Vislumbres do Nepal *



Sentada à beira do lago de Pokhara. Parapentes coloridos pintam o céu azul sobre as mais altas montanhas do planeta. A brisa permite que esvoacem com facilidade, distraindo os dedos do teclado, ao mesmo tempo que lembram o privilégio de estar a cumprir o sonho de tocar, cheirar, escutar os Himalaias.

Pokhara é uma cidade muito turística, com gente de todo o mundo, dado ser um dos pontos de partida para as longas caminhadas pela cordilheira mais alta do mundo. Os primeiros vislumbres do Annapurna, um dos picos com mais de oito mil metros, justificam o desconforto sentido durante as viagens de autocarro, desde Varanasi, na Índia, até Katmandu e, da capital do Nepal até à cidade lago, Pokhara. De facto, as estradas em obras, percorridas em autocarros rústicos, demonstraram ser duras provas de resistência. Ninguém disse que seria fácil...

Todavia, quando se recupera o motivo pelo qual as estradas se encontram ainda num estado deplorável, aquele desconforto é despiciendo. O sismo ocorrido a 25 de Abril de 2015, com a magnitude de 7,8 na escola de Richter, resultou em milhares de vítimas e na destruição de outras milhares de infraestruturas, entre as quais a Praça Darbar, em Katmandu património da humanidade.

Na capital e arredores, as consequências são ainda muito visíveis, quer pelas obras de recuperação, quer pela dificuldade em transitar pelas estradas. O indizível sofrimento que o povo nepalês terá vivido, e certamente ainda sentirá, não destruiu a generosidade, tão-pouco apagou o sorriso das gentes dos Himalaias.

Os dias de voluntariado, num 'ashram' de meditação, permitiram desfrutar dessa bondade, bem como captar alguns vislumbres de costumes e hábitos da cultura do Nepal.

Namastê! A divindade que em mim habita, reconhece a divindade que em ti se manifesta. Namastê! A primeira palavra proferida, acompanhada de um gesto de reverência e respeito, por todos os que se encontram pela primeira vez em cada novo dia. A uma desconhecida e estrangeira, esse gesto era iluminado por um sorriso aberto, como que indagando se estaria bem, ou se precisaria de alguma coisa para ficar melhor.

O almoço era sempre uma experiência incógnita. A cada dia um novo prato, mais ou menos picante, mas sempre saboroso. As 'chapatis' acompanhavam os legumes e leguminosas cozinhados com uma diversidade imensa. Sozinha na minha refeição, dava por mim a sorrir na primeira colherada a tocar as glândulas gustativas. Sim, colher, sobretudo para as pessoas estrangeiras. A grande maioria das nepalesas, como as indianas, dispensam os talheres.
Se me reporto apenas às mulheres, deve-se ao facto de, naquele espaço de meditação, a segregação entre os sexos ser obrigatória. Se noutros retiros isso acontecia somente entre os estudantes de vipassana, ali, essa separação mantinha-se igualmente entre os servidores e voluntários. A vigilância mantinha-se ainda durante as refeições, sendo que havia uma sala de jantar para as mulheres e outra para os homens. Quanto às servidoras e voluntárias, sugeria-se que se recolhessem numa arrecadação na última refeição do dia.

Por vezes, também era chamada a almoçar na arrecadação. Mas o objectivo era outro: uma das servidoras mais velhas fazia questão de me providenciar novos paladares. Na última refeição tive direito a cinco 'mo-mo', um dos pratos típicos do Nepal. Uns rolinhos de massa (crua, pareceu-me) recheados de legumes acompanhados de um molho mais ou menos picante. Delicioso!

À semelhança de outras paragens e culturas, também aqui as vestes das mulheres procuram manter o recato, protegendo todo o corpo, com excepção das extremidades, não apenas do sol, mas sobretudo do olhar alheio. No Nepal, as mulheres hindus, tal como as suas congéneres indianas, usam calças e saris de todas as cores. Percebe-se alguma predominância do verde e do cor-de-rosa. Já as muçulmanas, como em quase todos os lugares, cobrem a cabeça e muitas o rosto, conferindo, com frequência, mistério ao seu olhar impenetrável.

Não era o caso de Sudharta, a minha companheira de serviço. Sempre pronta a ajudar-me em todas as tarefas e respectiva compreensão, a tez morena de Sudharta revelava uma vida inteira na sua expressão. O olhar negro e profundo vagueava entre as memórias das dificuldades já vividas e a alegria de servir e ser útil.

A minha companheira de voluntariado vive há cinco anos na Dinamarca, com a sua família. Foi o marido que a escolheu para dela desposar, quando a jovem tinha 18 anos. Apesar do amor que Sudharta desde o início sentiu pelo homem que a seleccionou, a sua família ainda hoje discorda do seu casamento. Também foi o marido que decidiu a nova morada, com a esperança que o filho, hoje com 17 anos, tivesse mais oportunidades de educação e futuro profissional.

A experiência num país do norte da Europa mostrou a Sudharta outras formas de vida, outros hábitos e outros costumes. Era com algum descontentamento que Sudharta se referia e comparava algumas práticas do seu povo, em particular aquelas relacionadas com o tratamento do lixo, ou a ausência de tratamento e cuidado.



É curioso como as perspectivas transformam o olhar. As semanas anteriores, passadas no norte da Índia, amenizaram aquelas palavras em tom de crítica da minha companheira. Depois de me ter emocionado com a pobreza, aliada à falta de higiene (segundo os meus padrões) na Índia, os meus olhos observavam e observam, no Nepal, pessoas continuamente a limpar o chão, tornando as ruas transitáveis sem a preocupação constante de estar atenta por onde colocar os pés. Desse modo, podia, posso, contemplar tranquilamente as cores das flores, dos pássaros, das borboletas.

Ah, e tantas borboletas serpenteiam à minha volta. Brancas e pintalgadas, amarelas e riscadas. Ainda nenhuma azul... Quem sabe vislumbre outras tantas borboletas aquando do circuito do Annapurna que iniciarei dentro de dois dias.

Namastê!


*Este texto foi publicado no jornal Chapinheiro

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