Fragmentos de viagens... ... as ‘minhas’ Banguecoque’s*





Através de “um caminho imperfeito”**, viajei novamente à Tailândia. De página em página, caminhei lentamente, passo a passo, pela memória da ‘minha’ Tailândia, mais concretamente, pela capital: Banguecoque.
A ‘minha’ Banguecoque é, na verdade, o resultado de três Banguecoque’s. Quantas, quantas as que nela vivi, mesmo que por meia dúzia de dias. Ao revisitar o diário dessa viagem de 2013, encontrei três Banguecoque’s distintas. Ou seria eu que estaria diferente em cada incursão na metrópole asiática?
A ‘minha’ primeira Banguecoque é de tal modo poluída, que sou capaz de me lembrar da sensação de ter o nariz colado a um tubo de escape, de um carro a gasóleo da década de 1990. Banguecoque é incomensurável. Multidões, multidões.
Ao fim de um par de dias a percorrer as ruas pejadas de carros, carros e apinhadas de tuc-tucs, tuc-tucs preenchidos por gente cansada, pouco cheia de si, prometi a mim mesma que jamais viveria em tal cenário. Um quadro com cheiro a alcatrão quente, temperado de combustível queimado, pintado de fumo preto. Ruas cheias de tendas azuis a cobrirem os passeios, construindo um túnel tão longo como uma auto-estrada, escondendo lojas e balcões de contraplacado, repletos de plástico de todas as cores, mais ou menos vivas, mais ou menos esbatidas.
Uma cidade com mais de oito milhões de habitantes. Além da população nacional, existem diversas comunidades estrangeiras, em especial do Japão e da China. Mas também de países vizinhos, como a antiga Birmânia, Laos e Camboja. Os europeus também são inúmeros (eram quase 50 mil em 2011, de acordo com os Censos desse ano).
Esta representatividade é bem visível e confirmável numa das ruas mais turísticas de Banguecoque: Khao San Road – a primeira rua que os meus pés pesados, pela mochila às costas, pisaram, ainda com os joelhos a tremerem de excitação. Aí cheguei de moto-táxi despenteada e esgazeada, com as veias em ebulição, tal era a quantidade de adrenalina que se acumulara durante o trajecto desde o terminal de autocarros.
Regressava de Bang Saphan – um paraíso no Golfo da Tailândia, onde vivi dez dias num bangaló à beira-mar (fica para ‘fragmento’ futuro). Durante a viagem de autocarro, em conversa com outros estrangeiros, fiquei a saber que podia tranquilizar-me quanto ao facto de não ter reservado um quarto na capital. Se fosse directa a Khao San Road era certo e seguro que facilmente encontraria um quarto. Tantas opções, como preços.
Descendo a camioneta, os motoristas de táxis logo se aproximaram: ‘onde vai, onde vai, onde vai?’ – num inglês improvisado sem complemento verbal. Enquanto atiravam o seu preço em bates (bath, a moeda tailandesa), ia caminhando em direcção à paragem de autocarros e declinando as ofertas, na expectativa de conseguir um valor mais interessante. Até que escutei um preço mais baixo e acedi e segui o potencial taxista. Sem dúvida mais económico, mas era, igualmente, uma novidade para mim: um moto-táxi.
Entrei em Banguecoque de scooter. A todo o gás. O motociclista contornava o trânsito, os carros esbaforidos de ar quente e cinzento. A velocidade era o mais rápido possível. Sempre a abrir, a todo o gás. Ultrapassando outras motas, escapando dos carros semi-parados, a todo o gás. Meia hora de emoção, na estreia em Banguecoque, a todo o gás.
Quando saltei da mota, os joelhos tremiam. As narinas fungavam. As mãos juntaram-se para agradecer o caminho percorrido, a todo o gás, até à rua mais internacional que tive a oportunidade de calcorrear.
Devagar, muito devagar. Um tempo lento para fechar a boca, de cada vez que se escancarava em cada olhar para a direita – os insectos na brasa, prontos a serem servidos em espetadas “deliciosas” –; para a esquerda – crepes de nutela a provocarem as salivas mais distraídas –; em frente, quase esbarrando num irlandês com gorro de duende verde. Mais alguns passos, lentos, olhando de novo à direita – um relógio Tag Heuer, same same, but different –, novamente à esquerda, e uma inglesa com um copo de cerveja na mão. Olhando em frente para não ir contra um australiano a cantar ao telemóvel, abraçado a uma ladyboy.
Até que entrei numa guesthouse – Four sons. Sem discutir preços e sem procurar mais, aí fiquei a primeira noite. Sentia-me esgotada pela viagem de sete horas, sentada na camioneta e, ao mesmo tempo, fascinada pelo pouco tempo que flutuara em Banguecoque.
Na ‘minha’ segunda Banguecoque, o “jamais viverei aqui” foi substituído por um “não é assim tão horrível”. Saíra compulsivamente da Tailândia, pela necessidade de renovar o visto de entrada (como entrara via térrea, só pude permanecer quinze dias), e fui a Siem Riep, no Camboja (fica para outro ‘fragmento’ futuro).
No regresso à capital tailandesa aproveitei para tratar da mochila – estava com uma das alças a romper. Procurei, procurei, procurei, entrando em estabelecimento, atrás de estabelecimento, vasculhando nos mercados de rua, até que finalmente encontrei um agulhão e fio para a operação cirúrgica, numa loja de artesãos. Quando ia para pagar, o rapaz de tez pálida e com o corpo todo tapado, apesar do calor e humidade que se faziam sentir, recusou-se a cobrar. O tamanho da agulha era tão grande que era visto como uma arma. Na sua maioria budistas, os tailandeses são as pessoas mais pacíficas que conheci até hoje. O jovem comerciante não podia vender algo que poderia resultar no sofrimento de outro ser vivo. Por conseguinte, paguei apenas, e de forma simbólica, o fio forte e robusto para tratar da minha companheira de viagem. O sorriso que o rapaz vestiu no momento da troca foi uma dádiva.
À saída da loja, o meu rosto iluminado pela generosidade experimentada foi complementado por outro vendedor. Desta feita, com outro tipo de produtos: dentaduras para todos os ‘gostos’ e bocas. A minha surpresa foi reconhecida pelo velho desdentado que me permitiu fotografar a sua caixa de tesouros dentais.

Durante a minha estadia na minha ‘segunda’ Banguecoque entrei em alguns dos inúmeros templos, como o Wat Arun – o Templo do Amanhecer – e o Wat Pho – o maior e mais antigo de Banguecoque, onde jaz o Buda reclinado. Foi no último que entrei, sem que me lembre do nome, que quase me converti ao budismo. Quase... decorria uma cerimónia de iniciação de jovens budistas. Fui inundada pela bondade que exalava de todas aquelas pessoas, em especial do monge mais velho, cujo olhar incandescente, transbordava uma tranquilidade inominável.

Viajei para o Vietname pelo mesmo motivo da saída anterior (também terá de ficar para outro ‘fragmento’ futuro) – tinha (!) que regressar ao país. A ‘minha’ terceira Banguecoque prosseguiu na sua transformação. E o “jamais viverei aqui” e o “não é assim tão horrível” foram substituídos por “era menina para viver neste país extraordinário, e passar uma temporada em Banguecoque”.

Comecei a encarar os milhares de ilhas frescas na cidade poluída quente e húmida, como possibilidades interessantes para me instruir acerca do processo de ocidentalização da Tailândia. Em cada esquina há um 7-Eleven – lojas de conveniência, com uma temperatura interior abaixo dos 18 graus! – que se descobrem numa trégua refrescante para qualquer transeunte forçado. A sua oferta é muito diversificada. Desde chocolates como o snikers, que comprava quase todos os dias, às pringles de todos os sabores e mais alguns, iogurtes de frutas para pequenos-almoços improvisados (os meus), até aos cremes de rosto, com factor de protecção 90! – isso existe? –, que as tailandesas adoram, na tentativa de corresponder à imagem mais publicitada nos outdoors: mulheres asiáticas de pele muito branca.
A visita ao parque Lumbini confirmou a minha afeição pela cidade. Um espaço enorme, pintado de verde, pela imensa variedade de árvores e vegetação compacta, muito bem cuidado, onde à época já era proibido fumar. Uma das pessoas que logo me chamou a atenção, pela corrida lenta, mas persistente, foi uma senhora de idade intangível, acompanhada da sua aia, que a protegia com um guarda-sol. Talvez uma princesa, deslizando de chapéu na cabeça, cobrindo ainda mais o rosto coberto por um creme tão pastoso e esbranquiçado que parecia uma máscara.
Os crocodilos e tartarugas gigantes eram outros habitantes do extenso lago, em volta do qual era possível passear e reflectir, acerca de tudo o que me rodeava e me confirmava o desejo de regressar e, assim, ganhar mais umas quantas Banguecoque’s. Depois de fechar o livro que me inspirou nesta redacção, guardei mais uma Banguecoque no meu coração.


*Este texto foi publicado no Jornal O Chapinhiero
**Este texto foi escrito após a leitura de “Um caminho imperfeito”, de José Luís Peixoto.



Silêncio

            Silêncio. Ausência de percepção de som. O monstro chega na noite. O silêncio. A obscuridade assome. Nada é. Tudo pode ser, no silêncio. O azul beija a montanha. O céu sussurra na voz do vento. As folhas movem-se. Tocam-se. Os ramos mexem-se e os colibris esvoaçam.
            Fechas a porta do quarto. A noite cai. As estrelas começam a desenhar os mitos. Os pirilampos pululam. E as rãs coaxam numa conversa interminável. Queres escutar o silêncio. Os morcegos despertam, então.
            Trancas a porta. Os grilos cantam a lua crescente. As nuvens correm impelidas pelo vento que se embrenha nas árvores. As vozes das raízes mais profundas e invisíveis murmuram nas copas agora escuras. Não tens como. O silêncio. A natureza canta. Embala-te. Desfruta e sonha!


23 de Junho, 2015

Iguaque, Colômbia 

Fragmentos de viagens...*



... Kuala Lumpur



A minha ignorância é oceânica. Se disso estava segura enquanto estudante, investigadora e leitora, as viagens têm confirmado cruamente o quão limitada sou.
Em 2013, voei em direcção a Melbourne, com a intenção de passar três meses na Austrália. Ao fim de um mês, a chuva era a minha companheira mais fiel, enquanto subia pela costa do Pacífico. De maneira que, ao chegar a Sunshine Coast, decidi retroceder a Gold Coast – onde encontraria o aeroporto internacional mais próximo (onde vivi a minha experiência única de dormir ao relento).
Daí voei para Kuala Lumpur. Foi após a tomada de decisão, e durante as pesquisas acerca dessa cidade, que me apercebi de que a Malásia é vizinha da Tailândia e está à distância de uma ponte de Singapura. Numa ‘Estrada azul’ li isso mesmo, que viajar nos faz entrar na geografia. Voava para uma nova realidade geográfica: a Ásia!
Durante a interrupção de tempo, no ar, que me transportava até Kuala Lumpur, as buscas prosseguiram. Era necessário seleccionar de forma criteriosa os locais a visitar na capital da Malásia.
Um recorte de revista sugeriu-me um local com a classificação de eco-turismo: o parque de aves – Kuala Lumpur Bird Park. A brochura vendia o parque como sendo o maior da Ásia, guardando o conceito distintivo de voo-livre. O que significa que (pelo menos em teoria) os pássaros têm liberdade para voar quando e para onde querem.

A realidade inverosímil transcendeu o cerco da minha ignorância e vagueei durante horas a fio pelas diferentes zonas do parque. Passo a passo, o meu rosto iluminava-se com as cores vivas das inúmeras espécies. Emas, mochos, pavões, papagaios, araras, aves de rapina, flamingos, periquitos, pombos, patos, galinhas da índia e mais uma infindável série de espécies que desconhecia. Asas de todas as cores rasgando o céu em cada abrir e fechar de olhos.


O azul não era a cor predominante de um céu fumado, escapando-se dos edifícios que teimavam em arranhá-lo. Pelos caminhos das horas asiáticas toquei noutra realidade cinzenta, mas brilhante: as Torres Petrona. Um par de torres com 88 andares e 452 metros de altura resplandecente. Característica que lhes confere o sexto lugar na lista dos edifícios mais altos do mundo. Aí habita um paraíso para os amantes das compras e das marcas de luxo.
 
  A sua imponência desafia as leis da gravidade. Exagero. Mas na minha memória inculta não moravam patamares de betão tão elevados. A minha região desértica das alturas ficou ainda mais preenchida quando subi à Torre Menara. A sua exuberância terá sido ofuscada pelas outras gémeas. Não obstante, foi nesta torre com 421 metros que confirmei mais uma vez a minha pequenez.

A vista incrível, que a torre me providenciava em 360 graus, mostrava-me as torres gémeas e o seu séquito de edifícios de luzes acesas a iluminarem o caminho da noite.


Guardei as emoções num bolso e calcorreei os passeios à beira-rio, que me conduziram até Sultan Abdul Samad – o local que abrigou os colonizadores e a respectiva administração britânica até 1957: data que assinala a independência da Malásia, festejada na Praça Merdeka  onde antes se jogara o críquete.
A grandeza daquela obra histórica foi marcada por discussões do foro arquitectónico que deixam os leigos na dúvida quanto ao seu estilo mais ou menos mourisco. A torre do relógio destaca-se pela sua altivez em forma de cúpula, cuja cor do sangue provoca outras quantas indagações acerca da sua edificação.
Sem estugar o passo, errei pelo mercado central de China Town, amplamente referido como sendo de visita obrigatória. A mochila era parca em espaço para quaisquer recordações materiais ou coisa que o valha, mas os olhos mantiveram-se bem abertos, enchendo-se orgulhosamente de memórias coloridas.

O hotel em que me alojei por duas noites, antes de viajar de comboio para Banguecoque, ficava muito próximo de Brickfields. Uma área habitada sobretudo por gente de origem da Índia, tornando-a, por isso, mais conhecida por Little India. As cores vivas, os odores quentes e os sabores picantes são estímulos fáceis para invocar a atmosfera mística daquele quase continente. Na verdade, foi em Kuala Lumpur que me sentei pela primeira vez, ao fim de um mês, num restaurante para me deliciar com uma refeição completa. E indiana!
Há que dizer que na Austrália os preços eram dez vezes mais caros que em Portugal, mas na Malásia os bolsos descontraíram e respiraram com algum fulgor.
Foi na estação de comboios urbanos que me deparei pela primeira vez com a possibilidade de viajar numa carruagem exclusiva para mulheres, onde se visualizavam sinais a proibirem beijos e abraços. O espanto foi de tal ordem – ai quanta, a minha ignorância – que partilhei uma fotografia nas redes sociais. Alguns anos mais tarde, em Nova Deli, agradeci vivamente o facto de ter essa mesma opção.

Apesar do pouco tempo que passei em Kuala Lumpur, foi possível apreciar e ser alvo da generosidade e sorrisos malaios. Os farrapos de conversas desenvolveram-se num inglês titubeante, pintando os meus dias no clima equatorial e ajudando a esquecer a chuva incessante das semanas anteriores.
Voltei a Kuala Lumpur dois meses depois, mas dessa feita fiquei-me pelo ‘não-lugaraeroporto – estava de passagem, transitando entre a Tailândia e o Porto... era tempo de guardar os fragmentos e transformá-los em matéria viva.


*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro. Infelizmente, o Jornal está suspenso, por tempo indeterminado!

Fragmentos de viagens...*






... Paraty azul

Tique-taque. Tique-taque. Os relógios imparáveis. Os de Paraty nem por isso. Viviam numa casa branca. Expunham-se, escancarados à porta, rindo-se nas mãos do relojoeiro. Peças antigas. Peças de arte que se acertavam, guardando a ilusão do tempo eterno. Num dia sem tempo, na quietude de uma tarde quente de Verão, Paraty ganhava os transeuntes que se entretinham nas lojas que ali moravam.
Uma paragem na Cuca de Banana, onde degustámos empanadas de beringela, seguidas de banana flambada na cachaça com sorvete artesanal. Iguarias tão estranhas quanto deliciosas para despertar outros sentidos.

De porta em porta, ressoavam passos lentos pelas ruas empedradas de Paraty, perscrutando as artes e ofícios dos artesãos locais. Vivem em casas caiadas, com janelas bordadas a azul e amarelo, onde ainda se escondem os antepassados portugueses. Aqueles que se debruçavam, quase caindo e largando memórias tricotadas por fios multicolores.

Chegaram em barcarolas que, em zigue-zague, rasgaram as águas azuis e cristalinas. Afundaram-se no sal. O modo de se conservarem na vegetação exuberante e verdejante à beira-mar.

Tique-taque. Tique-taque. O azul transforma-se em cada sonho. O suave odor de maresia ao amanhecer converteu-se no despertador perfeito. As araras azuis invadiam a paisagem sonora, às sete da manhã, ajustando com delicadeza os acordes das ondas ainda pálidas.
Um banho de mar: o elogio fácil às águas salgadas de Paraty. O tempo multiplicou-se na Praia do Sono e gravou-se num sorriso sem pressa. Caminhando à beira-mar, a areia macia e branca agarrava-se aos dedos dos pés. Fragmentos de um dia veloz, que se escapou por entre outros dedos. Os das mãos que, num esforço em vão, tentaram prender um suspiro.
A máquina fotográfica quis desenhar o tempo, mas o vento selou a paisagem, sem quebrar as montanhas ao largo do horizonte. Montes calvos sob as nuvens brancas, figuras pouco geométricas com traços inequívocos da realidade pintada de verde pistácio.
Mais um mergulho, uma espécie de tentativa para salvar a fragância de um Setembro inesquecível. Inspirando o odor a maresia, vesti o azul de Paraty. E assim guardei o tempo sem contrários e a paisagem cristalina.
Sem pressa de voltar, amanheci noutro lugar.


*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro






Fragmentos de viagens...*



 ... travessia do Rio Douro... a nado

 
Este ano fui duas vezes a Espanha – saí duas vezes de Portugal. Note-se. É provável que o verbo ‘sair’ não seja o mais adequado.
Em primeiro lugar, atravessar uma ponte de bicicleta até à fronteira não significa, necessariamente, estar a sair ou a entrar, ou coisa que o valha.
Em segundo lugar, numa travessia a nado só se toca na outra margem de um rio.
Foi de Segura – aldeia do concelho de Idanha-a-Nova – que cheguei a Espanha, pedalando e, assim, atravessando a ponte sobre o Rio Erges. O ponto de partida da ‘viagem’ fora da própria sede de concelho, Idanha-a-Nova...

Nadei até Espanha desde Peredo de Bemposta – Mogadouro. Uma praia fluvial, nos confins, não direi do mundo, mas cujo acesso ainda lhe providencia o carácter de ‘tesouro’ do Douro. Por favor, não divulguem. Queremos voltar lá, com a esperança de que ainda não esteja transformada numa algazarra de Agosto.
A aventura até Segura – chamemos assim – jamais poderia ser empreendida em Agosto. O caldeirão da Beira Baixa não permitiria uma estafa de quase 100 quilómetros (ida e volta) a pedalar. Foi o meu percurso mais longo até ao momento, de bicicleta. Valeu a pena!
Não consigo explicar o encanto que Idanha-a-Nova tem sobre mim. A paisagem quase vazia – ‘limpa’, como alguém afirmou – exerce um fascínio indizível sobre o meu ser.
Não chega a 100 metros, a distância entre as duas margens do Rio Douro. De qualquer modo, fui a única pessoa a nadar até à outra margem naquela tarde de Agosto, no concelho de Mogadouro. Com e sem modéstia à parte.

A dificuldade estava – segundo o meu companheiro de aventuras – na incapacidade de ver o fundo do rio. Sabe-se lá o que poderia saltar, assim de repente, e comer-nos os pés.
Os abutres-negros vagueiam pelo ar em busca de alimento, por conseguinte, estes necrófagos não eram um perigo para quem pedalava até ao Rio Erges.
Em Março, as cores primaveris que ladeavam a estrada com curvas e mais curvas enchiam os meus olhos. O amarelo dourado das flores silvestres contrastava com o ainda verde da vegetação rasteira. Os olivais alternantes com os campos de pasto pincelavam as terras ondeantes, cuja inclinação assegurava um treino forte, sem chegar ao limite do extenuante. As pernas ressentiram-se – afinal, 50 mais 50 dá que pedalar – mas sem desafio não seria tão interessante.
Aqueles quase 50 metros até Espanha (mais 50 de volta até à ‘nossa’ margem) desafiavam o conceito de fronteira – pelo menos a mim, para quem este é um tema muito caro.
O verde seco e denso das águas do rio davam a sensação de se estar prestes a pisar um manto sem solo. Mas as pedras e rochas de cada margem parecem ser suficientes para afirmar: aqui é Portugal; daquele lado é Espanha.
A ponte romana, que terá sido construída durante o império de Trajano, no século II, estabelece uma marca territorial que dissipa quaisquer dúvidas que possam subsistir. A sua imponência é só mais um exemplo daquele que foi o maior império de todos os tempos. Os resquícios e vestígios por todo o território português assim o atestam.

Território.
Quando se nada no Rio Douro, as altas fragas em cada margem acendem a imaginação e ‘edificam’ lendas, como a da “Fraga da serpente”. Reza a lenda que havia uma serpente que todos os dias cumpria um ritual: ao acordar, dava sete voltas à ‘sua’ fraga; depois, no seu movimento serpentino ia até um chafariz para beber água e, no seu regresso a ‘casa’, ia picar os pés de uma santa que vivia noutra fraga. Todos os dias.
Mas até uma santa perde a paciência; fartou-se de ter os pés picados por uma serpente caprichosa. Lançou-se para outras terras, espanholas, a santa. Depois de se encaixar num seixo, rebolou para a outra margem. Mas de Espanha, não há apenas ventos e casamentos. Os pastores que por ela passavam, atiravam-na arriba abaixo. Isso aconteceu várias vezes, tantas como aquelas que encontraram o tal seixo no mesmo sítio de onde o lançavam. Até que a curiosidade os moveu e abriram o seixo e viram uma santa a quem ergueram uma capela – no lado espanhol, já se vê. Mas a santa que afinal também parecia caprichosa virava-se para Portugal. Talvez para mostrar à serpente os seus dedos em forma de pássaro.
Os pastores compreenderam e remodelaram o santuário, construindo um duplo altar. Deste modo, também a podemos ver sem ter de nadar para a outra margem.
O mesmo não se passa em Segura, onde a povoação sente que nada poderá alterar as suas vidas, as suas terras. As lendas não cabem aqui, mas os fortes e torres e castelos, ou o que resta deles em toda a faixa raiana, lembram a história de batalhas, guerras, afrontas...
Hoje: Espanha. Portugal.
Um rio. Uma ponte.
Quem dera se mantenha só assim. Os muros físicos são tantos e tão ‘duros’...
Enquanto puder nadar e pedalar esqueço-me ou, pelo menos, sou capaz de me abstrair das cabeças que rolaram arriba abaixo...




* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro


Fragmentos de viagens...*


... ao quinto dia nas montanhas mais altas...

... do mundo.
Há precisamente um ano cumpria um dos sonhos da minha vida: realizar uma caminhada nos Himalaias. Optei pelo Circuito do Annapurna. Caminhei durante dezassete dias de mochila às costas, sempre apoiada por um cajado. Esta prótese, assim o integrei ao longo do caminho, em particular nas subidas, fez parte do meu corpo até ao fim. Tal presente foi-me concedido logo na primeira hora de marcha, depois de atravessar a primeira de muitas pontes suspensas que ligam as margens dos rios e ribeiros do Nepal.
É sobre a travessia de uma dessas pontes suspensas que este texto se detém.
Nem todas as pontes me inspiravam confiança. Pelo contrário, houve uma ou outra ponte suspensa, cuja vulnerabilidade (por mim percepcionada...) me terá provocado certas indagações: “Que faço eu aqui? Quero mesmo atravessar esta ponte? Será que vale a pena chegar ao outro lado, e a que custo? Ou ainda, e talvez ainda mais séria questão, será que conseguirei chegar ao outro lado, sã e salva?”
Arrisco a impressão de estar a exagerar. Não obstante, quando me defrontei com mais uma ponte suspensa, coberta por um manto de neve virgem, a três mil e quatrocentos metros de altitude, pouco depois das oito da manhã, também o meu olhar se suspendeu durante um lapso de tempo – o suficiente para eternizar aquele instante. A brancura ofuscante inebriou-me e ‘obrigou-me’ a parar. O sol ia alto e, naquela manhã fulgurante, os óculos escuros de lentes azuladas eram obrigatórios.
O receio não era sentimento que me assaltasse na quinta manhã do percurso dos Annapurnas. O coração batia com um ritmo acelerado – por dois motivos. Um deles, fisiológico. Aquela altitude, e em sentido ascendente, impõe respeito a quem, como eu, vive ao nível do mar. A cadência que se impunha era em lentidão. Além disso, havia a mochila, ainda que nessa manhã me parecesse substancialmente mais leve. Os cerca de doze quilos com que iniciara o trajecto mantinham-se, mas o corpo adaptava-se rapidamente. Mas a pressa não era desejável. De todo!
Um dos objectivos do empreendimento a que me propusera era a contemplação. Como tal, o estado em que me procurava manter era o de receptividade. Só desse modo me poderia conectar com a Natureza e assim deslumbrar-me com o caminho, com toda a envolvência ... extraordinária. Afinal, caminhar pela montanha, seja qual for a montanha, pela manhã e em silêncio é uma experiência arrebatadora.
Arrebatada – como me senti quando me deparei com essa primeira ponte suspensa, ao quinto dia do Circuito. Não é estranho, por isso, que, além dos efeitos fisiológicos da altitude, o meu coração tivesse entrado em arritmia por motivos emocionais, admito. Observava as sensações que o êxtase me provocava. Os pêlos eriçaram-se instantaneamente, qual pele de galinha. O sorriso era do tamanho dos picos que me rodeavam. Os joelhos tremelicavam e o cajado confirmava a sua valia com respeito.
Como nevara durante toda a noite, além das árvores cobertas de neve, que se balançavam a cada raio de sol mais forte, libertando-se assim de algum peso, também a ponte me aguardava com um tapete macio e imaculado. Era a primeira a chegar ali. Os olhos emudeceram-se perante a brancura e beleza inefáveis.
O deslumbramento começara logo pela manhã, mesmo antes de sair de Upper Pisang – o lugarejo com meia dúzia de alojamentos para caminheiros, aventureiros, trekkers, hikers... ‘himalaianos’, onde me hospedara no dia anterior. Aí chegara exaurida, no fim da jornada do quarto dia de caminhada.
Chovera todo o dia, transformando uma caminhada lenta num exercício físico tenaz. Mais de vinte quilómetros calcorreados sob chuva fraca, é certo, mas a temperatura não convidara à contemplação. A satisfação era, mesmo assim, real, tendo aumentado ao entrar no local onde me abrigaria nessa noite. A recepção à minha chegada marcou-se pela simpatia quer dos anfitriões, quer dos hóspedes, já aquecidos e bem acomodados.
Depois de um duche quente, juntei-me ao grupo sentado em redor de uma salamandra que ardia com bosta de vaca. A temperatura continuou a aumentar até ao jantar. As experiências vividas de quem se propõe a este tipo de aventura abarcam diversos sentidos. Nessa noite, houve oportunidade para degustar o vinho local: raksi.
Só não expeli o líquido nepalês por delicadeza. Mais do que isso, atrevi-me a beber mais um nico. O odor estava muito próximo do álcool etílico. Era demais para mim. Ofereci o meu copo a dois jovens caminhantes que, como eu, se deleitavam com o calor reconfortante que emanava da salamandra. O australiano e o norte-americano aceitaram de bom grado a minha partilha.
Era uma noite cosmopolita. Aém deles, um casal de belgas e outro norte-americano. O elemento feminino chamava-se, nada mais nada menos que: Ana Pereira.
            A manhã do dia seguinte começou em grande risota. Quando finalmente nos apresentámos, eu e a tal rapariga californiana, com pais portugueses.
Nessa manhã, ao despertar, a neve que cobria a pousada e o solo e tudo em redor, era um presente maravilhoso. Esfregávamos os olhos, beliscávamos os braços para nos certificarmos que, sim senhor, estávamos acordados. O cenário era admirável. O céu ia ficando mais azul, à medida que o sol ia subindo, e os picos todos brancos despertavam as crianças remanescentes de todos os hóspedes que subiam ao terraço para se deslumbrarem. Pressentia-se gratidão nos sorrisos e nos “Uaus” sonoros e partilhados.

Saíra de Upper Pisang totalmente rendida e, naquele momento, a rendição continuava a ser o meu estado de alerta... caminhava numa floresta com aroma a Natal. Os pinheiros de forma cónica cobertos de neve eram os elementos que excitavam a imaginação e as memórias por viver.
Recordo a batida do coração, amenizada pelas botas sobre a ponte. Crâche, crâche, crâche. O pé direito, depois o outro, e de novo o direito, devagar, muito devagar e mais crâche, crâche... uma mão agarrava o vão da ponte e a outra o bastão de madeira. Ou talvez tenha pendurado o cajado, para melhor me segurar nessa ponte suspensa, com centenas de metros de vazio até ao rio... muito lá em baixo.
As vertigens são uma sensação que bem aprecio. A ansiedade era devida à remota probabilidade da ponte se desmoronar... Como se depreende, tal não sucedeu.
Quando alcancei a outra margem, olhei para trás. Uau! Os pés marcados na neve, na ponte. Estava tudo bem. Podia prosseguir em modo contemplativo. Escutando uma ou outra ave mais ousada. Continuando com os sentidos vigilantes. De olhos bem abertos, de pés bem apoiados, um passo, e a seguir outro... até ao pico seguinte.
A Natureza é frágil, caminha com gentileza – lembrava a todo o momento, um aviso que se lia em placas ao longo do trilho e que guardo em mim.
A Natureza é frágil, cuidemos de nós com gentileza.



Março, 2019

* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro