Mochilando - Parte I





            No final de Janeiro de 2013 saía de viagem em direcção a Melbourne, Austrália. A intenção era viajar por três meses nesse país imenso para encontrar uma alternativa à vida académica. Ainda estava vinculada ao emprego e procurava uma possibilidade viável de trabalho. Na noite anterior, a minha amiga E. ajudou-me a seleccionar a roupa e os haveres para essa jornada. Foi um exercício interessante. O que levar numa mochila para três meses? Era a primeira vez que viajava de mochila, como backpacker, ‘mochileira’ em português do Brasil.
Dezasseis quilos de roupa e pouco mais. Sendo Janeiro, iria aterrar na estação veraneante. A roupa a levar seria mais leve, como tal a quantidade possível era significativa. Além da roupa, algum calçado: chinelos, sandálias todo o terreno (que se perderam às três semanas num passeio à beira-mar), sandálias do tipo casual (como quase tudo), sapatilhas para correr (claro!) e outras para caminhar. Nos pés, as botas de montanha; sendo mais pesadas e ocupando mais espaço, pareceu-me ser a melhor estratégia. Naturalmente que levei alguma roupa interior, uma bolsa com adereços – à época ainda considerava muito importantes –, uma bolsa com os produtos de higiene e alguma maquilhagem. Ainda nessa mochila um canivete (para sobreviver aos corredores de controlo aéreo; esqueci-o no banco onde me sentara a comer uma laranja enquanto contemplava o rio Yarra, ainda em Melbourne), uma toalha, um livro e um caderno. Apesar de ser clima temperado, era aconselhável um ou outro agasalho. Havia espaço para um saco-cama de Verão – que se revelou imprescindível em algumas noites, como as passadas em aeroportos.
Esta mochila foi complementada com outra mais pequena, do género das que se usam para a escola, por exemplo, ou para um dia de treino. Nesta, também azul, os acessórios tecnológicos e respectivos carregadores. Para mim, o termo acessório é redutor. O ipad tornou-se no principal meio de comunicação com aqueles que ficaram em Portugal, sendo igualmente o instrumento de planeamento e organização da viagem que se ia desenrolando... um dia de cada vez (parti apenas com quatro noites marcadas). Nesta mochila, um dos dois livros. Ambos ficaram na Austrália.
Ao fim de duas semanas, percebia que o questionamento que precedera a viagem era uma dúvida mais do que esclarecida: a mochila estava muito carregada. À medida que o tempo ia passando, ia-me libertando de objectos. Como em Kuala Lumpur, no início do segundo mês dessa viagem, para onde voei desde Gold Coast. Não só não tinha um visto que me permitisse tentar uma alternativa remunerada, como a chuva não me largava desde Sidney, mais de duas semanas antes. Assumi o visto de turista e parti rumo ao Sudoeste Asiático.
Naquela cidade, que me impressionou deveras pelo centro financeiro com edifícios tão altos como sofisticados, fiquei alojada num hotel de três estrelas – o panorama para a minha carteira alterou-se desde o primeiro instante que pisei o solo da Malásia. Daí iria no comboio nocturno para Banguecoque. A recepcionista do hotel foi extremamente prestável. Aliás, como todos os funcionários que até quiseram tirar fotografias comigo. Apesar de ter feito o checkout de manhã, a moça permitiu-me usar um dos quartos para tomar um duche e mudar de roupa ao fim do dia. Obrigatório!, depois de um dia de passeio debaixo de uma temperatura para mim fantástica (acima dos trinta graus). O modo que encontrei para agradecer a sua simpatia foi oferecer-lhe uma das muitas pulseiras e que estavam quase sempre na bolsa. Tinha sido presente de uma amiga, mas além de me aliviar do seu peso, o sorriso que recebi mostrou-me que a minha amiga seguramente compreenderia o meu gesto.

Nas vésperas de regressar ao Porto, deixei coisas que já não me serviriam  no bangaló em que vivi quase duas semanas em Koh Tao. Ao mesmo tempo que a mochila ficava mais leve, pensava que alguém poderia usufruir das sapatilhas que ainda estavam em condições de uso, assim como algumas peças de roupa.
Em Outubro de 2014, quando fui para São Paulo a fim de participar num congresso levei muita bagagem. No entanto, justificava-se. Precisava de roupa e material de trabalho. Além disso ficaria uns dias em casa do H., onde sabia poder deixar a mala com roupa e o computador enquanto viajasse por outros países. De São Paulo voei para Cusco, no Peru, com o objectivo de ir a Machu Picchu. Assim, apesar de ir na época de Primavera na América do Sul, a altitude que alcançaria obrigava a indumentária mais quente; o espaço para a roupa estava pois condicionado. Havia ainda outros objectos: um termo, uma lanterna e luvas. Só o primeiro regressou. Os outros dois elementos desapareceram; calculo que alguém terá necessitado mais do que eu. Outras peças se perderam.
Durante a viagem ia lavando a roupa à mão. Às vezes acumulava-se. Acontecia encontrar lavandarias económicas, compensando o trabalho e permitindo-me sentir o odor a roupa lavada (um aroma que valorizo cada vez mais), como em La Paz e Arequipa. Todavia dei-me conta que a cada investida ficava com menos roupa. Ao ponto de chegar ao fim da viagem quase sem saber o que vestir. Comentei com dois ‘amigos’ no hostel em Bogotá esse facto. Nesse mesmo dia, um dos funcionários deu-me uma t-shirt com o logótipo do hostel.
Este ano as duas mochilas voltaram à estrada. Saí a cinco de Maio do Porto em direcção a Bogotá – o destino mais económico na América Latina. No ano anterior foi nessa capital que terminei o périplo de dois meses e meio. Como apenas fiquei por Bogotá, voltar afigurou-se boa ideia. Além disso, no tempo que aí estive fiz amigos que sabia terem a mesma vontade que eu de nos revermos. Antes de partir coloquei-me duas hipóteses: conhecer a Colômbia e seguir em sentido ascendente; ou depois da Colômbia descer através do Equador pelo resto da América do Sul. Era uma deliberação relevante; disso dependeria o tipo de vestuário. Prefiro climas mais quentes!
A selecção da roupa e acessórios foi mais fácil. Era a terceira vez que saía em modo ‘mochileira’. Apesar de ter bilhete de ida e volta, o preço do mesmo detinha em si uma possibilidade muito plausível: a de abdicar do bilhete de regresso. A intenção era sair por tempo indeterminado (é necessário, porém, entrar na Colômbia com viagem de saída – como na maior parte dos países). Por conseguinte, teria de ter o suficiente para evitar grandes aquisições. A diferença desta para as outras viagens é despiciente, pois o que serve para três meses serve para quatro, cinco ou seis. Mesmo assim admito que a mochila chegou novamente aos dezasseis quilos.
A bijutaria reduziu-se imensamente; na verdade, durante um retiro de meditação que fiz no final do primeiro mês tirei tudo o que tinha nos braços, à excepção de uma pulseira fina que o meu querido sobrinho me ofereceu. A bolsa de maquilhagem reduziu-se ao que uso normalmente – lápis preto e rímel (nem sempre) e batom (raramente). Também no calçado fui mais parca. Apenas um par de sapatilhas (imprescindível!), um par de sandálias e um par de chinelos de dedo. Estes foram sepultados a meio da viagem. As botas de montanha eram já outras – compradas dias antes de partir. O melhor investimento e seguramente o objecto de maior valor. Notei diversas vezes olhos ‘cobiçosos’. Qualquer que fosse o tipo de viagem estavam sempre nos pés quando mudava de localidade, quer pelo espaço, quer pelo peso. Posteriormente também por precaução. As histórias que ia escutando alertaram-me.
Livros e cadernos para escrever eram objectos obrigatórios na bagagem. Em Cartagena das Índias, ainda nem um mês depois de aterrar nesse país maravilhoso, vendi os dois livros por um preço irrisório para os padrões portugueses, mas o valor adquirido permitiu-me pagar duas noites de sono. Isso não significa que a leitura tenha acabado. O ipad tem uma biblioteca interminável. Não obstante, continuo a preferir ler no formato ‘tradicional’. Por isso, logo que surgiu a ocasião quase se fez o ladrão. ‘Encontrei’ um livro num hostel. A partir daí foi fácil. À medida que ia terminando ia trocando com um dos moradores das prateleiras para o efeito – ‘book exchange’ - dos hostels. Às vezes não resistia e surripiava sem trocar.
As mochilas essas, ao contrário do que seria de esperar, iam ficando mais pesadas. Por mais um livro, por mais um caderno que se preenchia sendo necessário adquirir outro. Bem que se esforçavam, mas acabavam por ‘gritar’ “já chega!” A maior rasgou-se. Várias vezes. Isso aconteceu logo na primeira aventura, ainda na Austrália. No aeroporto de Sydney fiquei petrificada. Algum funcionário deve ter dormido mal na noite anterior e decidiu libertar a sua raiva desferindo um rasgão numa das alças. A laceração obrigou a uma intervenção. Felizmente, a senhora a quem aluguei um quarto nessa cidade de arranha céus tinha boas agulhas e consegui suturar eficazmente. Essa cicatriz mantém-se intacta até ao momento.
Ainda nessa viagem, mas já em terras asiáticas, a outra alça sofreu uma pressão interior tão forte que não aguentou. Em Chiang Mai, na Tailândia, ao fim do segundo mês foi necessária nova intervenção cirúrgica. Os instrumentos foram adquiridos na capital. Depois de entrar em várias lojas, encontrei uma solução melhor do que o expectável. Uma senhora agulha, diria mesmo um agulhão. De tal maneira, que o rapaz que me atendeu se recusou peremptoriamente a aceitar qualquer pagamento. Apenas uma moeda de troca. O calibre da agulha era comparável a uma arma letal – o que depreendi da sua linguagem gestual. Não podia cobrar. Na Tailândia a maioria da população é budista; o resto depreende-se.
Continua...

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