Viagem à Índia III – cinco anos depois




Em Agosto de 2017, cinco anos depois de passar cerca de um mês em Pune, Índia, decidi voar novamente para esse subcontinente. Num tempo sem contrários e sem adiar por muito mais o futuro, a escolha recaiu sobre Nova Deli.
Foram necessários mais de dois meses para romper o cerco e finalmente consumar a compra. Nesse período em que vivi uma espécie de suspensão, confirmei a vontade de voltar a caminhar decidindo o primeiro destino, ao mesmo tempo que esperava o resultado de um exame médico de uma pessoa muito querida. Tranquila e segura, comprei a viagem. A partida será em Fevereiro de 2018. Curioso, é o facto de nessa altura perfazer cinco anos que terei aterrado em Melbourne, sob um céu azul luminoso, onde a temperatura cálida me salvou do frio invernal do Porto. Igualmente estranho, para mim, é o facto de ter sido em Fevereiro, mas de 2012, que fui pela primeira vez à Índia – Goa. Também nessa época, os 32º centígrados foram um aconchego, ainda que por apenas dez dias. De Mumbai, só conheço o aeroporto (razoavelmente bem, dado o número de horas à espera das ligações, sobretudo no regresso de Pune, onde perdi o avião...).
Se porventura as frases anteriores soam pretensiosas, os elementos expostos servem apenas para reforçar a ideia de que, pese embora seja a terceira vez que me aventuro sozinha para esse país, é-me difícil afirmar que conheço a Índia. Pelo contrário, Pune e Goa são duas cidades particulares e as experiências aí vividas foram em ambientes assépticos e muito cuidados pelas pessoas e entidades que me receberam.
Assim, mesmo que um dos critérios de selecção dos países a visitar seja a ausência de entradas, repito-me no destino, sem saudades do futuro. Ainda que, e há que dizer, a Índia não esteja na minha lista do ‘tenho de fazer’ antes de morrer.
Muita informação no parágrafo anterior, eu sei. Uma lista? De quantos itens? Quais as categorias incluídas nessa lista? Antes de morrer?
Ora bem... desde 2013 que elaboro uma lista de experiências a viver, lugares a visitar, pessoas a conhecer... antes de morrer. Como diria um amigo, antes de transitar, como diria outro amigo, antes de tudo acabar. Como diriam os budistas, antes de deixar esta vida (a quinquagésima?) ... vulgo, antes de ir desta para melhor, ou pior... antes de me tornar húmus!
Antes de tudo baixar e antes que o tempo me ganhe (ou não), estarei a voar. Será no dia 1 de Fevereiro, para Nova Deli – um destino que não constava naquela lista. O meu rol de lugares imperdíveis é, aliás, bem reduzido. São duas regiões – enormes – que quero experienciar antes de morrer, sabendo que todos os países que me são desconhecidos têm, quase de certeza, o seu encanto. A questão está relacionada com o tempo que me resta de vida. Pelo menos esta – no caso de haver outras, então vamos lá. Mas como não sei se existe alguma coisa para além da morte, quero viver o melhor possível, enquanto me é possível.
Calma! Não faço a mínima ideia de qual o prazo de validade deste corpinho, onde esta consciência habita, mas hoje pode ser o último dia viva e de boa saúde. Não é um chavão! Para mim, é evidente que para morrer basta estar viva. A morte é, seguramente, a única certeza que tenho nesta vida, sempre em mudança, impermanente. Assim sendo, repito-me: quero viver o melhor que sei e que posso, antes que o vazio me preencha e o silêncio me cale.
Estando de boa saúde, com alguns trocos no bolso (ainda que apenas o suficiente, mas o suficiente tem sido suficiente), comecei a sentir que estaria a criar ‘raízes’, como brincam os meus companheiros da Quinta. Cheguei do Rio de Janeiro no dia 25 de Setembro de 2016! Apesar de já ter voado (para a Madeira), não saio de Portugal há um ano, um mês e onze dias. Em Fevereiro, essa soma será muito mais avultada. Não é ironia, é uma necessidade de conhecer, de aprender, de desinstalar rotinas, de reinventar os dias, de crescer... cá dentro. É, talvez, uma insatisfação insaciável, mas de quê? Ainda não sei. Só sei que preciso aprender... como quem precisa repousar. E quero fazer a minha parte, quero fazer o que está ao meu alcance para, contrariamente à personagem Palomar, de Italo Calvino, sentir que a minha vida foi mais do que uma sucessão de ocasiões falhadas.
E então, porquê Índia, porquê Nova Deli? Pois bem. Os dois destinos na minha lista primordial são os Himalaias e a Patagónia, com a Terra do Fogo. No que ao segundo destino concerne, as sementes foram lançadas desde que optei por regressar a Portugal. Aliás, quando viajei para o Rio de Janeiro o ano passado, a mala ia preparada com a mochila para prosseguir viagem. Não obstante, depois de quase quatro meses a trabalhar para os Jogos Olímpicos sentia-me exaurida. Já para não dizer, confesso, que ‘morria’ de saudades dos meus amores e ainda não conhecia a minha ‘pseudo-sobrinha’ mais nova, nascida enquanto eu estava na terra do Samba. De maneira que, é verdade, adiei ir à Argentina. De qualquer modo, viajar por viajar também não é o meu registo, tão-pouco o de obter mais um carimbo no passaporte. Poucos dias depois de ter assentado arraiais (mas pouco, já se vê) comecei a envidar esforços (ainda não reconhecidos, ainda!) para ser chamada para Buenos Aires.
Enquanto isso não acontece... a vida não pára e o tempo é o meu maior tesouro. Daí que o queira desfrutar do modo que me parece mais adequado. E nesta fase pressinto que é apropriado agradecer a vida que me é concedida, glorificando-a, nomeadamente, indo até ao outro local que mais gostaria de visitar: o Tibete. Em concreto, realizar um trekking nos Himalaias. Pelo que me vou informando – estou a iniciar o trabalho de casa –, para entrar no Tibete e para aquele objectivo, é fundamental integrar um grupo autorizado, cuja saída é, geralmente, de Katmandu.
Nepal era o destino que tinha em mente. Nepal e Tibete, vá. Quando comecei a verbalizar esta minha vontade, uma das companheiras da Quinta perguntou-me: “E porque não ir para Katmandu, via Nova Deli? Já viste os preços? Costumam ser muito mais económicos...”
Aceitei a sugestão depois de pesquisar. De facto, a viagem é menos um terço do valor. Dava que pensar. E dá que pensar que no dia em que escrevo, já com o bilhete comprado para Nova Deli, as escolas da cidade indiana tenham sido todas fechadas... devido aos níveis de poluição. Dá que pensar.


A opção foi reflectida. Muito. Houve várias coisas a ponderar e até por que esperar. No dia em que fiz o clique para efectuar a compra, tudo me parecia possível. Continua a parecer. E ter em conta a distância de um dia desde essa megacidade até ao Taj Mahal, e ter em conta que terei oportunidade de rever pessoas que conheci noutros lados do mundo, e ter em conta que em Varanasi, de onde pretendo tomar o comboio para Katmandu, terei oportunidade de ir à margem do Rio Ganges, e ter em conta que terei finalmente a ocasião de conhecer parte desse subcontinente, faz-me acreditar que terá sido, é, será, uma resolução deveras interessante e, porque não dizê-lo, desafiante.
Será que um mês no norte da Índia é suficiente?

8 de Novembro, de 2017
Porto, Portugal

PS1: Para além das duas viagens mencionadas, só tenho mais três itens na minha lista: viver uma experiência, conhecer um escritor que muito aprecio e conversar com uma pessoa... talvez um dia destes.
PS2: As fotos aqui partilhadas ainda! não são ‘minhas’.





Contemplando a chegada do Outono*


É com profunda gratidão que me detenho a contemplar a passagem das estações. Este sentimento envolve-me com cada vez mais frequência e, no que respeita às quatro estações, acontece sempre que se nota a respectiva transmudação.  Desde logo, por viver num local onde que as quatro estações ainda (ainda!) são facilmente perceptíveis.
Não é necessário ser a pessoa mais atenta para reparar na diminuição crescente dos dias ou no acentuado arrefecimento nocturno – cada vez mais acentuado e cada vez mais arrefecido. Assim como não é difícil observar o solo pejado de folhas secas, ora mais amareladas, ora mais acastanhadas até ao tom mais avermelhado – que nos lembra o porquê de ser a estação das cores quentes –, como acontece com as folhas dos plátanos que povoam as cidades do Porto e de Matosinhos.
É facilmente reconhecível que me reporto, neste caso em concreto, à transformação dos dias, cada vez mais outonais... não estivesse o Outono tão próximo – escrevo a três dias do Equinócio de Outono (que começa – começou quando estiver a ler – no dia 22 de Setembro às 20h02!).
Se bem que já me tenha debruçado sobre o Outono neste espaço, é mais forte do que eu! Talvez por pressentir e sentir que é, sem dúvida, um enorme privilégio observar, percepcionar com mais ou menos atenção os pormenores anteriormente mencionados. Pormenores, só na aparência – a minha opinião.
Como ficar indiferente à mudança de tonalidades das copas das árvores que, lentamente,  se vão despojando das suas folhas?
Como ficar indiferente à neblina matinal, cuja camada espessa cobrindo os lagos do Parque da Cidade (do Porto) me dá a sensação de estar num local misterioso?
Como ficar indiferente à distinta posição do Sol quando se despede diariamente?... cada vez mais cedo. Já reparou? Ainda há umas semanas podíamos ler sem luz artificial até às nove da noite...
Como ficar indiferente ao nascer do Sol, cada vez mais tardio? Nas últimas semanas tenho despertado com a Lua no céu... índigo.
E como ficar indiferente ao facto de ser possível percepcionar estas transformações num país no qual, ainda (reforço), se distinguem as quatros estações?
E, mais ainda, como ficar indiferente ao facto de me ser possível observar, sentir, cheirar, escutar os elementos da Natureza?
Não é um pormenor ver, escutar, sentir, cheirar e até degustar os frutos da estação. As laranjas da Quinta voltam a ser muito saborosas. Os marmelos já estão em formato marmelada e geleia (adoro!) e as castanhas começam a pintar os corredores dos jardins.
Ah...
E, quando Outubro chegar, tudo isto será ainda mais exuberante... até o frio!
Pode ser que haja tarefas, afazeres, actividades, ocupações, trabalhos, etc., muito mais relevantes do que a ‘mera’ contemplação. Pelo menos é esse o lema das nossas sociedades híper produtivas: “Seja produtivo!”  Sociedades em que o trabalho (ainda) é a condição humana, como defendia Hannah Arendt.
Mas não será a contemplação uma dimensão humana tão importante quanto o trabalho? Mais um pormenor, enaltecendo a Arquitectura (e também a Paisagista) – celebrada mundialmente na primeira segunda-feira de Outubro – que se repercute em espaços como o Parque da Cidade do Porto: este parque terá sido projectado por Sidónio Pardal, com o objectivo que este fosse um espaço, sobretudo, contemplativo. Os bancos de jardim, estrategicamente posicionados, em frente aos diversos lagos são disso exemplo.
Contemplar é um verbo – logo implica acção. Só na aparência a contemplação é passiva. Com efeito, estar de forma consciente em contemplação, a contemplar, contemplando, é uma decisão. É escolher admirar e reconhecer com gratidão a beleza que nos rodeia, que nos envolve... e que (ainda) nos está disponível.
Contemplar, para mim, é reconhecer que essa a beleza e harmonia da Natureza (por exemplo) não é um dado adquirido e que, só na aparência, acontece por acaso... Acontece, É!, também para nos lembrar que a vida não é garantida, que a sua precariedade é tão ou mais palpável que a morte. E que, assim sendo, é primordial contemplar cada instante, cada gesto, cada som, cada cheiro, cada cor, cada sabor, cada folha avermelhada que cada plátano nos oferece, só porque sim... aparentemente.
Bem-vindo (ao) Outono!

*Este texto foi publicado no Jornal Champninheiro

Em 2017, 71 a 17...*



           
            
           Dizem que o Natal é quando uma pessoa quiser. Partindo desta premissa, creio que posso dizer o mesmo em relação a qualquer outra data invocativa de uma qualquer celebração ou comemoração. Por exemplo, pegar na data de aniversário de alguém que represente uma figura comummente celebrada e enaltecer essa figura, um símbolo ou até a própria pessoa.
            Assim sendo, recorro ao espaço que me é concedido neste jornal de Nogueira do Cravo para evocar e exaltar o dia do pai. Neste caso, aproveito a data de aniversário do meu pai, o Amadeu Pereira, que em 2017 completa 71 anos no dia 17 de Setembro. Que engraçado... só quando registei no papel é que me apercebi da capicua: 71 a 17 (em 2017). Ora, ainda bem que pela primeira vez, em quase quatro anos, decidi escrever directamente sobre o aniversário do meu pai, do Pai.
            Parabéns!, pai Amadeu. Parabéns! por teres alcançado esta idade tão bonita, de forma tão jovem e jovial. Parabéns, pai!
            Obrigada, pai, por sempre me apoiares, até nas decisões mais difíceis, em que nem sempre terás compreendido os meus modos, as minhas escolhas, os meus caminhos... Obrigada!
Obrigada por me fazeres sentir protegida.
Poderia continuar a usar e abusar deste espaço no Chapinheiro para enaltecer o meu pai, prefiro, no entanto, louvar todos os pais e lembrar a todos aqueles que, como eu, têm o privilégio de ser filho ou filha de uma pessoa que fez, que faz e sabemos que fará tudo o que esteve, que está e estará (para lá do) ao seu alcance para nos ajudar, apoiar no que for (e até nem) for necessário – mesmo que em determinadas momentos lhes seja difícil lidar com aquilo que até nem concordam, com aquilo que até lhes causa algum desgaste. Mas acreditando sempre, como é o caso do Amadeu – e acredito que seja o caso de muitos pais –, que o caminho escolhido pelos filhos terminará num destino que afinal era o que eles, de um ou outro modo, sempre desejaram, sonharam e trabalharam para que fosse atingido: a felicidade dos seus filhos.
Sim, porque sei que não estou a escrever sobre um amadeu ou um pai em particular. Reporto-me a qualquer progenitor. Todos, sem excepção, fazem o melhor que sabem e (quase) sempre o melhor que podem para assegurar o bem-estar e felicidade dos seus filhos. Ainda que não saibam quais os princípios para a felicidade dos mesmos. Afinal, esse conceito é tão abrangente quanto relativo, tão desejado quanto ambíguo e tão simples como difícil de o viver na prática. Não obstante, é sem dúvida esse o objectivo da maioria dos seres humanos: ser feliz. Sabendo que num mundo onde os valores são vividos de forma relativa, em que tudo depende de tudo (ou até de nada).
Por aquela razão relativa, também sei que o que me faz feliz é (ainda) distinto daquilo que faz o meu pai feliz. Como é distinto em todas as pessoas que têm entre si, pelo menos, duas décadas de vida vivida.
Importa-me destacar a ideia de que ser filha de um pai como o Amadeu, é, indubitavelmente, um privilégio. Um privilégio do qual me sinto profundamente grata – ainda que em determinadas épocas tenha sido eu a não compreender certas decisões suas. E isto é válido, estou certa, para quase todos os filhos que nem sempre concordaram em seguir o caminho apontado e até escolhido pelo seu pai.
Repito-me: o meu pai, sei e sinto hoje, fez e escolheu e decidiu de acordo com a informação que lhe estava disponível e, como tal, do melhor modo que lhe era possível. Muito obrigada, pai!
Bom, agora que tive os meus dez minutos, não de fama, mas de atenção do querido ou querida leitora, faço-lhe um convite: vamos ao cinema. Humm... não é uma ida ao cinema vulgar. Convido o leitor ou leitora a sentar-se na poltrona da sala – aquela em que o pai se costuma sentar para ver o jogo do Sporting (ahah), para ler o jornal ou fazer a sesta. Não sem antes resgatar uma fotografia da sua infância em que está a jogar à bola, ou a andar de bicicleta ou a jogar ou a brincar ao que quer que seja com o seu pai. Observe a imagem, já sem cor, mas vívida na memória. Pouse a fotografia e feche os olhos, em silêncio, e viaje até esse instante e deixe-se levar pelas cores, pelos cheiros, pelos sons das gargalhadas...ahhhhh

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Fotografia de um instante*



Há palavras que nos tocam como beijos de uma criança.
Há sons que nos adentram como o abraço da avó.
Há cores que se espalham tão brilhantes que nos iluminam o caminho.
Há gestos simples que, de tão subtis, se sentem como uma leve brisa de Primavera à beira-mar.
Há bebidas tão suaves, que nos alimentam tanto como um fausto jantar.
Comecei deste modo, a propósito da obra “A quinta dos animais”, inicialmente traduzida para português como “O triunfo dos Porcos”. A sua publicação remonta a 17 de Agosto de 1945. Um livro da autoria de George Orwell que me tocou profundamente. Há palavras que continuam (e continuarão) a reverberar em mim. A parábola do autor é, na minha perspectiva, uma metáfora muito actual. Actual em demasia, diria até. Em particular quando se resgata o último dos princípios instituídos pelos animais. Um princípio adulterado pelos porcos que se encarregaram de liderar, de forma totalitária, os restantes animais em revolta contra os proprietários da Quinta do Infantado: “Os animais são todos iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Na sua origem, o mandamento era ‘apenas’: “Os animais são todos iguais”.

O que resta da essência da Política? Aquela que se reportava à organização de uma cidade-estado, a cidade dos cidadãos. Quando os cidadãos que a ‘administram’ se posicionam como mais iguais do que os outros, com mais direitos do que aqueles a quem, em teoria, estão a servir...
Servir ou controlar. Como noutra obra tão ou mais emblemática do mesmo autor: “1984”. O fictício (?) ‘grande irmão’ é de tal ordem visível na sua ‘invisibilidade’ aparente, que a distopia publicada em 1949 continua a ser fonte de fervorosos debates. Actualmente, quando se pára para reflectir um pouco – neste tema, nem sequer é necessário aprofundar o nível de reflexão –, é facilmente perceptível que não existe (quase) nada que escape ao controlo e escrutínio alheio.
Se parte da responsabilidade é individual, uma grande parte é totalmente incontrolável e mesmo desconhecida do comum dos mortais. Só quando nos detemos em determinados pormenores (só na aparência) despiciendos é que nos ocorre questionar: Como diabo é que isto veio aqui parar? Como diabo se sabe que estou aqui ou acolá a fazer isto ou a comprar aquilo?
Dá que pensar...
As teorias da conspiração – se é que são teorias e se é que são conspirativas – deixaram, no entanto, de ser uma fonte de ‘pre-ocupação’ para mim. Há muito que compreendi que não tenho controlo sobre quase nada, tão-pouco sobre a minha própria privacidade. Desisti de me incomodar. Guardo a energia para dimensões mais relevantes e enriquecedoras.
Procuro ler mais, por exemplo.
Escuto mais música.
Abro mais os olhos para caminhar de forma mais atenta.
Uso menos roupa, menos coisas, para assim captar melhor a temperatura dourada do sol de Verão.
Saboreio mais lentamente um refresco de melancia, sentindo o abraço dos meus sobrinhos, que são cada vez mais.
“Tiaaaaa!!” – o Rodi, a Matilde e a Carlota. Uau! As lágrimas até saltam quando o Gu me pergunta expectante: “E tu vens, tia?” (ao espectáculo de Dança onde, entretanto, actuou muito feliz por estar em palco a realizar o que adora).
Quando a Íris sorri e ri... Ah, um ano já: a Íris, no dia 9 de Agosto! A minha ‘sobrinha’ mais nova. Há mais ‘sobrinhas’ e ‘sobrinhos’ das minhas amigas – ‘irmãs’ que me acompanham e enchem o coração.
Que bom que temos máquinas fotográficas; desse modo temos como gravar instantes de alegria; desse modo temos como tornar esses instantes eternos, não apenas no coração, mas também na memória futura.
No dia 19 deste mês comemora-se mundialmente a fotografia. A data que a Academia Francesa anunciou como sendo da invenção do daguerreótipo, em 1837, por Louis Daguerre. O daguerreótipo foi considerado, então, como um presente de Daguerre para o mundo. E nós agradecemos a possibilidade de fotografar, mesmo que as fotografias se fiquem pelo formato digital. Pelo menos assim não se gastam recursos...

Contudo, tenho de confessar que a fotografia impressa dos meus sobrinhos e das pessoas que me são queridas são e serão um dos presentes que me acompanham, também nas viagens. Até porque me transportam em viagens... no tempo e no espaço.

* Texto publicado no Jornal Chapinheiro

Mapas e fronteiras...*



 No dia 1 de Julho, a TAP – transportadora aérea portuguesa – celebra mais um aniversário. A sua inauguração ocorreu em 1953. Mas em Portugal, é sabido, esse é apenas o corolário de séculos de histórias, de séculos na História dos Descobrimentos. Não fosse o povo português um povo ávido pela descoberta de novos ‘mundos’.
Foi em Julho, também, mas no dia 8 em 1497, que Vasco da Gama iniciou a viagem marítima desde a Europa, até à Índia. É possível que o ensejo para os Descobrimentos tenha sido suscitado pela necessidade de expansão, de expansão do território. Sendo certo que não existia mais espaço terreno a conquistar e descobrir nas imediações, o mar, o além-mar tornou-se o desconhecido a descobrir... a conquistar, também...
É de realçar o contributo que os portugueses, desde o início do século XV até meados do século XVI, tiveram na composição dos mapas através das explorações marítimas por todo o mundo. O ‘Planisfério de Cantino’ ilustra isso mesmo, sendo a mais antiga carta náutica portuguesa conhecida. Data de 1502 e resulta daquela mesma viagem de Vasco da Gama, juntamente com a de Cristóvão Colombo à América Central, Gaspar Corte-Real à Terra Nova e a de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500.

Já no século XX, outras viagens se estrearam. Viagens que, pelo menos na minha perspectiva, demonstram o desejo incontestável da humanidade em descobrir novos lugares, lugares além do limite planetário. E assim, em 1969, no dia 16 de Julho, era lançada Apollo 11 – a primeira missão espacial tripulada que, quatro dias depois (contabilizados pelo relógio terreno), aterrava na Lua. E assim, no dia 20 de Julho de 1969, Neil Armstrong era o primeiro homem a pisar solo lunar. Materializava, deste modo, o mapa lunar, ampliando, por consequência, a espacialidade ‘palpável’ do universo.
Se este evento já aqui foi referido, o tema desta crónica motiva-me à sua alusão. Tão-somente demonstra a necessidade que o ser humano tem de conhecer e expandir os seus limites. A necessidade, parece-me, de ultrapassar as suas próprias fronteiras, sejam elas físicas, territoriais, sejam psicológicas, emocionais, ou de qualquer outra índole. Por conseguinte, questiono-me amiúde acerca da possibilidade de vivermos sem limites, sem fronteiras – reporto-me, em concreto, à ausência de limites e fronteiras territoriais, à ausência de muros fronteiriços e todos os sinónimos que se possam aqui incluir.
É muito provável que as viagens me tenham aberto os olhos, e ampliado os outros sentidos para outras experiências sensoriais. Sim, são incontáveis os estímulos a que tenho estado sujeita, através do espaço além-fronteiras e, por consequência, experimentando a passagem de fronteiras; uma passagem tantas vezes aborrecida.
‘Aborrecida’ é um adjectivo aplicável para quem se vê obrigado aos procedimentos de segurança, controlo e vigilância dos serviços de estrangeiros e fronteiras. É uma situação ‘aborrecida’ pelos incómodos que causa a todos quantos viajam por uma razão ou por outra. Todavia, esse é apenas um dos inconvenientes das fronteiras. Talvez seja o mais facilmente aceite, de todos os aspectos desconfortáveis inerentes às viagens. Pode passar a imagem de uma menina petulante e/ou mimada. Mas trata-se, sob o meu ponto de vista, muito mais do que um contratempo. Para mim, é a constatação da fronteira, do limite, do muro construído que obsta a um passo livre no território, a mais um passo no mundo, no planeta.
Por isso, mimada ou petulante, em cada passagem pelos corredores fronteiriços, em cada carimbo no passaporte, questiono-me sobre a necessidade, para mim vazia de sentido, em abrir ou passar pela câmara de vigilância os meus poucos pertences, como se fosse uma criminosa. Ademais, nos dias de hoje, a distância que separa o criminoso de um terrorista é uma separação apenas aparente. Aos olhos de quem controla os postos fronteiriços todos são suspeitos, todos sem excepção são alvo de controlo. Todos sem excepção são vigiados: para quê? Para manter a ilusão: “O meu país está seguro”, ou, “No meu país, só entra quem eu quero”, ou “No meu país quem manda sou eu”. No limite: “Este país é só para quem eu deixo entrar”.
Estou a exagerar, é certo. Mas o exagero permite a caricatura e a caricatura também é o excesso possível: um excesso visível!
Seria interessante perscrutar os políticos – os presidentes das repúblicas, ou federações por exemplo – e incitá-los a desenhar o mapa do mundo à luz dos seus desejos mais recônditos, mesmo que insidiosos. Seria interessante observar a dimensão que cada um daria ao ‘seu país’. Talvez baste abrir os manuais de geografia e história de cada país. Talvez a comparação mostre diferenças no destaque. O mapa-múndi da Rússia será certamente díspar do mapa-múndi dos EUA.
Pergunto-me, ainda, se a perspectiva com que nos são mostrados os mapas é casual. Porquê o norte assim e o sul assado, colocando no hemisfério norte os países ditos desenvolvidos... quando o planeta Terra é redondo (ou uma elipse).

Bem sei que estes são assuntos algo polémicos. Na verdade, se se pensar no primeiro Rei de Portugal, nascido no dia 25 de Julho de 1109, e se se pensar no seu cognome – o Conquistador –, logo se encontram mais achas para a fogueira da territorialidade e para o desenho dos mapas políticos... e quantas vidas se continuam a perder para ganhar mais um centímetro de poder...
Para terminar e terminar de um modo mais terno, relembro o dia 26 de Julho: o dia dedicado aos avós. Este ano exaltarei os avós dos meus queridos sobrinhos, e o leitor e a leitora?

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Na Casa do Povo de Nogueira do Cravo*

Fotografia de Amadeu Pereira


É inevitável, para mim, que a crónica deste mês se reporte à apresentação do livro, Borboleta Azul – um postal da América Latina.
Após o lançamento em Fevereiro passado, foram realizadas três sessões de apresentação, a última das quais na Casa do Povo de Nogueira do Cravo, no dia 7 de Maio.
Foi com grande alegria e satisfação que regressei ao Porto no final da tarde desse Domingo, o corolário de um processo que envolveu diversas pessoas e entidades. É por esse mesmo motivo que me sinto impelida a referenciar essa sessão. O cuidado e atenção de que fui alvo confirmam-me, mais uma vez, como sou uma pessoa privilegiada. De facto, as pessoas que me rodeiam e as circunstâncias que me são concedidas viver provocam-me constantemente um profundo sentimento de gratidão.
Quando entrei na Casa do Povo fiquei extasiada. A sala de soalho, onde tantas vezes dancei nos bailaricos e festas da Aldeia, estava diligentemente preparada. Nas cadeiras enfileiradas sentaram-se muitos familiares e amigos que fizeram questão de demonstrar o seu apoio e afecto à neta da Tia Altina.
Por detrás da cortina do palco, onde fui atriz de teatro durante um Verão da minha adolescência, ensaiava o Grupo de Danças e Cantares de Nogueira do Cravo. Quando tudo ficou a postos, escutei e meneei-me com as alegres canções do grupo, amorosamente empenhado, que dava então início à sessão.
A mesa estava linda. O centro de flores coloridas enchia o meu coração, sobre a toalha cujo bordado reconheci – o desenho e o ponto de flor eram seguramente da avó Altina e da tia Lurdes. Na parte frontal da mesa encontrava-se pousada uma borboleta azul. Houve alguém que com muita arte e bom gosto desenhou, recortou, pintou e decorou uma bela mariposa índigo! Ah!
As palavras escutadas enaltecendo o livro e a autora comoveram-me sobremaneira, mostrando-me que sem dúvida alguma estava em casa; tão bem acolhida me sentia.
No final, depois de autografar os inúmeros livros que as pessoas Presentes adquiriram (muito obrigada!) foi tempo de lanchar. Sim, porque para além da mesa central, havia uma outra repleta de variados doces e salgados. E não é que também o delicioso bolo de chocolate estava decorado com borboletas??!!
As dádivas não se ficaram por aqui. Para além de ter a ocasião de rever pessoas queridas com quem há muito não estava, fui agraciada com uma peça laboriosamente executada para o dia: a ferramenta do ardina – o símbolo de Nogueira do Cravo, com uma dedicatória alusiva à apresentação da Borboleta Azul na Casa do Povo de Nogueira do Cravo.
Torna-se, por consequência imperioso, agradecer, mais uma vez, a todos quantos estiveram implicados na organização e preparação da sessão. Desde as pessoas do Jornal Chapinheiro, às pessoas da Casa do Povo, da Junta de Freguesia de Nogueira, da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital e, claro, do Grupo de Danças e Cantares.
Se o/a leitor/a me permite, coíbo-me de citar nomes. Não vá dar-se o caso de, por lapso, alguém ser omitido. Como sou humana, não seria estranho que tal acontecesse. E não quero, de todo, incorrer em erros ou indelicadezas. Acredito que todas as pessoas que contribuíram para a minha felicidade se sintam incluídas. E foram todas as que estavam na sala e todas as que por algum motivo não lhes foi possível estar.
De facto, sinto-me feliz e profundamente grata. Cabe-me, no entanto, referir, que a minha felicidade só será total quando receber o testemunho de que o livro ganhou novas vidas.
A(s) vida(s) de ser aberto e lido e partilhado. Afinal, como muito bem afirmou um dos queridos intervenientes durante a sessão, a obra só está completa quando é lida. Assim sendo, convido todos os leitores e leitoras do Chapinheiro a abrirem o livro numa página ao acaso e a lerem uma das curtas histórias. Desse modo, em cada visita ao livro, este renascerá e terá oportunidade de continuar a viver, novas vidas...
O livro, seja este ou qualquer outro, é muito mais do que um objecto. É um transporte que deseja sair da estante. Convida à leitura e, através desta, à viagem.
Para mim, essa é uma das grandes riquezas de um Livro: ser um passaporte para outros mundos, para outras culturas, para outras pessoas, para outras vidas. Atrevo-me a dizer, para mais Vida. E sem grande esforço, sem sair de casa. Ler, para mim, é viajar, é conhecer e aprender.
Quem sabe o voo da borboleta estimule o leitor e a leitora a continuarem a ler, a viajar, nem que seja de uma página para outra, de um livro para outro... 

* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Expandir




Expandir. Um verbo muito utilizado por P no regresso de um retiro de Vipassana em que participei, no Algarve. O contexto e o modo como P proferia a palavra, frisando diversas vezes a necessidade de contemplar o mar e a linha do horizonte, pairou-me durante algum tempo. Até que consegui transpor para palavras...

A alteração da boleia para o Porto, meia hora antes da saída de Tavira, proporcionou-me um passeio pela Costa Algarvia e pela Costa Vicentina. Se é verdade que poderia ter chegado ao Porto dez ou onze horas antes, também é verdade que o passeio de carro expandiu o meu vocabulário sensorial.

Após dez dias em silêncio meditativo, a P avisara à saída que desejava ver o mar, pela necessidade que sentia de se expandir. O retiro de Vipassana ampliara o seu ser e a linha azul do vasto horizonte seria um modo de abraçar a sua infinitude – dentro do possível.

À época morava num apartamento, no oitavo e último andar de um edifício, cuja altitude e proximidade ao mar me permitiam a sua contemplação constante. Enquanto realizava as refeições diárias e me sentava para trabalhar na mesa da sala, o meu olhar era insuficiente para abarcar a vastidão oceânica. A Qualidade e a Força do verbo, sugeridas por P, ajudaram-me finalmente a atentar e a captar o seu significado, experienciando-o de forma consciente. Desde então, a linha do horizonte insinua-se dia após dia, num azul distinto em cada manhã, mostrando-me irrevogavelmente uma vida sem limites.

Se aquela necessidade de P me impacientava pelo avançar das horas, hoje reconheço que a linha do horizonte, o mar, e o oceano se tornaram elementos ainda mais relevantes para mim, consagrando o seu estatuto venerável. Em cada passeio à beira-mar, sou estimulada a reflectir sobre o termo que P aplicou ao abrir os braços na Ponta de Sagres. 

A imensidão do oceano é comparável à vastidão que me esmagou quando estive no deserto de Atacama ou quando caminhei na cordilheira dos Andes.  A comparação que arrisco deve-se à angústia que me assoberbou. A confirmação vívida da minha pequenez ante o infinito, incomensurável e a grandeza que a Natureza exibe e oferece sem hesitar. 

Compreendo finalmente, dentro do que me é possível, experienciando e indo, por isso, para além da teoria, o conceito de sublime. Os meses que tive o privilégio de me sentar à janela do oitavo andar encetaram transformações no modo de apreender a incomensurabilidade da linha do horizonte. Se, por um lado, entrevia o infinito como imensidade, como expansão; por outro lado, era assaltada pela noção de limite e fronteira. Se em ocasiões decisivas, a tranquilidade era o estado perante um porvir desconhecido – a possibilidade de ser imenso, vasto, ilimitado, infinito: podia ser qualquer coisa, em qualquer lugar, com qualquer pessoa –; ocasiões houve em que me observei eminentemente limitada.

A frase de Mempo Giardinelli ajuda a expressar-me: “A imensidão tem essa virtude: de tão ilimitada impõe limites”1. O limite da minha própria existência, da minha própria finitude, das minhas limitações físicas, psicológicas e emocionais. Sou, pois, impelida a questionar-me de forma constante: Qual é o meu limite? Até onde posso ir?

Essa imensidade, essa impossibilidade de abarcar a totalidade da vida, por vezes influencia-me negativamente, como diria Ryzard Kapuscinsky. Como continua o autor, referindo-se à Rússia, tudo perde o vigor, se dilui, se afunda na imensidão disforme. Se, por um lado, o mundo, a vida ela própria, é “um espaço amplo, aberto e infinito, por outro, essa mesma imensidão sufoca tanto que nos tira a coragem e não conseguimos respirar”2.

Creio que os limites que pressinto, e amiúde me imponho, ressurgem pelo receio do desconhecido: estabeleço (mesmo que de modo inconsciente) uma linha intransponível e, no medo, escuto a voz interior: só posso ir até aqui, para lá deste muro (mesmo que invisível) está o incognoscível; quero eu atravessar essa passagem apenas visível ao medo? Mesmo sabendo que esse medo me terá sido incutido socialmente... mesmo sabendo que é um produto cultural e historicamente desenvolvido?

Das fronteiras físicas que o meu corpo impõe emergem os desassossegos face à vastidão do deserto, das altas montanhas, dos mares e dos oceanos.

De quando em vez sinto uma certa coragem e abro-me e dou espaço ao silêncio apaziguador. Coloco-me frente a frente com o desconhecido, com o que está para além de mim. E compreendo então que a fronteira que me limita é um corpo permeável, cuja entropia permite a expansão do ser que em mim habita. Se me permitir à mudança, se me permitir despir do medo construído pelos acordos sociais a que fui submetida pela formatação social e histórica, tenho possibilidade de multiplicar as perspectivas do meu olhar que, ganhando novos ângulos, provoca inevitavelmente um aumento da amplitude do ser em mim.

E rendo-me então: talvez o céu azul-celeste não é seja o limite, talvez a noite mais ou menos estrelada, com ou sem luar seja alcançável.
E lembro-me então que o corpo em que me escondo é um limite só para mim intransponível – se acaso me esquecer que o universo é ilimitado.
Se me entender como um fractal, relaxo e compreendo que em mim cabe o mar imenso, a vastidão do deserto e o horizonte infinito.

Abro os braços, como P, e deixo-me invadir pelo som ondulatório na areia, pelo odor fresco da maresia e pelo céu azul e expando-me. Sou muito mais que o corpo físico. Sou o universo inteiro, infinito, ilimitado. Sou o oceano da vida, expandindo-me em cada P que importo em mim, em cada grão de areia do deserto, em cada gota de água da chuva, do mar, em cada estrela e noite de luar.
E o mar à vista é, enfim, o meu limite infinito, se me permitir expandir.



10 de Maio, de 2017
Porto, Portugal

1.     Fim de Novela na Patagónia, Mempo Giardinelli, Quetzal
2.     O Império, Ryzard Kapuscinsky, Campo das Letras

Maio, ao Sol*

       
         Quando se desliza de forma elegante pela superfície dos dias, ou de modo consciente pelos caminhos do tempo, é possível distinguir o sorriso de uma criança.
            Desenrugando a testa, elevando o olhar e estendendo os braços, é possível captar os raios silenciosos da grande estrela: o Sol. Para a sua celebração, além de muitas outras ocasiões mais ou menos festivas, estipulou-se o dia três de Maio, para que nos lembremos de homenagear - pelo menos neste dia - a nossa principal fonte de luz, fonte de vida.
            Num céu de silêncio, ao amanhecer, escolho, com frequência, alongar os meus dias, iniciando-os em contemplação. Caminhar, correr ou mesmo sentar-me na primeira hora do dia, dá-me oportunidade de inspirar a espessura do Sol nascente. Observo a transmudação das cores: o cor-de-laranja passa a amarelo dourado e, sem que me dê conta, o sol está mais alto num amarelo pálido, quase branco. Os seus raios atravessam as árvores, escorrendo em fios de luz até ao solo vibrante. As copas resplandecem num verde exuberante e as folhas exalam o vapor de um orvalho que se vai dissipando... devagar.

            Maio, quando a Primavera segue embalada no azul dos dias imensos, ao som da sinfonia das aves multicolores, é o mês que mais aprecio. O meu mano faz anos, por exemplo. Mas não só.
            Enquanto estudante universitária, havia uma semana de boas razões para a minha preferência. A enxurrada de memórias formiga incessante... o sorriso é acto contínuo.
            Enquanto professora na faculdade era, igualmente, com regozijo que recebia essa semana académica: uma semana sem aulas - umas quase férias.
            Nos dias que correm, o meu olhar inunda-se de emoção, pelas minhas amigas que recentemente são mães pela primeira vez. Aquelas que admiro profundamente pela coragem de seguir os seus anseios maternais, mesmo depois dos quarenta anos.
            As noites serenas e suaves, em que a lua cheia nos presenteia com a sua luz morna, enchem-me o coração, recordando-me que a liberdade vai e vem, quantas vezes como as marés. Talvez seja por esse motivo que se terá instituído um dia para celebrar mundialmente a liberdade de imprensa, também a três de Maio.
            Inspiro profundamente, uma, duas, três vezes e prossigo, reflectindo sobre a liberdade de um modo geral e a de imprensa em particular. Os olhos doem-me com as notícias que a cada dia nos pesam, enfraquecendo e, em muitos locais, aniquilando as acções e operações de quem se arrisca a divulgar o que nem sempre é desejável que se torne púbico.
            A realidade contaminada rompe muitos corações. Mas a resignação fatalista também não é visível, tão-pouco, aceite por aqueles que se entregam a salvar vidas. Refiro-me aos médicos e enfermeiros que edificam uma das maiores, senão mesmo a maior instituição humanitária do mundo: a Cruz Vermelha. Como o seu fundador, Henry Dunant, nasceu a oito de Maio, escolheu-se esse dia para enaltecer todos quantos se dedicam às vítimas, tendo como princípios de acção a humanidade, a imparcialidade, a neutralidade, a independência, a unidade, a universalidade e o voluntariado. Princípios que, apenas na aparência, são facilmente colocados em prática no quotidiano de todos nós. Com efeito, as notícias que nos chegam de muitos lugares mais ou menos distantes revelam, tristemente, como os homens agem sem qualquer sentido de humanidade.
            A mim, cabe-me, com a liberdade que me é conferida, pelo menos lembrar que, mesmo que não tenha capacidade de acção ou de decisão a um nível macro, tenho o poder de contribuir a cada instante para o bem-estar das pessoas que me rodeiam. Cabe-me, dentro do que me é possível, aplicar e viver os mesmos princípios da Cruz Vermelha, em cada interação social em que me envolvo. Sejam as pessoas mais ou menos próximas. Todas são, sem excepção, seres da mesma Natureza.
            Além de outras comemorações em Maio, o dia vinte e dois é dedicado ao autor português. É-me impossível deixar passar esta oportunidade... No dia sete estaremos na Casa do Povo de Nogueira, a fim de apresentar o livro Borboleta Azul, um postal da América Latina. Aí, o leitor e a leitora encontrarão diversas crónicas do Chapinheiro que foram escritas enquanto além-mar. Será, certamente, um dia muito feliz para mim, pois haverá tempo e espaço para partilhar as experiências vividas com as pessoas de Nogueira. São, pois, todos muito bem-vindos nessa tarde do dia de todas as Mães.
            Desta vez posso terminar esta crónica com um até já, Nogueira do Cravo! E muito obrigada ao Chapinheiro pela alegria de poder contribuir, de alguma maneira, para o jornal da nossa Aldeia. 

*Este texto foi publicado no Jornal O Chapinheiro