecho a porta. Esta noite. Amanhã de manhã. Vamos acordar.


*  Este texto foi escrito depois de ter acordado com a vizinha a bater-me à porta... Com medo. 


19 de Junho, 2015

Iguaque, Colômbia