Apanha que é ladrão!*







O bigode ralo a contornar o fino lábio superior está muito preto e muito bem penteado. Cantiflas foge. Corre a sete pés. Acabou de pegar numa maçã e pôs-se em fuga. Passou por uma mercearia com cestos de fruta à porta e não resistiu. Não havia preços em nenhum dos cestos de fruta e Cantiflas presumiu que fossem para tirar. Presumiu mal. Logo que pegou na maçã mais vermelha e brilhante, o sr. José, o merceeiro, apareceu para cobrar. Cantiflas não resistiu. Correu. Fugiu. Tem outra vez sete anos. Não quer saber do sr. José que está à porta a gritar:"apanha que é ladrão!"
Cantiflas tem novamente sete anos e corre feliz pelas ruas da cidade do interior. Os poucos transeuntes escutam confusos: "apanha que é ladrão"; mas não vêem nenhum ladrão. Vêem um homem a correr e a rir às gargalhadas com uma maçã lustrosa na mão. Não percebem o que se passa, os transeuntes. Alguns reconhecem o tolo de trinta e tal anos que está sempre contente e satisfeito sem razão aparente, todavia não identificam como o ladrão do homem da mercearia que entretanto desistiu do seu "apanha que é ladrão".
Mais uma maçã, menos uma maçã, "não vou ficar mais pobre por isso", deve estar a pensar o sr. José. Na próxima vez que o tolo passar em frente à sua loja, estará certamente mais atento.
Cantiflas chegou à praça principal e senta-se satisfeito num dos bancos em frente à fonte luminosa, que só o é à noite. Ainda são três da tarde e o calor, esse aperta nesta tarde de Agosto. Um calor muito seco nesta cidade entre montanhas.
Cantiflas contempla a maçã. Tão vermelha. Tão brilhante. É um "crime" dar uma dentada. Assemelha-se a um bibelô de tão perfeita, de tão vermelha, de tão lustrosa e redonda que é. Cantiflas penteia o bigode com uma mão e com a outra traz a maçã ao nível dos olhos negros, muito fundos nas suas órbitas.
Daqui, noutro banco muito próximo, vejo o reflexo do vermelho nas suas pupilas. Estou expectante quanto ao que o tolo da cidade vai fazer de seguida. Demora-se. Eu também me demoraria. Aquela peça de fruta é magnífica. Seria assim a que a bruxa malvada terá oferecido à branca de neve? Apesar dos avisos que os sete anões lhe fizeram repetidamente, branca de neve sucumbiu à tentação e trincou. E adormeceu... Até que o príncipe a beijou!
Cantiflas não trincou... Ainda. A maçã continua a reflectir-se no seu olhar. A pele cor de canela sobressai por detrás da maçã. Cantiflas move-se. Tira do bolso largo das calças axadrezadas um bloco de notas. É verde alface. Muito verde, o bloco agora em cima do banco de madeira recentemente envernizado. Em cima, a maçã. O bigode alarga-se. Segue o sorriso maroto de Cantiflas. Aprecia a figura geométrica. A maçã muito redonda, muito vermelha e muito lustrosa sobre o bloco verde também me suscita um leve esgar. Talvez me coibisse igualmente de morder a perfeição que Cantiflas contempla.
Levanto-me. Deixo-o a sós com a merenda roubada. Apanha que é ladrão. Ladrão, talvez, mas não um ladrão qualquer. A mim roubou-me a tristeza de ser adulta. Também eu volto a ter sete anos.
Levantei-me. Caminho devagar, sem dar nas vistas. E sigo dissimulada em direcção à mercearia do sr. José.  


*este textoé dedicado ao tio Manuel, que me levou muitas vezes ao cinema do Foco para ver os filmes do Cantiflas

Os outros em nós...*




O Dia de Todos os Santos é o dia em que as pessoas que partiram para outras dimensões são recordadas. Quer dizer, no dia 1 de Novembro lembram-se os santos e no dia 2 todas as outras pessoas. Naturalmente que isto é apenas um modo de falar, dado que as pessoas que nos eram (e continuam a ser) queridas não precisam de um dia estipulado para que suspiremos por elas.
Na verdade, pelo menos para mim, é preciso tão pouco para que a imagem de alguém que me era próxima me apareça, tocando-me e emocionando-me. A memória é mesmo assim. Um simples objecto naquele lugar, àquela hora ou uma palavra dita num determinado momento e eis que logo viajo para outros tempos e outros lugares, onde posso rever e reviver instantes com esse alguém.
A memória é assim, uma caixinha que, ao abrir-se, tem mais uma caixinha lá dentro que, por sua vez, tem ainda outra caixinha, qual matryoshka - a boneca russa que tem sempre mais uma pequenina surpresa, um pequeno tesouro.
A memória é mesmo assim, um pequeno grande tesouro. Guardo nessas caixinhas, quase que por departamentos, todas as pessoas que têm passado por mim. Guardo e quero lembrar, pois, como dizia Mário de Sá-Carneiro, esquecer é não ter sido. E muito do que eu sou, resulta, creio eu, das pessoas que se inscreveram em mim, marcando-me, mais ou menos profundamente.  
A memória é mesmo assim. Um livro, uma história, a História. E quem ama a vida, ama o seu passado. Como lembra Marguerite Yourcenar, "o passado é o presente tal como sobreviveu na memória humana". E quem amou os seus entes já mortos, deseja preservar na sua memória e no seu coração o tempo antes partilhado.
Através desta marca temporal - a celebração de todos os santos - viajamos no tempo e no espaço e regressamos àqueles que se inscreveram em nós.
Dez dias depois temos mais um motivo para nos reunirmos, desta feita, com os vivos. O Verão de S. Martinho é o clima ideal para o magusto em boa companhia. De preferência com muitas castanhas assadas, cozidas ou cruas, o que interessa é que sejam bem regadas com água pé ou vinho novo, diz a tradição. Mas a tradição nem sempre se mantém e este ano não vou comer castanhas.
Estou fora do país, razão pela qual estou até atrasada nesta crónica. Escrevo enquanto viajo entre São Paulo, no Brasil, e Lima, no Peru. Estou prestes a cumprir um dos sonhos da minha vida: fazer o trilho dos Incas no Machu Pichou, e assim conhecer uma das sete maravilhas do mundo. O berço da civilização Inca. O tema escapou-se, então, para estas paragens. Era inevitável.
Debaixo das nuvens que avisto da pequena janela, os Andes! Que cordilheira extraordinária. Faz-me sentir tão pequenina e ao mesmo tempo tão grande. Pequena, claro. A contemplação da beleza da Natureza imensamente arrebatadora apaga-me na sua infinitude. Também me sinto enorme. A gratidão que me invade abarca e abraça todas as pessoas e lugares que entretanto me providenciaram esta experiência. Não estou aqui sozinha, tenho a certeza. Até porque sozinha sou realmente muito pouco ou nada.
Gosto muito do modo como na língua espanhola se diz o pronome pessoal "nós" - nosotros. Somos com os outros, somos mais com os outros. Os outros em nós. É tão fácil deixar entrar os outros ou entrar nos outros. Um simples bom dia com um sorriso nos lábios tem o poder de transformar o dia de alguém, mesmo que esse alguém seja um desconhecido. Ainda. Ainda, pois a saudação atenta pode tornar-se num pequeno grande gesto. E não custa nada. Para mim é sinal que alguém reparou na minha presença. Quando sou eu a saudar, estou a dizer: olá, és uma pessoa e não uma pedra inanimada.
O dia Mundial da saudação concorre com o dia Mundial da televisão - 21 de Novembro. Confesso que prefiro a saudação, nestes dias em espanhol. Deixo-me, pois impregnar por novos outros. Quem sabe a próxima crónica seja em espanhol.

*texto publicado no Jornal Chapinheiro