Fragmentos de viagens...*



... Kuala Lumpur



A minha ignorância é oceânica. Se disso estava segura enquanto estudante, investigadora e leitora, as viagens têm confirmado cruamente o quão limitada sou.
Em 2013, voei em direcção a Melbourne, com a intenção de passar três meses na Austrália. Ao fim de um mês, a chuva era a minha companheira mais fiel, enquanto subia pela costa do Pacífico. De maneira que, ao chegar a Sunshine Coast, decidi retroceder a Gold Coast – onde encontraria o aeroporto internacional mais próximo (onde vivi a minha experiência única de dormir ao relento).
Daí voei para Kuala Lumpur. Foi após a tomada de decisão, e durante as pesquisas acerca dessa cidade, que me apercebi de que a Malásia é vizinha da Tailândia e está à distância de uma ponte de Singapura. Numa ‘Estrada azul’ li isso mesmo, que viajar nos faz entrar na geografia. Voava para uma nova realidade geográfica: a Ásia!
Durante a interrupção de tempo, no ar, que me transportava até Kuala Lumpur, as buscas prosseguiram. Era necessário seleccionar de forma criteriosa os locais a visitar na capital da Malásia.
Um recorte de revista sugeriu-me um local com a classificação de eco-turismo: o parque de aves – Kuala Lumpur Bird Park. A brochura vendia o parque como sendo o maior da Ásia, guardando o conceito distintivo de voo-livre. O que significa que (pelo menos em teoria) os pássaros têm liberdade para voar quando e para onde querem.

A realidade inverosímil transcendeu o cerco da minha ignorância e vagueei durante horas a fio pelas diferentes zonas do parque. Passo a passo, o meu rosto iluminava-se com as cores vivas das inúmeras espécies. Emas, mochos, pavões, papagaios, araras, aves de rapina, flamingos, periquitos, pombos, patos, galinhas da índia e mais uma infindável série de espécies que desconhecia. Asas de todas as cores rasgando o céu em cada abrir e fechar de olhos.


O azul não era a cor predominante de um céu fumado, escapando-se dos edifícios que teimavam em arranhá-lo. Pelos caminhos das horas asiáticas toquei noutra realidade cinzenta, mas brilhante: as Torres Petrona. Um par de torres com 88 andares e 452 metros de altura resplandecente. Característica que lhes confere o sexto lugar na lista dos edifícios mais altos do mundo. Aí habita um paraíso para os amantes das compras e das marcas de luxo.
 
  A sua imponência desafia as leis da gravidade. Exagero. Mas na minha memória inculta não moravam patamares de betão tão elevados. A minha região desértica das alturas ficou ainda mais preenchida quando subi à Torre Menara. A sua exuberância terá sido ofuscada pelas outras gémeas. Não obstante, foi nesta torre com 421 metros que confirmei mais uma vez a minha pequenez.

A vista incrível, que a torre me providenciava em 360 graus, mostrava-me as torres gémeas e o seu séquito de edifícios de luzes acesas a iluminarem o caminho da noite.


Guardei as emoções num bolso e calcorreei os passeios à beira-rio, que me conduziram até Sultan Abdul Samad – o local que abrigou os colonizadores e a respectiva administração britânica até 1957: data que assinala a independência da Malásia, festejada na Praça Merdeka  onde antes se jogara o críquete.
A grandeza daquela obra histórica foi marcada por discussões do foro arquitectónico que deixam os leigos na dúvida quanto ao seu estilo mais ou menos mourisco. A torre do relógio destaca-se pela sua altivez em forma de cúpula, cuja cor do sangue provoca outras quantas indagações acerca da sua edificação.
Sem estugar o passo, errei pelo mercado central de China Town, amplamente referido como sendo de visita obrigatória. A mochila era parca em espaço para quaisquer recordações materiais ou coisa que o valha, mas os olhos mantiveram-se bem abertos, enchendo-se orgulhosamente de memórias coloridas.

O hotel em que me alojei por duas noites, antes de viajar de comboio para Banguecoque, ficava muito próximo de Brickfields. Uma área habitada sobretudo por gente de origem da Índia, tornando-a, por isso, mais conhecida por Little India. As cores vivas, os odores quentes e os sabores picantes são estímulos fáceis para invocar a atmosfera mística daquele quase continente. Na verdade, foi em Kuala Lumpur que me sentei pela primeira vez, ao fim de um mês, num restaurante para me deliciar com uma refeição completa. E indiana!
Há que dizer que na Austrália os preços eram dez vezes mais caros que em Portugal, mas na Malásia os bolsos descontraíram e respiraram com algum fulgor.
Foi na estação de comboios urbanos que me deparei pela primeira vez com a possibilidade de viajar numa carruagem exclusiva para mulheres, onde se visualizavam sinais a proibirem beijos e abraços. O espanto foi de tal ordem – ai quanta, a minha ignorância – que partilhei uma fotografia nas redes sociais. Alguns anos mais tarde, em Nova Deli, agradeci vivamente o facto de ter essa mesma opção.

Apesar do pouco tempo que passei em Kuala Lumpur, foi possível apreciar e ser alvo da generosidade e sorrisos malaios. Os farrapos de conversas desenvolveram-se num inglês titubeante, pintando os meus dias no clima equatorial e ajudando a esquecer a chuva incessante das semanas anteriores.
Voltei a Kuala Lumpur dois meses depois, mas dessa feita fiquei-me pelo ‘não-lugaraeroporto – estava de passagem, transitando entre a Tailândia e o Porto... era tempo de guardar os fragmentos e transformá-los em matéria viva.


*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro. Infelizmente, o Jornal está suspenso, por tempo indeterminado!

Fragmentos de viagens...*






... Paraty azul

Tique-taque. Tique-taque. Os relógios imparáveis. Os de Paraty nem por isso. Viviam numa casa branca. Expunham-se, escancarados à porta, rindo-se nas mãos do relojoeiro. Peças antigas. Peças de arte que se acertavam, guardando a ilusão do tempo eterno. Num dia sem tempo, na quietude de uma tarde quente de Verão, Paraty ganhava os transeuntes que se entretinham nas lojas que ali moravam.
Uma paragem na Cuca de Banana, onde degustámos empanadas de beringela, seguidas de banana flambada na cachaça com sorvete artesanal. Iguarias tão estranhas quanto deliciosas para despertar outros sentidos.

De porta em porta, ressoavam passos lentos pelas ruas empedradas de Paraty, perscrutando as artes e ofícios dos artesãos locais. Vivem em casas caiadas, com janelas bordadas a azul e amarelo, onde ainda se escondem os antepassados portugueses. Aqueles que se debruçavam, quase caindo e largando memórias tricotadas por fios multicolores.

Chegaram em barcarolas que, em zigue-zague, rasgaram as águas azuis e cristalinas. Afundaram-se no sal. O modo de se conservarem na vegetação exuberante e verdejante à beira-mar.

Tique-taque. Tique-taque. O azul transforma-se em cada sonho. O suave odor de maresia ao amanhecer converteu-se no despertador perfeito. As araras azuis invadiam a paisagem sonora, às sete da manhã, ajustando com delicadeza os acordes das ondas ainda pálidas.
Um banho de mar: o elogio fácil às águas salgadas de Paraty. O tempo multiplicou-se na Praia do Sono e gravou-se num sorriso sem pressa. Caminhando à beira-mar, a areia macia e branca agarrava-se aos dedos dos pés. Fragmentos de um dia veloz, que se escapou por entre outros dedos. Os das mãos que, num esforço em vão, tentaram prender um suspiro.
A máquina fotográfica quis desenhar o tempo, mas o vento selou a paisagem, sem quebrar as montanhas ao largo do horizonte. Montes calvos sob as nuvens brancas, figuras pouco geométricas com traços inequívocos da realidade pintada de verde pistácio.
Mais um mergulho, uma espécie de tentativa para salvar a fragância de um Setembro inesquecível. Inspirando o odor a maresia, vesti o azul de Paraty. E assim guardei o tempo sem contrários e a paisagem cristalina.
Sem pressa de voltar, amanheci noutro lugar.


*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro






Fragmentos de viagens...*



 ... travessia do Rio Douro... a nado

 
Este ano fui duas vezes a Espanha – saí duas vezes de Portugal. Note-se. É provável que o verbo ‘sair’ não seja o mais adequado.
Em primeiro lugar, atravessar uma ponte de bicicleta até à fronteira não significa, necessariamente, estar a sair ou a entrar, ou coisa que o valha.
Em segundo lugar, numa travessia a nado só se toca na outra margem de um rio.
Foi de Segura – aldeia do concelho de Idanha-a-Nova – que cheguei a Espanha, pedalando e, assim, atravessando a ponte sobre o Rio Erges. O ponto de partida da ‘viagem’ fora da própria sede de concelho, Idanha-a-Nova...

Nadei até Espanha desde Peredo de Bemposta – Mogadouro. Uma praia fluvial, nos confins, não direi do mundo, mas cujo acesso ainda lhe providencia o carácter de ‘tesouro’ do Douro. Por favor, não divulguem. Queremos voltar lá, com a esperança de que ainda não esteja transformada numa algazarra de Agosto.
A aventura até Segura – chamemos assim – jamais poderia ser empreendida em Agosto. O caldeirão da Beira Baixa não permitiria uma estafa de quase 100 quilómetros (ida e volta) a pedalar. Foi o meu percurso mais longo até ao momento, de bicicleta. Valeu a pena!
Não consigo explicar o encanto que Idanha-a-Nova tem sobre mim. A paisagem quase vazia – ‘limpa’, como alguém afirmou – exerce um fascínio indizível sobre o meu ser.
Não chega a 100 metros, a distância entre as duas margens do Rio Douro. De qualquer modo, fui a única pessoa a nadar até à outra margem naquela tarde de Agosto, no concelho de Mogadouro. Com e sem modéstia à parte.

A dificuldade estava – segundo o meu companheiro de aventuras – na incapacidade de ver o fundo do rio. Sabe-se lá o que poderia saltar, assim de repente, e comer-nos os pés.
Os abutres-negros vagueiam pelo ar em busca de alimento, por conseguinte, estes necrófagos não eram um perigo para quem pedalava até ao Rio Erges.
Em Março, as cores primaveris que ladeavam a estrada com curvas e mais curvas enchiam os meus olhos. O amarelo dourado das flores silvestres contrastava com o ainda verde da vegetação rasteira. Os olivais alternantes com os campos de pasto pincelavam as terras ondeantes, cuja inclinação assegurava um treino forte, sem chegar ao limite do extenuante. As pernas ressentiram-se – afinal, 50 mais 50 dá que pedalar – mas sem desafio não seria tão interessante.
Aqueles quase 50 metros até Espanha (mais 50 de volta até à ‘nossa’ margem) desafiavam o conceito de fronteira – pelo menos a mim, para quem este é um tema muito caro.
O verde seco e denso das águas do rio davam a sensação de se estar prestes a pisar um manto sem solo. Mas as pedras e rochas de cada margem parecem ser suficientes para afirmar: aqui é Portugal; daquele lado é Espanha.
A ponte romana, que terá sido construída durante o império de Trajano, no século II, estabelece uma marca territorial que dissipa quaisquer dúvidas que possam subsistir. A sua imponência é só mais um exemplo daquele que foi o maior império de todos os tempos. Os resquícios e vestígios por todo o território português assim o atestam.

Território.
Quando se nada no Rio Douro, as altas fragas em cada margem acendem a imaginação e ‘edificam’ lendas, como a da “Fraga da serpente”. Reza a lenda que havia uma serpente que todos os dias cumpria um ritual: ao acordar, dava sete voltas à ‘sua’ fraga; depois, no seu movimento serpentino ia até um chafariz para beber água e, no seu regresso a ‘casa’, ia picar os pés de uma santa que vivia noutra fraga. Todos os dias.
Mas até uma santa perde a paciência; fartou-se de ter os pés picados por uma serpente caprichosa. Lançou-se para outras terras, espanholas, a santa. Depois de se encaixar num seixo, rebolou para a outra margem. Mas de Espanha, não há apenas ventos e casamentos. Os pastores que por ela passavam, atiravam-na arriba abaixo. Isso aconteceu várias vezes, tantas como aquelas que encontraram o tal seixo no mesmo sítio de onde o lançavam. Até que a curiosidade os moveu e abriram o seixo e viram uma santa a quem ergueram uma capela – no lado espanhol, já se vê. Mas a santa que afinal também parecia caprichosa virava-se para Portugal. Talvez para mostrar à serpente os seus dedos em forma de pássaro.
Os pastores compreenderam e remodelaram o santuário, construindo um duplo altar. Deste modo, também a podemos ver sem ter de nadar para a outra margem.
O mesmo não se passa em Segura, onde a povoação sente que nada poderá alterar as suas vidas, as suas terras. As lendas não cabem aqui, mas os fortes e torres e castelos, ou o que resta deles em toda a faixa raiana, lembram a história de batalhas, guerras, afrontas...
Hoje: Espanha. Portugal.
Um rio. Uma ponte.
Quem dera se mantenha só assim. Os muros físicos são tantos e tão ‘duros’...
Enquanto puder nadar e pedalar esqueço-me ou, pelo menos, sou capaz de me abstrair das cabeças que rolaram arriba abaixo...




* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro


Fragmentos de viagens...*


... ao quinto dia nas montanhas mais altas...

... do mundo.
Há precisamente um ano cumpria um dos sonhos da minha vida: realizar uma caminhada nos Himalaias. Optei pelo Circuito do Annapurna. Caminhei durante dezassete dias de mochila às costas, sempre apoiada por um cajado. Esta prótese, assim o integrei ao longo do caminho, em particular nas subidas, fez parte do meu corpo até ao fim. Tal presente foi-me concedido logo na primeira hora de marcha, depois de atravessar a primeira de muitas pontes suspensas que ligam as margens dos rios e ribeiros do Nepal.
É sobre a travessia de uma dessas pontes suspensas que este texto se detém.
Nem todas as pontes me inspiravam confiança. Pelo contrário, houve uma ou outra ponte suspensa, cuja vulnerabilidade (por mim percepcionada...) me terá provocado certas indagações: “Que faço eu aqui? Quero mesmo atravessar esta ponte? Será que vale a pena chegar ao outro lado, e a que custo? Ou ainda, e talvez ainda mais séria questão, será que conseguirei chegar ao outro lado, sã e salva?”
Arrisco a impressão de estar a exagerar. Não obstante, quando me defrontei com mais uma ponte suspensa, coberta por um manto de neve virgem, a três mil e quatrocentos metros de altitude, pouco depois das oito da manhã, também o meu olhar se suspendeu durante um lapso de tempo – o suficiente para eternizar aquele instante. A brancura ofuscante inebriou-me e ‘obrigou-me’ a parar. O sol ia alto e, naquela manhã fulgurante, os óculos escuros de lentes azuladas eram obrigatórios.
O receio não era sentimento que me assaltasse na quinta manhã do percurso dos Annapurnas. O coração batia com um ritmo acelerado – por dois motivos. Um deles, fisiológico. Aquela altitude, e em sentido ascendente, impõe respeito a quem, como eu, vive ao nível do mar. A cadência que se impunha era em lentidão. Além disso, havia a mochila, ainda que nessa manhã me parecesse substancialmente mais leve. Os cerca de doze quilos com que iniciara o trajecto mantinham-se, mas o corpo adaptava-se rapidamente. Mas a pressa não era desejável. De todo!
Um dos objectivos do empreendimento a que me propusera era a contemplação. Como tal, o estado em que me procurava manter era o de receptividade. Só desse modo me poderia conectar com a Natureza e assim deslumbrar-me com o caminho, com toda a envolvência ... extraordinária. Afinal, caminhar pela montanha, seja qual for a montanha, pela manhã e em silêncio é uma experiência arrebatadora.
Arrebatada – como me senti quando me deparei com essa primeira ponte suspensa, ao quinto dia do Circuito. Não é estranho, por isso, que, além dos efeitos fisiológicos da altitude, o meu coração tivesse entrado em arritmia por motivos emocionais, admito. Observava as sensações que o êxtase me provocava. Os pêlos eriçaram-se instantaneamente, qual pele de galinha. O sorriso era do tamanho dos picos que me rodeavam. Os joelhos tremelicavam e o cajado confirmava a sua valia com respeito.
Como nevara durante toda a noite, além das árvores cobertas de neve, que se balançavam a cada raio de sol mais forte, libertando-se assim de algum peso, também a ponte me aguardava com um tapete macio e imaculado. Era a primeira a chegar ali. Os olhos emudeceram-se perante a brancura e beleza inefáveis.
O deslumbramento começara logo pela manhã, mesmo antes de sair de Upper Pisang – o lugarejo com meia dúzia de alojamentos para caminheiros, aventureiros, trekkers, hikers... ‘himalaianos’, onde me hospedara no dia anterior. Aí chegara exaurida, no fim da jornada do quarto dia de caminhada.
Chovera todo o dia, transformando uma caminhada lenta num exercício físico tenaz. Mais de vinte quilómetros calcorreados sob chuva fraca, é certo, mas a temperatura não convidara à contemplação. A satisfação era, mesmo assim, real, tendo aumentado ao entrar no local onde me abrigaria nessa noite. A recepção à minha chegada marcou-se pela simpatia quer dos anfitriões, quer dos hóspedes, já aquecidos e bem acomodados.
Depois de um duche quente, juntei-me ao grupo sentado em redor de uma salamandra que ardia com bosta de vaca. A temperatura continuou a aumentar até ao jantar. As experiências vividas de quem se propõe a este tipo de aventura abarcam diversos sentidos. Nessa noite, houve oportunidade para degustar o vinho local: raksi.
Só não expeli o líquido nepalês por delicadeza. Mais do que isso, atrevi-me a beber mais um nico. O odor estava muito próximo do álcool etílico. Era demais para mim. Ofereci o meu copo a dois jovens caminhantes que, como eu, se deleitavam com o calor reconfortante que emanava da salamandra. O australiano e o norte-americano aceitaram de bom grado a minha partilha.
Era uma noite cosmopolita. Aém deles, um casal de belgas e outro norte-americano. O elemento feminino chamava-se, nada mais nada menos que: Ana Pereira.
            A manhã do dia seguinte começou em grande risota. Quando finalmente nos apresentámos, eu e a tal rapariga californiana, com pais portugueses.
Nessa manhã, ao despertar, a neve que cobria a pousada e o solo e tudo em redor, era um presente maravilhoso. Esfregávamos os olhos, beliscávamos os braços para nos certificarmos que, sim senhor, estávamos acordados. O cenário era admirável. O céu ia ficando mais azul, à medida que o sol ia subindo, e os picos todos brancos despertavam as crianças remanescentes de todos os hóspedes que subiam ao terraço para se deslumbrarem. Pressentia-se gratidão nos sorrisos e nos “Uaus” sonoros e partilhados.

Saíra de Upper Pisang totalmente rendida e, naquele momento, a rendição continuava a ser o meu estado de alerta... caminhava numa floresta com aroma a Natal. Os pinheiros de forma cónica cobertos de neve eram os elementos que excitavam a imaginação e as memórias por viver.
Recordo a batida do coração, amenizada pelas botas sobre a ponte. Crâche, crâche, crâche. O pé direito, depois o outro, e de novo o direito, devagar, muito devagar e mais crâche, crâche... uma mão agarrava o vão da ponte e a outra o bastão de madeira. Ou talvez tenha pendurado o cajado, para melhor me segurar nessa ponte suspensa, com centenas de metros de vazio até ao rio... muito lá em baixo.
As vertigens são uma sensação que bem aprecio. A ansiedade era devida à remota probabilidade da ponte se desmoronar... Como se depreende, tal não sucedeu.
Quando alcancei a outra margem, olhei para trás. Uau! Os pés marcados na neve, na ponte. Estava tudo bem. Podia prosseguir em modo contemplativo. Escutando uma ou outra ave mais ousada. Continuando com os sentidos vigilantes. De olhos bem abertos, de pés bem apoiados, um passo, e a seguir outro... até ao pico seguinte.
A Natureza é frágil, caminha com gentileza – lembrava a todo o momento, um aviso que se lia em placas ao longo do trilho e que guardo em mim.
A Natureza é frágil, cuidemos de nós com gentileza.



Março, 2019

* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Fragmentos de viagens... *



... De Lisboa à terra


“Vamos passar a Páscoa à terra”; “Vamos para a terra nas férias de Verão”. Era deste modo que nos referíamos a Nogueira do Cravo, quando era miúda. “Vou à terra”. Não dizíamos: “Vou a Nogueira”. Isso era a resposta para: “Onde é a tua terra?”
Não era propriamente a minha terra, mas sim a do pai um pormenor de somenos importância. Era, e continua a ser, a nossa terra. Nogueira do Cravo.
Até aos 12 anos, a origem da nossa viagem à nossa terra era Lisboa. Mais concretamente Olivais Sul ou Portela de Sacavém.
O fiat 124 verde dos pais e o mini azul escuro do tio Zé Alberto e da tia Alexandrina eram os bólides de serviço. Demorávamos nada mais, nada menos que cinco horas a percorrer o trajecto! Sim, cinco horas de curva, contracurva e mais curvas, até que as crianças deixavam de aguentar o pequeno-almoço no estômago. A bola de berlim sem creme e o leite achocolatado da ucal nem sempre pediam licença e eram expelidos de uma assentada pela boca fora.
Quando tinham o discernimento suficiente, as crianças pediam para parar e a bola mastigada e o leite fermentado no estômago ficavam na berma da estrada.
Era preciso ter sorte. Raramente os miúdos conseguiam terminar o périplo sem chorar, sem vomitar, sem se zangarem, uns com os outros (até 1982 ano em que nasceu a Ana Cristina - os miúdos incluíam o Miguel, meu irmão e o Pedro, o primogénito do tio Zé Alberto, para além da narradora).  Não era bem zangar. Era mais uma espécie de jogo de resistência, ou de poder sobre quem tinha mais capacidade de perseverança. Para os pais, pura e simplesmente: teimosia.
As viagens começavam sempre com boa disposição. No carrito verde de quatro portas, era a janela do condutor que ia quase sempre aberta. No mini também era essa a janela que se abria. Até porque as janelas de trás tinham uma pseudo-abertura, com uma mola que só os adultos tinham força para abrir.  
O que se vai seguir, actualmente seria punido por lei. E se tal acontecesse hoje, é quase certo que daria azo a que a protecção de menores ousasse retirar os filhos dos meus pais e dos tios da sua guarda.
O meu pai fumou até aos quarenta e poucos anos. O que significa que nessas viagens de cinco horas, o meu pai, que era menino para fumar dois maços de tabaco por dia, não parava na primeira curva para fumar o seu SG filtro  aquele de pacote azul escuro. Era dentro do carro que matava a traça, partilhando com generosidade o seu prazer.
Outra coisa que não choca os pais dos meus sobrinhos é o facto de também eles terem viajado de joelhos nos assentos traseiros, virados para trás e a observar e a fazer caretas aos perseguidores mais ou menos velozes.
O cinto não era obrigatório e as cadeirinhas, se existiam, era para os muito ricos e, mesmo assim, tenho sérias dúvidas.
Nessa posição, de costas voltadas para os pais (sorte deles, se assim nos entretínhamos), começávamos entusiasticamente um dos jogos favoritos de quem fazia viagens de carro: cada um escolhia uma marca de carro e/ou cor. Eu e o meu mano. Ganhava aquele que contava mais durante o tempo que uma criança de cinco ou oito anos pode aguentar renault's 5, 4L ou carochas. Quer dizer, não se ganhava assim. Fácil. Não. Era necessário ser persistente, perseverante (ou teimosos...), e fazer ver, provar e comprovar a sua vitória. As chapadas confirmavam quem teria contabilizado mais carros verdes.
Regra geral, o verde era a cor favorita. Nessa época (antes de 1980 e até 1984, 85, mais coisa menos coisa), havia motivos para nos orgulharmos sem pruridos de gostar de usar o verde intercalado com riscas brancas. Na horizontal, note-se. Há que dizer que praticávamos ginástica em Alvalade. Local sagrado, nesse tempo... pelo menos para a nossa família.
Mas essa é outra viagem que agora não tem interesse. Até porque escrevo este texto no dia seguinte à derrota com os vizinhos vermelhos da segunda circular: 2-4!! Fico por aqui neste assunto triste como uma noite de Inverno, de céu nublado, ou mesmo nevoeiro e de temperaturas abaixo de zero.
Quando a temperatura era baixa, a chauffage era ligada ao máximo, no fiat 124 verde. O carro ficava ainda mais quentinho com o expelido do SG filtro do pai, que abria um pouco mais o seu vidro para lançar a beata borda fora.
Pergunto-me se alguns dos incêndios das décadas de 1970 e 80 teriam sido provocados pelo Amadeu e o Zé Alberto. Mas nesse tempo não era proibido deitar lixo pela janela. Nós até fazíamos várias pausas, por isso, o pai devia aproveitar para despejar o cinzeiro do fiat.
Sair do carro do tio Zé Alberto era quase outra aventura. Viajar no banco traseiro do mini azul do tio, da década de 1970, não se compara a viajar no Mini Cooper de hoje. Era necessário ser lesto e muito ágil, para sair a tempo de salvar os estofos dos fluidos das entranhas, prestes a saltar pela boca fora. 
Repito-me. Eu sei. Mas quem, como nós, vinha dos Olivais até Nogueira, sabe bem que a partir de Condeixa ou Cantanhede  não sei precisar as curvas eram uma contra a outra, em modo contínuo. Não havia estômago que aguentasse tal sinuosidade. Já para não dizer que contar as curvas era outro jogo; com maus resultados, como se depreende. Era isso ou acabar com a paciência dos adultos com a pergunta em modo repetir: “ainda falta muito?” 
“Está quase!” E era só. Não havia mais nada. Os pais não podiam dizer: “vê mais um filme”, ou “ultrapassa mais um nível desse jogo tão excitante”, ou “entretém-te com o teu pseudo-amigo youtuber”, ou “faz mais um scroll no instagram”. Nada disso! Eventualmente, as opções eram outras: cassetes TDK gravadas com antecedência, a fim de gerar alguma cantoria pelo caminho.
Sobre esse tema, muito poderia ser discutido, mas os gostos dos meus pais, como quase todos, não se discutem. O relevante era o potencial do Marco Paulo para nos distrair com os seus dois amores.
Na pior das hipóteses para os miúdos e a mãe, na melhor para o pai, era o Sporting jogar durante a viagem. O relato era inevitável. Deve ser por isso que às vezes dou por mim a mudar para TSF quando tal acontece...
Como já mencionado, nessa época até nem era mau ser "lagarto". Não era raro chegarmos a Nogueira a cantar olé, olé, Sporting olé, com a camisola a tresandar a vómito seco. E muito felizes por ver a Avó Altina e o Avó Alfredo. E mais um companheiro de brincadeiras, o primo Zé Fernando, que viveu com os avós até aos 12 anos. A tia Lurdes era quem avisava, vinha a correr à porta, mal escutava os motores do fiat 124 e do mini azul a chegarem ao Largo de Santo António.

Hoje, a viagem para Nogueira tem início no Porto  para onde nos mudámos, entretanto. Demoramos, no máximo, duas horas e é porque fazemos uma pausa para um café, na estação de serviço da Mealhada.
À porta da casa azul, em Nogueira, já não há ninguém para nos dar as boas-vindas... fica a memória doce dos avós e da tia que continuarão em nós... sempre. 

Fevereiro, 2019
Idanha-a-Nova

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro