Através de “um caminho imperfeito”**, viajei novamente
à Tailândia. De página em página, caminhei lentamente, passo a passo, pela
memória da ‘minha’ Tailândia, mais concretamente, pela capital: Banguecoque.
A ‘minha’ Banguecoque é, na verdade, o resultado de
três Banguecoque’s. Quantas, quantas as que nela vivi, mesmo que por meia dúzia
de dias. Ao revisitar o diário dessa viagem de 2013, encontrei três Banguecoque’s
distintas. Ou seria eu que estaria diferente em cada incursão na metrópole
asiática?
A ‘minha’ primeira Banguecoque é de tal modo poluída,
que sou capaz de me lembrar da sensação de ter o nariz colado a um tubo de
escape, de um carro a gasóleo da década de 1990. Banguecoque é incomensurável.
Multidões, multidões.
Ao fim de um par de dias a percorrer as ruas pejadas de carros, carros e apinhadas
de tuc-tucs, tuc-tucs preenchidos por gente
cansada, pouco cheia de si, prometi a mim mesma que jamais viveria em tal
cenário. Um quadro com cheiro a alcatrão quente, temperado de combustível
queimado, pintado de fumo preto. Ruas cheias de tendas azuis a cobrirem os
passeios, construindo um túnel tão longo como uma auto-estrada, escondendo
lojas e balcões de contraplacado, repletos de plástico de todas as cores, mais
ou menos vivas, mais ou menos esbatidas.
Uma cidade com mais de oito milhões de habitantes.
Além da população nacional, existem diversas comunidades estrangeiras, em
especial do Japão e da China. Mas também de países vizinhos, como a antiga
Birmânia, Laos e Camboja. Os europeus também são inúmeros (eram quase 50 mil em
2011, de acordo com os Censos desse ano).
Esta representatividade é bem visível e confirmável numa
das ruas mais turísticas de Banguecoque: Khao San Road – a primeira rua que os
meus pés pesados, pela mochila às costas, pisaram, ainda com os joelhos a
tremerem de excitação. Aí cheguei de moto-táxi despenteada e esgazeada, com as
veias em ebulição, tal era a quantidade de adrenalina que se acumulara durante
o trajecto desde o terminal de autocarros.
Regressava de Bang Saphan – um paraíso no Golfo da
Tailândia, onde vivi dez dias num bangaló à beira-mar (fica para ‘fragmento’
futuro). Durante a viagem de autocarro, em conversa com outros estrangeiros,
fiquei a saber que podia tranquilizar-me quanto ao facto de não ter reservado
um quarto na capital. Se fosse directa a Khao San Road era certo e seguro que
facilmente encontraria um quarto. Tantas opções, como preços.
Descendo a camioneta, os motoristas de táxis logo se
aproximaram: ‘onde vai, onde vai, onde vai?’ – num inglês improvisado sem
complemento verbal. Enquanto atiravam o seu preço em bates (bath, a moeda tailandesa), ia caminhando
em direcção à paragem de autocarros e declinando as ofertas, na expectativa de
conseguir um valor mais interessante. Até que escutei um preço mais baixo e
acedi e segui o potencial taxista. Sem dúvida mais económico, mas era,
igualmente, uma novidade para mim: um moto-táxi.
Entrei em Banguecoque de scooter. A todo o gás. O motociclista contornava o trânsito, os
carros esbaforidos de ar quente e cinzento. A velocidade era o mais rápido
possível. Sempre a abrir, a todo o gás. Ultrapassando outras motas, escapando
dos carros semi-parados, a todo o gás. Meia hora de emoção, na estreia em
Banguecoque, a todo o gás.
Quando saltei da mota, os joelhos tremiam. As narinas
fungavam. As mãos juntaram-se para agradecer o caminho percorrido, a todo o
gás, até à rua mais internacional que tive a oportunidade de calcorrear.
Devagar, muito devagar. Um tempo lento para fechar a
boca, de cada vez que se escancarava em cada olhar para a direita – os insectos
na brasa, prontos a serem servidos em espetadas “deliciosas” –; para a esquerda
– crepes de nutela a provocarem as salivas mais distraídas –; em frente, quase
esbarrando num irlandês com gorro de duende verde. Mais alguns passos, lentos,
olhando de novo à direita – um relógio Tag Heuer, same same, but different –, novamente à esquerda, e uma inglesa com
um copo de cerveja na mão. Olhando em frente para não ir contra um australiano
a cantar ao telemóvel, abraçado a uma ladyboy.
Até que entrei numa guesthouse – Four sons. Sem discutir preços e sem procurar mais, aí
fiquei a primeira noite. Sentia-me esgotada pela viagem de sete horas, sentada
na camioneta e, ao mesmo tempo, fascinada pelo pouco tempo que flutuara em
Banguecoque.
Na ‘minha’ segunda Banguecoque, o “jamais viverei aqui”
foi substituído por um “não é assim tão horrível”. Saíra compulsivamente da
Tailândia, pela necessidade de renovar o visto de entrada (como entrara via
térrea, só pude permanecer quinze dias), e fui a Siem Riep, no Camboja (fica
para outro ‘fragmento’ futuro).
No regresso à capital tailandesa aproveitei para
tratar da mochila – estava com uma das alças a romper. Procurei, procurei,
procurei, entrando em estabelecimento, atrás de estabelecimento, vasculhando
nos mercados de rua, até que finalmente encontrei um agulhão e fio para a
operação cirúrgica, numa loja de artesãos. Quando ia para pagar, o rapaz de tez
pálida e com o corpo todo tapado, apesar do calor e humidade que se faziam
sentir, recusou-se a cobrar. O tamanho da agulha era tão grande que era visto
como uma arma. Na sua maioria budistas, os tailandeses são as pessoas mais
pacíficas que conheci até hoje. O jovem comerciante não podia vender algo que
poderia resultar no sofrimento de outro ser vivo. Por conseguinte, paguei
apenas, e de forma simbólica, o fio forte e robusto para tratar da minha
companheira de viagem. O sorriso que o rapaz vestiu no momento da troca foi uma
dádiva.
À saída da loja, o meu rosto iluminado pela
generosidade experimentada foi complementado por outro vendedor. Desta feita,
com outro tipo de produtos: dentaduras para todos os ‘gostos’ e bocas. A minha
surpresa foi reconhecida pelo velho desdentado que me permitiu fotografar a sua
caixa de tesouros dentais.
Durante a minha estadia na minha ‘segunda’ Banguecoque
entrei em alguns dos inúmeros templos, como o Wat Arun – o Templo do Amanhecer – e o Wat Pho – o maior e mais antigo
de Banguecoque, onde jaz o Buda reclinado. Foi no último que entrei, sem que me
lembre do nome, que quase me converti ao budismo. Quase... decorria uma
cerimónia de iniciação de jovens budistas. Fui inundada pela bondade que
exalava de todas aquelas pessoas, em especial do monge mais velho, cujo olhar incandescente,
transbordava uma tranquilidade inominável.
Viajei para o Vietname pelo mesmo motivo da saída
anterior (também terá de ficar para outro ‘fragmento’ futuro) – tinha (!) que
regressar ao país. A ‘minha’ terceira Banguecoque prosseguiu na sua
transformação. E o “jamais viverei aqui” e o “não é assim tão horrível” foram
substituídos por “era menina para viver neste país extraordinário, e passar uma
temporada em Banguecoque”.
Comecei a encarar os milhares de ilhas frescas na
cidade poluída quente e húmida, como possibilidades interessantes para me
instruir acerca do processo de ocidentalização da Tailândia. Em cada esquina há
um 7-Eleven – lojas de conveniência, com uma temperatura interior abaixo dos 18
graus! – que se descobrem numa trégua refrescante para qualquer transeunte
forçado. A sua oferta é muito diversificada. Desde chocolates como o snikers, que comprava quase todos os
dias, às pringles de todos os sabores
e mais alguns, iogurtes de frutas para pequenos-almoços improvisados (os meus),
até aos cremes de rosto, com factor de protecção 90! – isso existe? –, que as
tailandesas adoram, na tentativa de corresponder à imagem mais publicitada nos outdoors: mulheres asiáticas de pele
muito branca.
A visita ao parque Lumbini confirmou a minha afeição
pela cidade. Um espaço enorme, pintado de verde, pela imensa variedade de
árvores e vegetação compacta, muito bem cuidado, onde à época já era proibido
fumar. Uma das pessoas que logo me chamou a atenção, pela corrida lenta, mas
persistente, foi uma senhora de idade intangível, acompanhada da sua aia, que a
protegia com um guarda-sol. Talvez uma princesa, deslizando de chapéu na
cabeça, cobrindo ainda mais o rosto coberto por um creme tão pastoso e
esbranquiçado que parecia uma máscara.
Os crocodilos e tartarugas gigantes eram outros
habitantes do extenso lago, em volta do qual era possível passear e reflectir,
acerca de tudo o que me rodeava e me confirmava o desejo de regressar e, assim,
ganhar mais umas quantas Banguecoque’s. Depois de fechar o livro que me
inspirou nesta redacção, guardei mais uma Banguecoque no meu coração.
*Este texto
foi publicado no Jornal O Chapinhiero
**Este texto
foi escrito após a leitura de “Um caminho imperfeito”, de José Luís Peixoto.