Aterrei em Déli no dia dois de Fevereiro. Ainda estou nesta grande metrópole e, no dia em que escrevo, ainda é uma incógnita o lugar onde estarei neste subcontinente, aquando da leitura deste postal - chamemos-lhe assim.
É possível que as experiências anteriores, em cidades tão ou mais populosas, tão ou mais "caóticas" (para mim), tão ou mais coloridas, tão ou mais intensamente olorosas, com tantos ou maiores contrastes, me tenham 'preparado' para eventuais "choques". As ideias pré-concebidas, as expectativas (ainda) têm alguma influência no modo como dou os primeiros passos no desconhecido.
Foi necessário realizar algum 'trabalho de casa' antes de voar desde o Porto. De qualquer maneira, gostaria de ter a capacidade de me deslumbrar, qual criança sem passado, que se extasia com tudo, num contínuo de novidades.
Dentro das minhas óbvias limitações nessa matéria, procuro estar atenta e deter-me nos lugares sem comparar, sem julgar, sobretudo desfrutando, saboreando, escutando. Ou seja, percepcionando com receptividade o ambiente em que me encontro, que me rodeia, deixando-me envolver.
É com algum esforço, confesso, que aceito o ruído do trânsito (ora aí está uma classificação, e preconceituosa). Mas quando me abstraio dos sons mais fortes e intensos das buzinas a tocar continuamente – faz efectivamente parte das suas regras de condução –, estou apta a levantar o olhar, a erguer os ombros e a inspirar profundamente, não apenas para sentir a imensidão dos aromas que se misturam, mas igualmente para apreciar as tonalidades que os envolvem, que lhes dão forma visual.
Iniciei o périplo no Sul de Déli, a pouco mais de cem metros do meu local de alojamento. Perguntei ao gerente do hostel se existia algo interessante nas redondezas. Rufu, o jovem moreno, ainda que de tez pálida, talvez pelos anos vividos fora da Índia, sugeriu-me ir até ao parque dos veados – Deer Park. Se é verdade que reservei um quarto fora do centro, sabendo que existiria um parque nas proximidades, há que dizer que, pouco depois de ter entrado, estava agradavelmente surpreendida. O facto de não ter qualquer ideia quanto ao espaço, desencadeou uma série de sensações aprazíveis.
Entrei pelo portão que dava acesso ao campo dos veados, eram dezenas a materializarem o bambi da minha infância. Pacíficos e relaxados, nas suas vestes castanhas pintalgadas de branco, mantinham-se indiferentes aos humanos que os admiravam e guardavam memórias fotográficas.
Prossegui e quase fui atacada por um dos muitos macacos à solta, em busca de comida, saltando sobre alguém para arrepanhar o que tivesse nas mãos. Quis tirar uma fotografia e ter-me-ei aproximado em demasia, diria, e senti que estava a ser tão ou mais atrevida que os próprios 'monos'.
Essa primeira tarde em Déli foi intencionalmente descontraída, a fim de me adaptar ao fuso horário. As cinco horas e meia têm, sem dúvida alguma, efeito no meu ritmo circadiano. Passeando pelo parque, ia apreciando o lago habitado por patos cantantes e as ruínas que se impunham como barreira aos sons urbanos, nas quais muitos pares de namorados se compraziam no último fim de tarde da semana de escola.
Voltei ao parque dois dias depois para uma caminhada matinal. Os trilhos multiplicaram-se, os espaços ampliaram-se e muitos recantos revelaram-se. Muita gente a realizar as suas actividades mais ou menos físicas, mais ou menos meditativas: corrida ou caminhada estugada nos trilhos, musculação nas máquinas disponíveis, ioga no prado, meditação sob uma árvore. O parque dos veados exalava energia.
Os primeiros dias na capital política foram a visitar locais de referência. Comecei pelo Forte Vermelho, património mundial da Unesco, construído no século XVII, em Velha Déli. Surgiu da vontade do mesmo soberano mudar a capital do reino, depois da morte da sua mulher, para quem aliás terá mandado erigir uma das sete maravilhas do mundo – Taj Mahal,. A denominação do Forte resulta da coloração das pedras que o edificam e ladeiam vários hectares que serviram de base à nova capital.
Talvez por ser Sábado, havia centenas de visitantes locais. Aliás, observei uma enorme afluência aos lugares com história ao longo dos dias. Merendei num dos muitos jardins do Forte, degustando duas 'samosas' vegetarianas (chamuças). Na verdade, a degustação tem sido um dos pratos fortes desta viagem. A cozinha hindu é rica em pratos vegetarianos, o que facilita a escolha. As especiarias tornam as comidas realmente quentes, picantes e até adocicadas. Um pormenor: a minha transpiração está picante e por vezes pressinto odor a caril.
Essas chamuças macias de vegetais foram apenas o início da aventura degustativa. Alguns dias depois fui a um casamento. Foi Sagar, um amigo que fiz no Rio de Janeiro, aquando dos Jogos Olímpicos, que me convidou a juntar-me à sua família. Essa foi uma experiência explosiva de sabores, com mais de cem bancas com iguarias de todo o país. Entradas, saladas, sopas, pães diversos, pratos principais, sobremesas, acompanhamentos, bebidas refrescantes que me demonstraram que o picante é muito diversificado, em especial quando mesclado com algo fresco ou doce.
Saí da cerimónia com pelo menos mais três quilos. No entanto, pensei que aquela era uma oportunidade única para experimentar a multiplicidade gastronómica, acompanhada de explicações precisas sobre o que comia e a sua origem.
Naturalmente que o casamento, com cerca de 800 convidados, ultrapassou a prova de delícias gustativas e aromas indianos. As vestes riquíssimas da maioria das mulheres enchiam os meus olhos. Cor de laranja, matizes de vermelho, cor de rosa, lado a lado com azuis e verdes diversos, roxo, cor de salmão, nos vestidos, saris e túnicas debruados a dourado nos mais finos tecidos. Não era o caso de Samiksha, a irmã de Sagar. A jovem de 22 anos, com bochechas cor de chocolate, explicou-me que quanto maior a proximidade à família dos noivos, mais cuidada e imponente é a indumentária. Não era, pois, o caso da família simpática que me acolheu em sua casa, cuja afinidade distante lhe permitiu fazer-se acompanhar-se de uma estrangeira.
O casamento foi o término de um dia bem passado com Sagar, que me levou a conhecer alguns dos seus lugares preferidos em Déli, nomeadamente o templo Kalkaji Mandir, onde os devotos da deusa Kali, como o meu amigo, se deslocam para a reverenciar. Aí tive a oportunidade de ser marcada pela tinta vermelha na testa e assim viver uma vida auspiciosa. A ver vamos.
O local estava repleto de pessoas crentes que faziam as suas oferendas - algumas notas, doces, flores muito amarelas, arroz que podiam adquirir numa das bancas - à sua deusa, ao mesmo tempo que proferiam e cantavam as suas preces. Como o templo de Lotus estava encerrado por ser segunda-feira, fomos almoçar ao mercado Khan que, segundo o meu amigo, é o mais caro da cidade e no qual é possível encontrar muitas marcas internacionais.
O templo que mais apreciei nesse dia foi de outro tipo: os jardins de Lodi. É nesse jardim com cerca de 90 acres que se encontram vários túmulos, entre os quais o de Mohammed Shah, que governou o norte da Índia na segunda metade do século XV e início do século XVI. Sentámo-nos por algum tempo, apreciando o local, observando os esquilos e respirando a vegetação colorida.
Este e outros locais que entretanto fui descobrindo, e certamente irei encontrar, são apenas alguns exemplos do contraste existente e que já me cativou. Se no meio de riquexós e carros e motas e bicicletas e mesmo senhoras vacas, o cenário pode ser cansativo, os espaços tranquilos são muitos e de fácil acesso.
* Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro
Tenho lido diversos relatos sobre a India, alguns bons e outros nem tanto. Gostei do seu relato. Senti uma vontade de ir e conhecer um pouco desse brilho de cores que relata.
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