É Carnaval... ninguém leva a mal*


No Carnaval ninguém leva a mal... ninguém levava a mal as bombas de mau-cheiro. Quer dizer, mais ou menos... mas era tão engraçado. Comprávamos as bombinhas na papelaria e depois entrávamos à zurrapa nos estabelecimentos comerciais. Ou pelo menos tentávamos. O nosso ar reguila e os risos incontidos denunciavam-nos logo à partida. O que nos ríamos. Deixávamos a bombinha e saímos a correr. Escondíamo-nos nas proximidades para podermos ver as reacções. E como nos ríamos, ríamos. Por algo tão simples como deixar o mau cheiro que provocava a irritação nos adultos. Era tão simples. E os adultos ficavam a ralhar durante alguns minutos e nós ríamos e ríamos.
Também comprávamos bombinhas de raspar que depois se estalavam no interior das mãos fechadas em concha. Havia outras bombinhas que se atiravam e faziam um ruído seco que assustava quem passava. Nessa época essas brincadeiras eram permitidas. Assim como muitas outras mais ou menos perigosas. Deviam ser. Todos os anos havia notícias de acidentes. Crianças que se queimavam. Crianças que se magoavam seriamente. Mas isso não nos demovia. Nem que tivéssemos que comprar às escondidas com as semanadas.
Não é uma apologia das bombinhas. Na verdade, nunca mais ouvi falar disso. Devem ter sido retiradas do mercado. Às tantas houve mais acidentes do que eu penso e às tantas eram realmente sérios. Não é desfaçatez. Perdoem-me os leitores e as leitoras se por ventura uma das crianças era familiar. Mas as brincadeiras quer sejam no Carnaval, ou não, são uma forma de viver a vida com mais alegria. Viver com alegria, rindo, rindo muito, comporta riscos. Nem que seja um risco tão simples como o de se ser acusado de tolo. Talvez por isso tanta gente tenha deixado de brincar, guardando-se apenas para a época do Carnaval, quando ninguém leva mal. Como se no resto do ano não se pudesse brincar.
Brincadeiras à parte, o Carnaval é um tempo de/para excessos. De deleite e prazeres e muita festa e muita cor. Em Nogueira do Cravo já se está a tornar uma tradição. O desfile é preparado com semanas de antecedência e tem direito a fanfarra. Os tratores saem dos campos e transformam-se em carros alegóricos. As vestes são cuidadosamente preparadas e costuradas colorindo as ruas da aldeia durante o corso. As ruas enchem-se de gente vindas das aldeias e vilas vizinhas. Há cada vez mais gente a aplaudir, a rir... e a participar e a cantar e dançar. Até porque, como diz alguém: quem dança é mais feliz.
O mês de Fevereiro convida a outras celebrações. O dia 21, por exemplo, é o dia Internacional da Língua Materna. Como afirmava um digno filósofo, “a língua de um povo é a sua alma”. É por meio das palavras que cada cultura tem a sua forma de interpretar o mundo, o seu mundo. Por vezes não encontro, não tenho palavras para descrever o que sinto, o que observo, o que escuto... É então que percebo a importância da palavra; fico com a impressão que se soubesse como me expressar o meu mundo ficaria muito maior, muito mais rico. Se conhecesse todas as palavras e as soubesse juntar em frases que ilustrassem o que me vai na alma...
No entanto, e talvez porque a língua de um povo seja mesmo a sua alma, observamos como determinadas línguas se impõem sobre outras. Ao ponto de certos idiomas, como os animais, se extinguirem. Existem também acordos ortográficos que pretendem uniformizar, no nosso caso, a língua portuguesa. Para mim, que estou em desacordo com o acordo, a uniformização é um modo de aniquilação da palavra pensada... da alma portuguesa?
            O português que se fala em Portugal é diferente do português que se fala no Brasil, como aquele que se fala nos diferentes países africanos. Tão-somente porque a cultura desses povos, pese embora com grandes e profundas influências da cultura portuguesa é, naturalmente, distinta.
Cada falar português é um modo de expressar a diversidade cultural. A uniformização apaga as diferenças que ao invés de serem obstáculos são, pelo menos para mim, particularidades e especificidades que detêm a essência cultural de um povo e até de uma nação. Nacionalismos à parte – não é disso que se trata – cada falar português envolve uma oralidade também distinta e local com História. Apagar a Cultura e a História é, na minha perspectiva, uma forma de violência!
Outra data que desafia a reflexão é o dia 22: Dia Europeu da Vítima. Infelizmente, (ainda) é necessário marcar no calendário este tipo de celebrações. Infelizmente, (ainda) são tantas e demasiadas e incontáveis as violências que os humanos exercem uns sobre os outros que seriam necessários muitos mais dias no calendário para nos lembrar que há tanto, mas tanto a fazer para que os seres humanos, pelo menos, se respeitem... não podemos salvar e mudar o mundo... Não? Claro que podemos. Cada um de nós pode salvar o seu mundo, pode salvar o seu dia.
Se cada um nós tiver um gesto de cuidado e atenção com cada pessoa com que se cruzar anulará a violência próxima. E depois é como a ideia dos favores em cadeia. Quem for bem tratado e cuidado quererá retribuir e assim sucessivamente. Podemos não salvar o mundo, mas com toda a certeza que salvaremos o dia de alguém.

*Texto publicado no Jornal O Chapinheiro

Feliz Ano Novo!


Feliz 2015! Que este ano seja maravilhoso e que nos permita ser melhores pessoas. Que o ano comece comemorando a Paz: conforme sugere o primeiro dia do ano - o dia Mundial da Paz. Celebrando dentro de cada um de nós, a paz!
A festa de passagem de ano proporciona a oportunidade de fechar um ciclo e recomeçar na manhã seguinte, recomeçando e renascendo de olhos abertos, despertando do zero. O ritual de passagem pode ser uma boa ocasião para fazer um balanço: O que fiz? Quem fui? Como posso ser melhor?
No dia um, imbuídos no espírito do novo, porque não olhar para dentro e em redor e sentir. Sentir e compreender como ser um pouco mais. Um pouco melhor, um pouco mais alto, um pouco mais longe, um pouco mais forte e um pouco mais... Em paz.
Que todos tenhamos a possibilidade de sermos mais e melhores pessoas. Talvez desse modo contribuamos para um mundo um pouco melhor, um pouco mais amoroso e um pouco mais... em paz.
Janeiro é, para mim, um mês muito especial.
Por várias razões, entre as quais o aniversário de uma senhora extraordinária, a pessoa mais velha de Nogueira do Cravo. No dia 11, a tia Altina celebra o seu nonagésimo quarto aniversário! A tia Altina faz 94 anos! Parabéns Avó! Parabéns por ter chegado até aqui tão bonita.
A tia Altina, a costureira, a modista, a bordadeira e tantas coisas mais. A senhora que bordou tantas toalhas que ainda hoje enchem a igreja e a capela de Nogueira. E talvez as de muitas casas de Nogueira.
A tia Altina, a senhora que durante décadas vestiu as noivas, as madrinhas, as mães, as sogras, as mulheres e crianças para os casamentos. A senhora que vestiu tantas e tantas pessoas ao longo da sua vida. A senhora que desenhou tantos tecidos, cortou, coseu, bordou; no fundo dando vida aos tecidos, dando cor às vidas das pessoas e às festas de Nogueira.
Uma mulher coragem, assim a chamam juntamente com as suas lindas irmãs. Além de costurar, bordar, tricotar, a tia Altina, a minha querida Avó, escreve versos e canta. E como canta. Como enche a igreja com a sua voz, cantando com o coração, com uma voz que espalha alegria. A tia Altina, a avó Altina faz 94 anos no dia 11 de Janeiro! Parabéns! E obrigada por ser a minha avó!
Em Janeiro existe outra data importante para mim. O dia 23 é o dia Mundial da Liberdade. Ser livre é, para mim, um dos elementos para ser feliz. Livre para ser, para estar, para viver de acordo com as escolhas/decisões que tomo.
Não obstante, a liberdade é necessariamente responsabilidade. São dois conceitos que caminham lado a lado. Sem responsabilidade não há liberdade. Pois a partir do momento em que cada um tem liberdade para escolher, para decidir, a consequência da opção é única e exclusivamente da sua responsabilidade. Ninguém a culpar, ninguém a julgar, ninguém a quem remeter os sucessos e fracassos. Liberdade é responsabilidade. É ter a capacidade de responder a cada situação, a cada momento, de forma autónoma, independente. Talvez por isso não seja fácil ser livre. Queremos ser responsáveis por todos os nossos actos? Queremos ser responsáveis por tudo o que somos, onde estamos e com estamos? Queremos ser responsáveis pela vida que vivemos?
Mas não é assim tão linear. Escolher entre duas coisas, duas situações, dois caminhos, é escolher entre algo pré-determinado... pelos outros. Talvez seja por essa razão que alguns autores digam que a liberdade é ilusória. Será a liberdade possível ou é apenas ilusão?
Quero crer que a liberdade é possível e que a capacidade de responder seja além do pré-determinado. Que nessa capacidade de resposta, em liberdade, a criatividade surja para re-inventar, para re-criar novas respostas... Para ser livre... Em paz!
Feliz ano novo, em paz, em liberdade!

Natal à mesa...*



O mês de Dezembro remete-me necessariamente para a época natalícia. Como não? É provável que para muitos leitores e leitoras também. Afinal, para quem vive em Nogueira é um tempo de rever os familiares mais distantes.
Passei muitos natais em Nogueira e, naturalmente, com os pés à lareira. O frio tem destas coisas: convida ao recolhimento e, de preferência, com a lareira acesa e muito juntinho daqueles que nos são mais queridos. É também disso que se trata no Natal: juntar a família e os amigos à mesa, repleta de iguarias.
E que delícias em Nogueira! As filhoses tão saborosas da avó! O arroz doce da tia Maria decorado com canela. Da minha parte ultrapasso a noção de decoração. Gosto muito, muito de canela nesse arroz que não me atrevo a provar em mais lugar algum. Também os sonhos... Ah! Os sonhos!
Quando vamos passar o Natal em Nogueira, levamos a cesta cheia do Porto, nomeadamente com os formigos e as rabanadas. Em relação a estas, que me perdoem aqueles que as confeccionam, mas as da minha tia Teresa são incomparáveis! Nunca tive o prazer de comer rabanadas tão boas como aquelas que a tia Teresa tão amorosamente prepara a mais, para quantas mesas lhe pedirem. Obrigada tia!
Além destes e doutros deleites, em casa de quase todos os nogueirenses a mesa de Natal tem obrigatoriamente um queijo da Serra. A minha boca saliva só de pensar nesse queijo que não tem competidor à altura. Pelo menos para mim. Quando é amanteigado e barrado no Pão de Ló ... Não tenho palavras para descrever a macieza e o contraste do sabor doce e salgado que o meu palato degusta. Ah! O queijo da Serra!
Da Serra da Estrela! A montanha mais alta de Portugal. O dia 11 de Dezembro é o dia internacional das Montanhas. Sinto-me, pois, impelida a evocar as serras, as montanhas, as cordilheiras de todo o mundo. Lugares sagrados por excelência.
Sou amante das montanhas. Nas últimas semanas tenho tido o privilégio de me sentir muito, muito pequena face à Cordilheira dos Andes. Na realidade, sempre que estou no silêncio dos vales e montanhas, é desse modo que me sinto, um nada na imensidão da Natureza.
Um dia destes conheci uma montanheira. A Cristina, do Chile. As suas palavras tocaram-me profundamente. Quando está no cume de uma montanha, a Cristina sente que está muito próxima de algo transcendente. Como se tocasse noutra dimensão para além da sua existência terrena. Algo inexplicável, a Verdade? Acrescentou em tom interrogativo.
Conheço alguns alpinistas, como João Garcia, o único português que já subiu às catorze montanhas com mais de oito mil metros! O João, tal como muitos outros, afirmam solenemente que quando alcançam o topo de uma montanha muito alta é como se atingissem um espaço para além da sua fisicalidade. É aí, também, que reconhecem a sua pequenez.
A vastidão das serras, montanhas e cordilheiras mostra-me como a minha vida é insignificante no tempo e no espaço em relação à grandiosidade da Natureza, da vida. Ao mesmo tempo, concede-me esperança e uma paz tão extraordinária que me sinto a viver a perfeição. Foi num desses momentos que também Cristina, a chilena que conheci no deserto de Atacama, se sentiu perfeita. Dizia ela: "Quando estou no silêncio das montanhas mais altas, compreendo a perfeição da Mãe Natureza. E se eu faço parte da Natureza, então eu também sou perfeita."
Ora aí está! Quero lembrar-me disso. Eu também sou perfeita. E a leitora e o leitor? Feliz Natal! Que este seja um Natal ainda mais perfeito. De preferência com as pessoas mais queridos e com os pés debaixo da mesa, repleta de coisas boas e muito perto da lareira. E claro, com muitos e muitos abraços apertados!

*Este texto foi publicado no jornal Chapinheiro

Apanha que é ladrão!*







O bigode ralo a contornar o fino lábio superior está muito preto e muito bem penteado. Cantiflas foge. Corre a sete pés. Acabou de pegar numa maçã e pôs-se em fuga. Passou por uma mercearia com cestos de fruta à porta e não resistiu. Não havia preços em nenhum dos cestos de fruta e Cantiflas presumiu que fossem para tirar. Presumiu mal. Logo que pegou na maçã mais vermelha e brilhante, o sr. José, o merceeiro, apareceu para cobrar. Cantiflas não resistiu. Correu. Fugiu. Tem outra vez sete anos. Não quer saber do sr. José que está à porta a gritar:"apanha que é ladrão!"
Cantiflas tem novamente sete anos e corre feliz pelas ruas da cidade do interior. Os poucos transeuntes escutam confusos: "apanha que é ladrão"; mas não vêem nenhum ladrão. Vêem um homem a correr e a rir às gargalhadas com uma maçã lustrosa na mão. Não percebem o que se passa, os transeuntes. Alguns reconhecem o tolo de trinta e tal anos que está sempre contente e satisfeito sem razão aparente, todavia não identificam como o ladrão do homem da mercearia que entretanto desistiu do seu "apanha que é ladrão".
Mais uma maçã, menos uma maçã, "não vou ficar mais pobre por isso", deve estar a pensar o sr. José. Na próxima vez que o tolo passar em frente à sua loja, estará certamente mais atento.
Cantiflas chegou à praça principal e senta-se satisfeito num dos bancos em frente à fonte luminosa, que só o é à noite. Ainda são três da tarde e o calor, esse aperta nesta tarde de Agosto. Um calor muito seco nesta cidade entre montanhas.
Cantiflas contempla a maçã. Tão vermelha. Tão brilhante. É um "crime" dar uma dentada. Assemelha-se a um bibelô de tão perfeita, de tão vermelha, de tão lustrosa e redonda que é. Cantiflas penteia o bigode com uma mão e com a outra traz a maçã ao nível dos olhos negros, muito fundos nas suas órbitas.
Daqui, noutro banco muito próximo, vejo o reflexo do vermelho nas suas pupilas. Estou expectante quanto ao que o tolo da cidade vai fazer de seguida. Demora-se. Eu também me demoraria. Aquela peça de fruta é magnífica. Seria assim a que a bruxa malvada terá oferecido à branca de neve? Apesar dos avisos que os sete anões lhe fizeram repetidamente, branca de neve sucumbiu à tentação e trincou. E adormeceu... Até que o príncipe a beijou!
Cantiflas não trincou... Ainda. A maçã continua a reflectir-se no seu olhar. A pele cor de canela sobressai por detrás da maçã. Cantiflas move-se. Tira do bolso largo das calças axadrezadas um bloco de notas. É verde alface. Muito verde, o bloco agora em cima do banco de madeira recentemente envernizado. Em cima, a maçã. O bigode alarga-se. Segue o sorriso maroto de Cantiflas. Aprecia a figura geométrica. A maçã muito redonda, muito vermelha e muito lustrosa sobre o bloco verde também me suscita um leve esgar. Talvez me coibisse igualmente de morder a perfeição que Cantiflas contempla.
Levanto-me. Deixo-o a sós com a merenda roubada. Apanha que é ladrão. Ladrão, talvez, mas não um ladrão qualquer. A mim roubou-me a tristeza de ser adulta. Também eu volto a ter sete anos.
Levantei-me. Caminho devagar, sem dar nas vistas. E sigo dissimulada em direcção à mercearia do sr. José.  


*este textoé dedicado ao tio Manuel, que me levou muitas vezes ao cinema do Foco para ver os filmes do Cantiflas