O nosso corredor



Vivi em Lisboa, na Portela de Sacavém, até aos doze anos. Éramos quatro. Eu, os meus pais e o meu irmão no nono andar, porta B. O apartamento tinha três quartos, duas casas-de-banho, uma sala e uma cozinha. Dois corredores. Um, pelo qual entrávamos em casa. O mais longo. Começava na sala, passava pela cozinha, continuava pela porta de entrada da casa e terminava na esquina para a zona privada, onde começava o segundo corredor.
O primeiro era comprido. Para mim, nessa época. Estreito, mas suficientemente longo para que eu e o meu irmão, o Miguel, fizéssemos dele um dos nossos espaços de recreio.
No canto que o corredor fazia com um dos quartos, mais tarde o meu, havia uma mesinha com o telefone da casa. Era aí que, com frequência, nos sentávamos a discar números e a fazer telefonemas anónimos. Debaixo do telefone havia uma prateleira rasa, onde se arrumavam as duas listas telefónicas. A azul, com os números privados, e a amarela, com o inventário de todos os estabelecimentos comerciais da nossa área residencial. Abríamos a primeira ao acaso e marcávamos um número.
Nesse tempo, eu já devia estar a completar a primeira década de vida. Era, seguramente, uma das brincadeiras favoritas. “É de casa do Sr. Coelho?” Não me recordo do resto que dizíamos, com voz disfarçada. O que me lembro é de tapar a parte inferior do auscultador preto e pesado para nos rirmos em surdina. Como não aguentávamos e não nos contínhamos, desligávamos o telefone sem ouvir a voz do outro lado. Libertávamos então as gargalhadas presas na garganta. E ríamos, e ríamos.
O telefone, hoje retro, era preto com superfície lisa e fria. Um atractivo difícil de resistir. Os buracos com os algarismos de zero a nove eram largos para os nossos deditos. O meu irmão não tinha sequer força para discar o número até à patilha. Exigia um esforço contínuo para segurar e manter o giro até ao fim. Colocávamos o dedo e rodávamos vezes sem fim para escutar uma folha a rasgar-se e deixávamos cair depois de tocar na patilha como uma bola de fliper.
Trim, trim, trim. Tocava o telefone de madrugada. Lá vinha o meu pai, estremunhado, atender o telefone. Era o seu despertador. Tinha de sair muito cedo para a pastelaria.
Que idade teria quando o telefone foi ali plantado? A mesa de apoio era o único habitante do corredor. Tínhamos uma pista inteira para brincar. Para andar de triciclo, por exemplo, enquanto a mãe preparava o jantar. Como sou quase quatro anos mais velha que o meu irmão, é provável que o meu triciclo tenha passado para ele.
O corredor era também o nosso palco de acrobacias. Quando era miúda andava na ginástica desportiva do Sporting. Não precisávamos de colchões para mostrarmos os pinos, as pontes ou as cambalhotas. Sendo o corredor um pouco estreito, aventurava-me desde a porta da cozinha e lançava-me contra a parede onde exibia os meus pinos de parede. Aí ficava colada, mantendo os braços esticados o mais tempo possível. Claro que o meu irmão, traquina, reguila e outros atributos semelhantes, fazia trinta por uma linha para me provocar quedas.
As correrias eram naturalmente o prato do dia, ou da noite, melhor dizendo. À semana, saímos cedo de casa e chegávamos para jantar. Mas o tempo que aí passávamos bastava para que eu e o meu irmão corrêssemos atrás um do outro. Ora eu, ora ele. Um estalo inofensivo. “Foste tu que começaste. Não fui nada! Foste tu!” Nenhum queria perder. Ganhar significava ser o último a dar um tabefe no outro. Perder era usual. Ia a choramingar à mãe: “Oh mãe, o mano bateu-me...” Queixinhas, a sua acusação recorrente de maroto.
Fomos sempre assim até nos mudarmos para o Porto. Para trás, ficaram a Portela de Sacavém e os Olivais Sul. Era aí que os meus pais tinham um estabelecimento comercial: a Pastelaria Filó. Voltámos alguns anos mais tarde para uma visita única àquele apartamento no prédio branco com listas azuis da Rua Estado da Índia (parece que a Índia esteve desde sempre comigo). 
Ao entrar na casa fiquei impressionada com a exiguidade das divisões. Do corredor, em especial. Afinal, era ainda mais estreito do que me recordava. Afinal, o pé-direito era ainda mais baixo do que pensava. Crescera. E crescera com saudades das brincadeiras naquele corredor de alcatifa rala, verde seco, cor de azeitona. Uma cobertura fina para tapar o cimento. Eram todos assim, como na casa dos vizinhos, do nono A. Onde viviam os nossos amiguinhos. A Sofia e o Gonçalo.   

Sem comentários:

Enviar um comentário