Os outros em nós...*




O Dia de Todos os Santos é o dia em que as pessoas que partiram para outras dimensões são recordadas. Quer dizer, no dia 1 de Novembro lembram-se os santos e no dia 2 todas as outras pessoas. Naturalmente que isto é apenas um modo de falar, dado que as pessoas que nos eram (e continuam a ser) queridas não precisam de um dia estipulado para que suspiremos por elas.
Na verdade, pelo menos para mim, é preciso tão pouco para que a imagem de alguém que me era próxima me apareça, tocando-me e emocionando-me. A memória é mesmo assim. Um simples objecto naquele lugar, àquela hora ou uma palavra dita num determinado momento e eis que logo viajo para outros tempos e outros lugares, onde posso rever e reviver instantes com esse alguém.
A memória é assim, uma caixinha que, ao abrir-se, tem mais uma caixinha lá dentro que, por sua vez, tem ainda outra caixinha, qual matryoshka - a boneca russa que tem sempre mais uma pequenina surpresa, um pequeno tesouro.
A memória é mesmo assim, um pequeno grande tesouro. Guardo nessas caixinhas, quase que por departamentos, todas as pessoas que têm passado por mim. Guardo e quero lembrar, pois, como dizia Mário de Sá-Carneiro, esquecer é não ter sido. E muito do que eu sou, resulta, creio eu, das pessoas que se inscreveram em mim, marcando-me, mais ou menos profundamente.  
A memória é mesmo assim. Um livro, uma história, a História. E quem ama a vida, ama o seu passado. Como lembra Marguerite Yourcenar, "o passado é o presente tal como sobreviveu na memória humana". E quem amou os seus entes já mortos, deseja preservar na sua memória e no seu coração o tempo antes partilhado.
Através desta marca temporal - a celebração de todos os santos - viajamos no tempo e no espaço e regressamos àqueles que se inscreveram em nós.
Dez dias depois temos mais um motivo para nos reunirmos, desta feita, com os vivos. O Verão de S. Martinho é o clima ideal para o magusto em boa companhia. De preferência com muitas castanhas assadas, cozidas ou cruas, o que interessa é que sejam bem regadas com água pé ou vinho novo, diz a tradição. Mas a tradição nem sempre se mantém e este ano não vou comer castanhas.
Estou fora do país, razão pela qual estou até atrasada nesta crónica. Escrevo enquanto viajo entre São Paulo, no Brasil, e Lima, no Peru. Estou prestes a cumprir um dos sonhos da minha vida: fazer o trilho dos Incas no Machu Pichou, e assim conhecer uma das sete maravilhas do mundo. O berço da civilização Inca. O tema escapou-se, então, para estas paragens. Era inevitável.
Debaixo das nuvens que avisto da pequena janela, os Andes! Que cordilheira extraordinária. Faz-me sentir tão pequenina e ao mesmo tempo tão grande. Pequena, claro. A contemplação da beleza da Natureza imensamente arrebatadora apaga-me na sua infinitude. Também me sinto enorme. A gratidão que me invade abarca e abraça todas as pessoas e lugares que entretanto me providenciaram esta experiência. Não estou aqui sozinha, tenho a certeza. Até porque sozinha sou realmente muito pouco ou nada.
Gosto muito do modo como na língua espanhola se diz o pronome pessoal "nós" - nosotros. Somos com os outros, somos mais com os outros. Os outros em nós. É tão fácil deixar entrar os outros ou entrar nos outros. Um simples bom dia com um sorriso nos lábios tem o poder de transformar o dia de alguém, mesmo que esse alguém seja um desconhecido. Ainda. Ainda, pois a saudação atenta pode tornar-se num pequeno grande gesto. E não custa nada. Para mim é sinal que alguém reparou na minha presença. Quando sou eu a saudar, estou a dizer: olá, és uma pessoa e não uma pedra inanimada.
O dia Mundial da saudação concorre com o dia Mundial da televisão - 21 de Novembro. Confesso que prefiro a saudação, nestes dias em espanhol. Deixo-me, pois impregnar por novos outros. Quem sabe a próxima crónica seja em espanhol.

*texto publicado no Jornal Chapinheiro

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