O meu professor de Anatomia


Morreu! Morreu ontem, a 11 de Novembro de 2015. Um ataque cardíaco – assim se lia na notícia de um dos jornais. Plural, pois era uma figura pública. Mais do que isso, era uma pessoa emblemática no seio da cultura portuguesa. Não sendo artista, era um acérrimo promotor da dinâmica cultural, em particular da cidade do Porto. Dois anos como vereador da cultura fizeram toda a diferença na cidade, rejuvenescendo-a de uma forma geral e dando nova vida a espaços moribundos, como é o caso do Teatro Rivoli – local escolhido para ficar em câmara-ardente.
Soube da sua morte através do email de uma amiga. Acabava de chegar a casa após a corrida matinal e a boa-disposição que me preenchia foi repentinamente apagada e transformada em lágrimas de tristeza, choque e até de raiva. Percebia que a raiva crescia visceralmente pelos pensamentos que me atravessavam em relação ao sentido (ou sua ausência) da vida.
De um momento para o outro tudo acaba! E o Paulo Cunha e Silva lembrava-me mais uma vez a precariedade da vida e como esta é tão volátil. Estava em choque. Um homem excepcional com tanto para ser e para fazer, partira sem contar, sem que terminasse o seu propósito: o de dinamizar e reavivar a dimensão cultural da cidade do Porto.
A sua morte, como outras que senti, provocou-me. De imediato o questionamento quanto à minha vida presente. Estarei eu a viver a vida que quero? Se eu morresse amanhã teria feito tudo o que queria? Teria sido na totalidade quem queria ser? Estaria em paz com o passado? Morreria tranquila? E o Paulo Cunha e Silva? Teria ele vivido a sua vida na plenitude? Do que me foi permitido saber e observar de fora, a sensação que tenho é que o professor terá morrido tranquilo, que terá vivido do modo que considerava ser o melhor.
Ao contrário de outros colegas da faculdade, saiu sempre que foi ‘chamado’ para cumprir outras missões. Quando comecei a trabalhar na faculdade, ele estava ausente: era o comissário da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura. Penso que terá sido essa a função que o terá impedido de estar presente nas minhas provas de doutoramento. O professor Paulo Cunha e Silva era um dos elementos do júri. O que muito me honrava.
Se eu o admirava, nem todos na faculdade o admitiam. Talvez pela sua extraordinária inteligência e pela sua ‘desfaçatez’ em sair e voltar quando bem entendia. Não dignificava o lugar que lhe estava reservado na faculdade – assim o entendiam as vozes da crítica. Ao ponto de ocorrerem sérias discussões aquando da abertura de vagas para professor associado. A resistência a que ele acedesse a essa posição era visivelmente forte.
O seu gabinete era vizinho do meu. Os seus horários, porém, não me permitiam ter muitas vezes o prazer da sua eloquência – quando se encontrava ao serviço. Eu matutina, ele noctívago, chegando quase sempre depois das cinco da tarde, à excepção dos dias em que dava aulas. Aulas a que fiz questão de assistir no primeiro ano em que leccionou a disciplina de Introdução ao Pensamento Contemporâneo. Aulas que tive o privilégio de substituir quando voltou a ser chamado para representar a cultura portuguesa fora do país.
A última vez que estive com ele foi em Julho de 2012. Lembro-me bem, pois estava um Domingo maravilhoso de praia. Fui a Matosinhos e pela primeira vez em muito tempo tomei banho numa praia do norte. Nessa tarde a água estava fantástica, quase tépida. Ao sair da praia encontrámo-nos. Contei-lhe que entraria em licença sem vencimento muito em breve. Compreendia bem as minhas razões. Aproveitou para confidenciar que tinha um convite para sair novamente de Portugal, por conseguinte, da faculdade. Estava reticente, todavia. O projecto era em Angola, mas a sua mãe avançava na idade e ele receava a distância, assim como não queria estar ausente no que lhe pareciam ser os últimos anos de vida da sua mãe.
Esse encontro também me marcou por uma estranha coincidência. Nessa noite terminei o livro ‘Cadernos de Lanzarote - I’, de José Saramago. O autor acaba o livro com uma referência muito elogiosa a Paulo Cunha e Silva! Apaguei a luz com um nó na garganta. No dia seguinte enviei uma mensagem ao professor a dar-lhe conta do sucedido e a corroborar plenamente com o elogio que lera. A sua resposta tocou-me, sobretudo por também ele ter reconhecido (sem que eu o mencionasse) a coincidência e o facto de também ele considerar que as coincidências não existem. Tudo tem uma razão de ser. Foi a última vez que o vi pessoalmente, até porque entretanto abandonei o trabalho na faculdade. Posteriormente, as notícias começaram a ser muitas pela sua actividade incansável e arrojada como vereador da cultura. Saíra novamente da faculdade.
A minha admiração pelo professor começou quando eu tinha dezassete anos. Ele era um dos professores de anatomia, no meu primeiro ano como estudante universitária. Contudo, eu integrava uma turma que não tinha esse privilégio. Sabendo da qualidade das suas aulas, através dos meus colegas que continuamente o exaltavam, sempre que podia assistia às suas aulas. Numa dessas aulas práticas, num dos laboratórios de Biomédicas – à época a nossa faculdade era a maior do país e pelos piores motivos: era necessário ir de autocarro de uma sala para outra; tínhamos aulas em inúmeras instalações (CDUP da Boa-Hora, CDUP da Arrábida, Reitoria, ‘Barracão’, ICBAS e ainda almoçávamos na cantina de Farmácia) –, o tema era o sistema músculo-esquelético. Havia uma mesa com partes de um corpo-cadáver, onde era possível visualizar os músculos, neste caso os dos membros inferiores. A risota surgiu a meio da aula quando me dei conta que tinha a caneta na boca – a caneta que tocara e mexera vivamente na perna exposta. Argh!!! Ainda hoje sou motivo de chacota pela minha distração.
Voltaria a encontrar Paulo Cunha e Silva anos mais tarde como professor no primeiro ano de mestrado. Ele era responsável pela disciplina que mais me interessava. As suas aulas encantavam-me. O modo como expunha e questionava os assuntos estimulava-me a querer saber e a estudar mais. Em particular sobre a temática do corpo – também o tema da sua tese de doutoramento (da qual tenho um exemplar assinado). Quando chegou a altura de decidir a problemática da minha dissertação e respectivo orientador, era com ele que desejava avançar. Nessa época, porém (e talvez sempre, na realidade), as minhas angústias e questionamentos sobre o sentido das coisas e da vida assaltavam-me amiúde. Pressentia que com ele e com as leituras que me sugeriria e consequentes discussões, eu poderia crescer muito intelectualmente e/ou ficar ainda mais desassossegada. Temia, confesso, afundar-me. O medo ainda me assistia. Por isso hesitei. E escolhi outra via.
Creio que a minha vida teria tido um rumo totalmente distinto. Os ‘se’ não valem absolutamente nada, é sabido. De qualquer modo, a sua inteligência, que para mim estava num patamar tão elevado, assustava-me. Receava não ter capacidade para acompanhar o seu pensamento. Por via da minha (não) decisão, outras oportunidades surgiram e entrei na faculdade como assistente. Tive, pois, o prazer de o ter como colega. Um dos poucos que eu admirava sob o ponto de vista intelectual. Os seus problemas a nível académico eram-me caros; talvez por me identificar e viver alguns de certa forma semelhantes.
Éramos colegas e quase amigos. Se é que existe esse tipo de amizade. Mas como sempre fui reticente em desenvolver a amizade no contexto do trabalho... Ainda assim, era com certeza uma das poucas pessoas com quem tinha real interesse em conversar. A sua generosidade intelectual acirrava o meu espírito.
As lágrimas que ontem correram pelo meu rosto eram fruto dessa afinidade e do profundo apreço que nutria pelo professor. Eram também de raiva por uma morte não anunciada. Mas a vida não se prepara, não se prevê. Por isso, como ele, quero viver do modo que sinto que tenho que viver. Sem medo. E essa é também uma das razões por que tinha uma sentida admiração pela pessoa do Professor Paulo Cunha e Silva.
Quem sabe a sua partida para outra dimensão estimule, os que ficaram, a continuarem o seu projecto. Quem sabe o seu propósito estivesse afinal cumprido...

12 de Novembro de 2015
Matosinhos, Portugal

Mochilando - Parte I





            No final de Janeiro de 2013 saía de viagem em direcção a Melbourne, Austrália. A intenção era viajar por três meses nesse país imenso para encontrar uma alternativa à vida académica. Ainda estava vinculada ao emprego e procurava uma possibilidade viável de trabalho. Na noite anterior, a minha amiga E. ajudou-me a seleccionar a roupa e os haveres para essa jornada. Foi um exercício interessante. O que levar numa mochila para três meses? Era a primeira vez que viajava de mochila, como backpacker, ‘mochileira’ em português do Brasil.
Dezasseis quilos de roupa e pouco mais. Sendo Janeiro, iria aterrar na estação veraneante. A roupa a levar seria mais leve, como tal a quantidade possível era significativa. Além da roupa, algum calçado: chinelos, sandálias todo o terreno (que se perderam às três semanas num passeio à beira-mar), sandálias do tipo casual (como quase tudo), sapatilhas para correr (claro!) e outras para caminhar. Nos pés, as botas de montanha; sendo mais pesadas e ocupando mais espaço, pareceu-me ser a melhor estratégia. Naturalmente que levei alguma roupa interior, uma bolsa com adereços – à época ainda considerava muito importantes –, uma bolsa com os produtos de higiene e alguma maquilhagem. Ainda nessa mochila um canivete (para sobreviver aos corredores de controlo aéreo; esqueci-o no banco onde me sentara a comer uma laranja enquanto contemplava o rio Yarra, ainda em Melbourne), uma toalha, um livro e um caderno. Apesar de ser clima temperado, era aconselhável um ou outro agasalho. Havia espaço para um saco-cama de Verão – que se revelou imprescindível em algumas noites, como as passadas em aeroportos.
Esta mochila foi complementada com outra mais pequena, do género das que se usam para a escola, por exemplo, ou para um dia de treino. Nesta, também azul, os acessórios tecnológicos e respectivos carregadores. Para mim, o termo acessório é redutor. O ipad tornou-se no principal meio de comunicação com aqueles que ficaram em Portugal, sendo igualmente o instrumento de planeamento e organização da viagem que se ia desenrolando... um dia de cada vez (parti apenas com quatro noites marcadas). Nesta mochila, um dos dois livros. Ambos ficaram na Austrália.
Ao fim de duas semanas, percebia que o questionamento que precedera a viagem era uma dúvida mais do que esclarecida: a mochila estava muito carregada. À medida que o tempo ia passando, ia-me libertando de objectos. Como em Kuala Lumpur, no início do segundo mês dessa viagem, para onde voei desde Gold Coast. Não só não tinha um visto que me permitisse tentar uma alternativa remunerada, como a chuva não me largava desde Sidney, mais de duas semanas antes. Assumi o visto de turista e parti rumo ao Sudoeste Asiático.
Naquela cidade, que me impressionou deveras pelo centro financeiro com edifícios tão altos como sofisticados, fiquei alojada num hotel de três estrelas – o panorama para a minha carteira alterou-se desde o primeiro instante que pisei o solo da Malásia. Daí iria no comboio nocturno para Banguecoque. A recepcionista do hotel foi extremamente prestável. Aliás, como todos os funcionários que até quiseram tirar fotografias comigo. Apesar de ter feito o checkout de manhã, a moça permitiu-me usar um dos quartos para tomar um duche e mudar de roupa ao fim do dia. Obrigatório!, depois de um dia de passeio debaixo de uma temperatura para mim fantástica (acima dos trinta graus). O modo que encontrei para agradecer a sua simpatia foi oferecer-lhe uma das muitas pulseiras e que estavam quase sempre na bolsa. Tinha sido presente de uma amiga, mas além de me aliviar do seu peso, o sorriso que recebi mostrou-me que a minha amiga seguramente compreenderia o meu gesto.

Nas vésperas de regressar ao Porto, deixei coisas que já não me serviriam  no bangaló em que vivi quase duas semanas em Koh Tao. Ao mesmo tempo que a mochila ficava mais leve, pensava que alguém poderia usufruir das sapatilhas que ainda estavam em condições de uso, assim como algumas peças de roupa.
Em Outubro de 2014, quando fui para São Paulo a fim de participar num congresso levei muita bagagem. No entanto, justificava-se. Precisava de roupa e material de trabalho. Além disso ficaria uns dias em casa do H., onde sabia poder deixar a mala com roupa e o computador enquanto viajasse por outros países. De São Paulo voei para Cusco, no Peru, com o objectivo de ir a Machu Picchu. Assim, apesar de ir na época de Primavera na América do Sul, a altitude que alcançaria obrigava a indumentária mais quente; o espaço para a roupa estava pois condicionado. Havia ainda outros objectos: um termo, uma lanterna e luvas. Só o primeiro regressou. Os outros dois elementos desapareceram; calculo que alguém terá necessitado mais do que eu. Outras peças se perderam.
Durante a viagem ia lavando a roupa à mão. Às vezes acumulava-se. Acontecia encontrar lavandarias económicas, compensando o trabalho e permitindo-me sentir o odor a roupa lavada (um aroma que valorizo cada vez mais), como em La Paz e Arequipa. Todavia dei-me conta que a cada investida ficava com menos roupa. Ao ponto de chegar ao fim da viagem quase sem saber o que vestir. Comentei com dois ‘amigos’ no hostel em Bogotá esse facto. Nesse mesmo dia, um dos funcionários deu-me uma t-shirt com o logótipo do hostel.
Este ano as duas mochilas voltaram à estrada. Saí a cinco de Maio do Porto em direcção a Bogotá – o destino mais económico na América Latina. No ano anterior foi nessa capital que terminei o périplo de dois meses e meio. Como apenas fiquei por Bogotá, voltar afigurou-se boa ideia. Além disso, no tempo que aí estive fiz amigos que sabia terem a mesma vontade que eu de nos revermos. Antes de partir coloquei-me duas hipóteses: conhecer a Colômbia e seguir em sentido ascendente; ou depois da Colômbia descer através do Equador pelo resto da América do Sul. Era uma deliberação relevante; disso dependeria o tipo de vestuário. Prefiro climas mais quentes!
A selecção da roupa e acessórios foi mais fácil. Era a terceira vez que saía em modo ‘mochileira’. Apesar de ter bilhete de ida e volta, o preço do mesmo detinha em si uma possibilidade muito plausível: a de abdicar do bilhete de regresso. A intenção era sair por tempo indeterminado (é necessário, porém, entrar na Colômbia com viagem de saída – como na maior parte dos países). Por conseguinte, teria de ter o suficiente para evitar grandes aquisições. A diferença desta para as outras viagens é despiciente, pois o que serve para três meses serve para quatro, cinco ou seis. Mesmo assim admito que a mochila chegou novamente aos dezasseis quilos.
A bijutaria reduziu-se imensamente; na verdade, durante um retiro de meditação que fiz no final do primeiro mês tirei tudo o que tinha nos braços, à excepção de uma pulseira fina que o meu querido sobrinho me ofereceu. A bolsa de maquilhagem reduziu-se ao que uso normalmente – lápis preto e rímel (nem sempre) e batom (raramente). Também no calçado fui mais parca. Apenas um par de sapatilhas (imprescindível!), um par de sandálias e um par de chinelos de dedo. Estes foram sepultados a meio da viagem. As botas de montanha eram já outras – compradas dias antes de partir. O melhor investimento e seguramente o objecto de maior valor. Notei diversas vezes olhos ‘cobiçosos’. Qualquer que fosse o tipo de viagem estavam sempre nos pés quando mudava de localidade, quer pelo espaço, quer pelo peso. Posteriormente também por precaução. As histórias que ia escutando alertaram-me.
Livros e cadernos para escrever eram objectos obrigatórios na bagagem. Em Cartagena das Índias, ainda nem um mês depois de aterrar nesse país maravilhoso, vendi os dois livros por um preço irrisório para os padrões portugueses, mas o valor adquirido permitiu-me pagar duas noites de sono. Isso não significa que a leitura tenha acabado. O ipad tem uma biblioteca interminável. Não obstante, continuo a preferir ler no formato ‘tradicional’. Por isso, logo que surgiu a ocasião quase se fez o ladrão. ‘Encontrei’ um livro num hostel. A partir daí foi fácil. À medida que ia terminando ia trocando com um dos moradores das prateleiras para o efeito – ‘book exchange’ - dos hostels. Às vezes não resistia e surripiava sem trocar.
As mochilas essas, ao contrário do que seria de esperar, iam ficando mais pesadas. Por mais um livro, por mais um caderno que se preenchia sendo necessário adquirir outro. Bem que se esforçavam, mas acabavam por ‘gritar’ “já chega!” A maior rasgou-se. Várias vezes. Isso aconteceu logo na primeira aventura, ainda na Austrália. No aeroporto de Sydney fiquei petrificada. Algum funcionário deve ter dormido mal na noite anterior e decidiu libertar a sua raiva desferindo um rasgão numa das alças. A laceração obrigou a uma intervenção. Felizmente, a senhora a quem aluguei um quarto nessa cidade de arranha céus tinha boas agulhas e consegui suturar eficazmente. Essa cicatriz mantém-se intacta até ao momento.
Ainda nessa viagem, mas já em terras asiáticas, a outra alça sofreu uma pressão interior tão forte que não aguentou. Em Chiang Mai, na Tailândia, ao fim do segundo mês foi necessária nova intervenção cirúrgica. Os instrumentos foram adquiridos na capital. Depois de entrar em várias lojas, encontrei uma solução melhor do que o expectável. Uma senhora agulha, diria mesmo um agulhão. De tal maneira, que o rapaz que me atendeu se recusou peremptoriamente a aceitar qualquer pagamento. Apenas uma moeda de troca. O calibre da agulha era comparável a uma arma letal – o que depreendi da sua linguagem gestual. Não podia cobrar. Na Tailândia a maioria da população é budista; o resto depreende-se.
Continua...

Abraçar a tolerância*





É no jardim da casa que escrevo esta crónica. Ao fim de mais de cinco meses na América Latina, de novo em casa. O jardim da casa é o cenário tranquilo que enche os meus olhos e o coração. É bom regressar a casa, muito bom! Foi isso que senti ao atravessar o corredor que separa a sala da recolha das bagagens, da zona de espera do aeroporto. Ali estava a família num sorriso único. Os abraços fortes e prolongados fizeram-me sentir querida, amada e, sobretudo, ligada.
O abraço tem esse poder! Não é a primeira vez que saliento este gesto tão simples e tão poderoso e é quase certo que o volte a fazer. Como não? A ligação que é possível sentir quando dois corpos se unem pelo abraço desenvolve, renova, reforça os afectos. No toque que se permite, o aconchego; na união de corpos que se estabelece, uma ligação que com frequência nos envolve numa cápsula sem as coordenadas do tempo e do espaço. Como se tudo o resto não existisse; como se nada mais importasse para além do odor mesclado, das batidas de dois corações em uníssono; como se duas pessoas se tornassem numa única entidade, cuja união tem a força de dissipar as fronteiras materiais da corporalidade. Creio que o poder do abraço está nessa possibilidade tão fácil de se concretizar. Talvez seja essa facilidade que torna o acto de abraçar não muito comum – na minha perspectiva.
Observo amiúde que as pessoas se coíbem de abraçar. Imagino que essa inibição seja fruto do reconhecimento do poder do gesto. Parece uma contradição, todavia, penso que é por isso que o verbo abraçar e a palavra abraço se reduzem a isso mesmo: a uma palavra no final de uma mensagem escrita, ou de uma conversa telefónica. Ao vivo e a cores tudo se altera.
As afirmações anteriores decorrem da convicção de que um abraço forte e genuíno é capaz de transformar e abrir o coração. No contacto físico sentem-se as semelhanças perenes em todos os seres humanos. Compreende-se a vulnerabilidade individual e apreende-se o sentimento de união capaz de dissipar qualquer conflito. É essa mesma vulnerabilidade, coloquemos assim, que permite que dois seres se liguem profundamente.
É provável que se as pessoas envolvidas em conflitos se encontrassem frente-a-frente, se se olhassem directamente nos olhos e se se tocassem, nem que fosse por escassos segundos, se dariam conta de como são as diferenças que nos tornam tão semelhantes. Porém, aquele estado de vulnerabilidade demonstra que sem os outros, sem os afectos, sem as ligações pouco somos. Calculo que seja uma das razões porque, na minha perspectiva, o abraço é mais raro do que o desejável.
Não é à toa que existe o dia internacional da Tolerância, a 16 deste mês. Ainda há muito a fazer em relação à Tolerância. Nem sequer é necessário dar exemplos sobre a sua falta. Importa antes, na minha opinião, destacar um dos princípios básicos para que as pessoas estejam em harmonia entre si. É um princípio válido para todos os níveis de inter-acção. Desde o mais simples com um desconhecido na rua, até ao nível das instituições mais poderosas; sendo que as instituições são constituídas por pessoas. Pessoas que se se olhassem de forma compassiva e com tolerância, se lembrariam a cada instante que os números e estatísticas são apenas falácias que escamoteiam o que realmente importa: as pessoas. Todas semelhantes na essência e todas distintas na sua singularidade única, se me é permitida a redundância.
Acredito que se nos abraçássemos mais, teríamos mais oportunidades de sentir cada pessoa em nós. Acredito, igualmente, que se em cada abraço nos deixássemos envolver profundamente reconheceríamos o que é primordial. Sendo provável, por conseguinte, que dias como o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher – a 25 deste mês – deixariam de fazer sentido. Não quero com isto dizer que basta um abraço para desculpar essa violência. Como não basta um abraço para qualquer tipo de violência. Contudo, a Mulher continua a ser vítima de muitos tipos de violência. A sua integridade física (emocional e de tantas outras dimensões) é posta em causa de forma tão frequente que até custa acreditar que se viva num mundo dito civilizado! Não obstante, se aqueles que incorrem sobre as mulheres, ao invés de as violentarem, as olhassem como seres humanos dignos que são, teriam um instante para reconhecerem que qualquer acto vil não passa disso mesmo: um acto vil que em nada dignifica a humanidade.
Bem sei que muita tinta correria sobre este dia; há tanto a fazer, tanto a fazer... eu vou neste momento fazer a minha parte: vou abraçar uma mulher linda que está em mim e dissipar as saudades de cinco meses de ausência física. E o melhor é ir já; o tempo prega tantas partidas que é melhor não deixar para depois.

*Este texto foi publicado no Jornal o Chapinheiro