"Su mercê de onde é?" Quase sempre a primeira pergunta de quem viaja, ou "Para onde vai?", seguida de "Onde vem?" Questões a que estou habituada. Eu própria observo-me nesse interrogatório. Desta vez, o diálogo sobre o gosto de viajar decorreu no aeroporto de Bogotá. Quase me sinto da casa. Aí aterrei várias vezes, daí parti outras tantas, assim como pernoitei duas vezes, como esta noite.
Dormir no aeroporto não me é estranho. A primeira vez que isso aconteceu foi na Austrália. Uma experiência digna de registo. Além de ter sido a primeira vez que decidi poupar uma noite, o saco-cama abriu-se na rua! Uma estreia: dormir ao relento. Não estava sozinha. Desde então, apercebi-me que há muita gente que aproveita a segurança (possível e percebida) do aeroporto para poupar uns trocos.
O nome do aeroporto não sugeria o desfecho nocturno. "Aeroporto Internacional da Gold Coast". Ao comprar a viagem com partida às sete da manhã, pensei que o melhor seria aí pernoitar. O comboio desde Sunshine Coast permitiu-me chegar às dez da noite. Hora a que o aeroporto fechava as portas! "A sério?" Inesperado. Depois de percorrer o passeio deserto que ladeava o edifício, encontrei um largo coberto com vários bancos compridos. Três deles ocupados! Um italiano e duas norueguesas tiveram a mesma ideia que eu e, como eu, estavam admirados pela circunstância. Curioso foi ter passado as duas semanas anteriores debaixo de chuva - uma das razões que me fez viajar para a Ásia. Essa noite brindou-nos com céu limpo e estrelado. A tranquilidade não me abandonou. O local era vigiado por polícia e éramos vários mochileiros.
A segunda vez que dormi num aeroporto foi diferente. Em Banguecoque. Não dormi, apenas passei pelas brasas e mal. O forte ar condicionado, as cadeiras desconfortáveis e o bulício de um grande aeroporto. Nessa viagem de três meses em 2012, passei por vários aeroportos. Foi no de Kuala Lumpur que novamente me aventurei e com uma boa noite de sono. Usei uma estratégia que não volto a repetir. Regressava ao Porto numa longaaaa viagem. Saí numa terça-feira de manhã de Koh Tao, uma ilha paradisíaca para mergulhadores na Tailândia. Entre jipe, barco, autocarro e vários voos, foram tantas horas que perdi a conta. Aterrei às dez da noite de sexta-feira no aeroporto do Porto.
A estratégia, que hoje sei ter sido muito arriscada, foi-me sugerida por Bob. Um escocês que conheci em Saigão e com quem passei uma semana muito divertida naquela ilha. Aí vivia com a sua irmã. Comprei dez comprimidos do genérico de valium. O meu sono é muito leve e raramente durmo seis horas seguidas. Estar na cama mais de oito horas é um milagre para o meu corpo.
Resultou. Dormi na viagem de barco entre Koh Tao e o continente, no autocarro que atravessou o país até à capital da Malásia. Nesse aeroporto dormi toda a noite. Daí voei para Melbourne, onde também dormi a noite seguinte. É certo que com interrupções, mas a verdade é que estava extasiada pelo efeito dos químicos.
O ano passado tentei a façanha antes de sair de Cusco, Peru, de autocarro para Copacabana, na Bolívia. Na farmácia não havia o genérico e o 'verdadeiro' era demasiado caro para quem procura gastar com cuidado o pouco que tem. Ainda bem! As histórias que entretanto escutei de outros mochileiros e outros viajantes demonstraram-me como tal é perigoso. Prefiro ficar de rastos, como é o estado em que me encontro neste momento. Uma delas é de uma rapariga que conheci em La Paz. Numa viagem nocturna de autocarro tinha a sua mochila entre as pernas. Esta é outra das técnicas comuns: viajar de noite para fazer um dois em um - viagem e dormida; frequentemente com jantar incluído. A jovem inglesa chegou ao seu destino com a mochila bem mais leve. O seu computador portátil desaparecera. Há que dizer, porém, que a rapariga adormeceu com os auriculares em modo musical e de venda nos olhos... Um dia destes alguém me contou que as suas botas de montanha também se escaparam numa dessas viagens, sem que as tivesse descalçado. Algo que eu faço amiúde. Ou antes, fazia! São apenas dois exemplos que provam que é péssima opção deixar-se adormecer profundamente enquanto em viagem.
Esta noite, quando me recostei nos bancos do aeroporto de Bogotá (mudei várias vezes de poiso, refira-se), a almofada estava sobre a mochila, cuja asa entrelacei no braço. O último período de sono foi nos bancos do McDonald's (para alguma coisa servem); dos poucos bancos almofadados no aeroporto. De resto, quando despertei ao fim de duas horas e meia estava muito satisfeita. Eram sete da manhã; a dinâmica fez-me desistir de tentar dormir mais.
São sete da noite e estou no aeroporto de Lima, no Peru. Uma viagem larga até ao Rio de Janeiro. Era a mais económica perante o meu itinerário desde a Nicarágua. Desci de autocarro até à Costa Rica, onde passei duas semanas, e o mesmo bilhete permitiu-me seguir até à Cidade do Panamá, de onde comecei o trajecto, após três dias de desfrute. As restantes opções, apesar de serem um pouco mais curtas, eram substancialmente mais caras. É mesmo assim. Entre fazer voos directos e pagar o triplo, ou demorar cerca de 30 horas entre o Panamá e o Rio de Janeiro. Escala de dezoito horas em Bogotá e cinco em Lima. Aeroportos revisitados. É verdade que o cansaço não permite grandes actividades intelectuais. De qualquer modo, há tempo e disponibilidade (alguma para ler), escrever - como neste momento - e para falar com os amigos pelas vias virtuais. E claro, observar o lugar não-lugar aeroporto. Um espaço de trânsito de gente de muitas origens. Ao mesmo tempo, não é raro conversar com outras pessoas, como com a senhora Marlene, que me fez lembrar a semana maravilhosa que passei em Villa de Leyva*, onde toda a gente se tratava e a mim também por 'su mercê'.
4 de Outubro, 2015
Aeroporto de Lima, Peru