"No seu rosto a vida inteira" - uma expressão que guardei de Owen, quando me chamou a atenção para um homem que víamos da janela... do autocarro.
Owen, um inglês a viajar há cinco meses pela Índia. Alto, magro e de longos cabelos ondulados, Owen chegou à estação de Varanasi com Matheo, um eslovaco de 40 anos a viver desde os 18 anos nos EUA. Conheceram-se em Goa, duas semanas antes, juntando-se na partilha de despesas de alojamento. Um compromisso temporário que sugeria conferir alguma segurança ao inglês. Os seus quase 37 anos de vida (a completar dias depois) concediam-lhe uma enorme vontade de crescer, de se conhecer e de ultrapassar o receio da solidão. Esperou quatro semanas pela ex-namorada, que acabou por não chegar. Seguiu com Matheo, viajante solitário e independente, que terá reconhecido na sua companhia a necessidade de alguma orientação, ao mesmo tempo que lhe providenciaria ajuda nos custos.
A entrada dos dois homens europeus, altos, de tez e cabelos claros, na estação de Varanasi não foi discreta. Sobretudo por serem os únicos estrangeiros, além da portuguesa que escreve. O local para onde atiraram as mochilas fazia adivinhar que teriam o mesmo destino que eu: Sunauli - a cidade fronteiriça com o Nepal.
A pesquisa efectuada anteriormente sugeria ser mais seguro ou, pelo menos, mais confortável recorrer ao comboio como meio de transporte, ainda que em termos práticos me parecesse mais aborrecido. Isso mesmo me confirmou Atul, o guia do hosteLavie, onde fiquei alojada em Varanasi. Além do percurso sobre carris, seria necessário trocar para um autocarro, antes de atravessar a fronteira. Por conseguinte, acabei por seguir o conselho do indiano, apanhando o mesmo autocarro que Owen e Matheo. Fiquei entretanto a saber que o horário de saída não era o melhor para a viagem em causa. Ou antes, o autocarro nocturno teria sido a opção mais conveniente, uma vez que seria directo. Ignorava tal facto, contrariamente aos que se tornaram então os meus companheiros de viagem. Eles, sim, haviam tentado esse mesmo autocarro. Em vão, estava lotado.
Assim, em vez das dez da noite, o horário de saída seria às 19:45h. A partida tardou em meia hora. O tempo necessário para que o autocarro ficasse cheio. Nem um lugar vago. Os três estrangeiros escarrapachados contra a janela do autocarro. É que cada um se havia sentado numa fila de três lugares contíguos, na expectativa de se atravessar ao comprido
Mas a maioria dos passageiros saiu na penúltima paragem. Pelo menos ainda tínhamos quase duas horas até nosso destino para nos estendermos. Quer dizer, Owen não teve a mesma sorte e manteve-se estacado contra o vidro. Não foi, pois, estranho observar os olhos ainda mais encovados de Owen quando finalmente os pés tocaram o chão, ainda indiano.
Apesar de estarmos apenas a 500 metros da fronteira - informação que ignorávamos - fomos 'assaltados', 'atacados', assoberbados por meia dúzia de motoristas de riquexó. A sua insistência era de tal modo agressiva, que quase nos obrigaram a subir para os seus bólides a pedais. Matheo mostrou a sua raça e negou de forma veemente e audível. Até que o caminho se mostrou à nossa frente quando alguns candeeiros iluminaram a estrada principal. A escuridão das seis da manhã ainda era negra. Perguntávamo-nos por que raio o autocarro parara num sítio tão ermo e sem referência. Agradeci a presença dos dois viajantes estrangeiros...
Terá sido esse devaneio que me fez distrair... e tropeçar, e cair, e sem conseguir levantar-me: tinha duas mochilas atreladas ao corpo cansado. Owen estava atento e ajudou-me. Matheo só olhou para trás quando finalmente sacudi o embaraço. Isso aconteceu depois do carimbo de saída da Índia no passaporte e do 'masala chai' que os dois homens beberam para ajudar o caminho até ao outro lado da fronteira.
Já era dia quando entrámos no Nepal. Um sonho a cumprir-se... sem grande entusiasmo. E se pensava que o autocolante com o carimbo do visto adquirido por cem dólares me encheria de alegria, a entrada no autocarro, que nos conduziria até à capital, afogou qualquer esperança de regozijo para as primeiras horas no país dos Himalaias.
O bilhete comprado cinco minutos depois de sair do gabinete fronteiriço nepalês prometia o lugar num autocarro turístico, teoricamente mais confortável que o da noite anterior. Digamos que fomos ligeiramente enganados. Turistas éramos só nós, num transporte cujos lugares de passageiros eram ainda mais exíguos. Talvez pelo facto dos nepaleses serem também mais pequenos. As mochilas foram lançadas para o topo do veículo, onde terão recebido muito do pó reminiscente do terramoto de 2015.
Eram sete da manhã quando nos mandaram - literalmente - sentar em determinados lugares. Não obedecemos. Tínhamos esperança de conseguir estender um pouco as pernas no espaço para duas pessoas, em especial os dois homens. Ao fim de dez minutos estávamos novamente escarrapachados contra as janelas.
Houve paragens consecutivas nas primeiras horas. Gente a entrar, café ou chá aqui, casa de banho ali, combustível acolá, vendedores de fruta, de bolos, de salgados, de bebidas e disto e daquilo....
Numa das paragens aproveitei para comprar fruta. Fiquei surpreendida com a atitude de um miúdo. Pediu-me uma tangerina. Ou melhor, os seus modos eram os de quem exigia que lhe desse uma tangerina. Talvez por isso, não me sentia na melhor das boas vontades. O que é certo é que o miúdo de calças esfarrapadas entrou comigo no autocarro, e não foi embora enquanto eu não lhe dei uma peça de fruta. A minha percepção foi a de que, sendo eu estrangeira, era mais do que minha obrigação dar-lhe qualquer coisa.
É difícil dizer o número de vezes que o autocarro terá parado antes do almoço, cerca das 12:30h. A paragem foi à beira da estrada, onde havia uma série de barracas, com tectos de alumínio e bancos e mesas de madeira, a servirem de lojas, restaurantes e bares. Como nem toda a gente estava pronta para sair antes das 13h, aí ficámos até às quatro da tarde!!!
A estrada fechou nesse período para se trabalhar nas obras em curso. Inacreditável!, para os três estrangeiros. Assim como era, para nós, surpreendente a passividade dos restantes passageiros. Três horas parados, e? A maioria nem saiu, apesar do sol quente a radiar pelas janelas adentro.
Matheo considerou que o melhor modo de passar aquele tempo de espera seria a experimentar o Red Bull local... misturado com vodka. Convidou Owen para o acompanhar, o que para o inglês era um sinal de alcoolismo. Aceitou o convite. Posteriormente, Matheo juntou um pouco do seu elixir da paciência ao meu sumo de manga. E não é que resultou? Passado pouco tempo eram quatro horas da tarde e nós em movimento. Mas pouco. Com as filas intermináveis após aquela paragem, mais o estado miserável da estrada, mais as obras em curso, descemos do autocarro perto das onze da noite. Eram quase onze e meia quando chegámos à porta do hostel, no bairro Thamel, em Katmandu. Foram necessárias mais de 16 horas para percorrer cerca de 280 quilómetros.
Owen abraçou-me para me consolar quando, estarrecida, escutei o recepcionista do 'Family Peace house' dizer que a minha reserva fora cancelada. A meio da viagem, o que me dava algum alento, paciência e até tranquilidade era saber que me esperava um quarto só para mim, numa zona sossegada. Mas o funcionário tinha um argumento de peso (?) para às nove da noite dar o 'meu' quarto a outros hóspedes. Na minha reserva constava que eu chegaria às cinco.
O desalento foi curto. Como optara pela zona turística da cidade, havia lugar numa guesthouse a menos de cem metros. Agradeci o abraço e a cama.
No dia seguinte era feriado. Holi day em Katmandu para os hindus da cidade. Uma grande maioria. E as ruas encheram-se de cor e de alegria e de gente local e estrangeiros, com tinta na roupa e nos cabelos e no rosto, encharcados com os baldes de água que eram atirados das janelas e varandas.
O cansaço e o pó da estrada apagaram-se com as cores molhadas...
11/03/2018
Pokhara, Nepal
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