O poder de Miriam: prever o futuro. Nasceu numa noite
de Lua cheia. Noite de eclipse lunar horizontal. Nessa noite, não se sabe de
que ano, a Lua e o Sol eram simultaneamente visíveis e a sua cor alaranjada refracta-se
ainda nos cabelos vivamente ruivos de Miriam. Nas noites em que a Lua está
totalmente ausente, a escuridão inibe qualquer um de se aproximar do castelo no
topo do monte onde Miriam vive, aipotU, cujo nome é igualmente o da aldeia onde
os habitantes vivem tranquilos: como não? O futuro é algo que não os ocupa por
muito tempo.
De resto, quem quer saber como será o seu futuro mais
ou menos próximo; quem quer preparar-se para um acontecimento mais ou menos
importante; quem pretende precaver-se em relação a visitas mais ou menos
agradáveis, mais ou menos indesejáveis; quem suspira de amores mais ou menos
correspondidos; ou ainda quem necessita adivinhar se será ou não atacado por
inimigos mais ou menos perigosos recorre a Miriam – a feiticeira até hoje
incompreensível na sua perene juventude.
Miriam: um enigma para o comum dos mortais – não só
não é comum, sendo igualmente pouco provável que seja mortal. De geração em
geração vão-se contando histórias fantásticas, efabulando-se eternas teorias
sobre a maga. Ninguém sabe ao certo quantas gerações terá atravessado. Os seus
longos e encaracolados cabelos mantêm um brilho incandescente, e os seus olhos
ora verdes, ora azuis, mas sem dúvida luzentes, deslumbram qualquer que ouse
saber como agir num tempo para lá do agora.
É possível, especula-se, que nem a própria maga tenha
noção do tempo da sua já muito longa vida terrena. Essa especulação deve-se à
percepção de que nem sempre (ou quase nunca) Miriam se recorda da razão por que
regressam as pessoas para agradecer, nem tão-pouco dos rostos repetidos. Assim,
se pressagia sem qualquer margem de erro, quando aqueles que voltam com
oferendas como forma de agradecimento, nunca sabem como agir. Miriam, a jovem
maga, nunca se recorda dos visitantes. A sua memória esvai-se em cada
adivinhação. Isso não lhe retira o poder, nem tão-pouco a confiança
insofismável que lhe é atribuída.
Apesar da fé que lhe é depositada e até mesmo
segurança que auxilia a manter na aldeia aipotU e em redor, as pessoas ficam
sempre levemente deslumbradas, levemente assombradas com a pele lisa e sardenta
de Miriam. A sua juventude não é compreensível, resultando frequentemente na
apreensão expectável de quem não acede a uma explicação racional de tão longa
existência. Quem já se aventurou a olhá-la de frente assevera que não terá mais
de vinte anos. Não obstante, ao contrário de todos os que a visitam, a idade é
provavelmente multiplicável por cem ou duzentos ou mesmo trezentos anos. No
castelo onde vive, a decoração é ancestral e impossível de datar.
A curiosidade sobre os anos, décadas ou mesmo séculos
da sua existência nunca terá, então, sido satisfeita. Além disso, as suas mãos
são de uma pele tão perfeita e imaculada que se tornam mais um elemento
inexplicável, aumentando o mistério que a rodeia. O seu corpo alto e magro
concede-lhe uma autoridade que somente uma feiticeira consagrada detém. Como é
possível, questiona-se. Ninguém conseguiu ainda descortinar como se conserva
jovem, sábia e afinal um oráculo vivo – assim a designam os habitantes de
aipotU.
O segredo está na Lua nova. Esse detalhe, porém, é
esquivo às populações circundantes ao castelo. Tão-somente receiam as noites
mais escuras. No fundo, como se pressentissem o evidente. A Lua nova é o
instante em que Miriam se coloca em posição receptiva: as suas mãos abrem-se
como barbatanas e um formigueiro inicia-se desde a ponta dos dedos até aos
ombros, espalhando-se por todo o corpo. A sua graça é lunar. Aliás, sem que
isso seja do conhecimento de qualquer habitante em torno do castelo, e
provavelmente de todo o continente – a Lua perde o seu conteúdo para o enviar
em formigal para Miriam.
E Miriam. Miriam tem nas sardas do rosto de feições
perfeitas a lembrança constante da desmemória contínua. Isso é sabido; Miriam
raramente se recorda de quem a visita duas vezes. Não é apenas essa lacuna no
passado da maga. Na verdade, essa ausência justifica as outras ausências: a de
vestígios de envelhecimento. Se não tem memória, como pode então o corpo
envelhecer?
As sardas, retomando, são muito mais que sardas. São
afinal a presença constante da Lua. O formigueiro que a percorre nas noites
novas, mantém-se nessas pintas. Miriam sente o rosto em constante frémito. É um
formigal lunar em si. É muito ténue. O movimento constante das suas sardas é
tão discreto que nunca ninguém suspeitou. Miriam, todavia, não se esquece
jamais dessa constante turbulência na sua face sempre jovem.
A sua capacidade inesgotável não é, porém, apreciada
por todos e muito menos pelos habitantes da povoação vizinha. Na verdade, há
muito que se espera um ofensiva de ipotsiD – a cidade que sempre teve como objectivo
dominar toda a região aipoT. O único lugar que não está subjugado ao seu
domínio é aipotU, talvez pela constante prevenção. Isso, no entanto, não abala
a tranquilidade de aipotU. Os seus modos de vida concedem-lhe a autonomia
necessária para viverem de forma confortável e simples. O rio que nasce no
monte aipotU é uma fonte de vida, gerando riqueza suficiente aos habitantes.
Ora, a paz que se vive em aipotU é alvo de inveja por
parte da população de aipotsiD, em particular pelo seu governante: Rimami – um
homem despótico, cujo prazer se restringe em dominar todo o território de aipoT.
Ao ponto de ter enviado várias vezes um espião a aipotU, a fim de obter
informações que o auxiliem a finalmente investir com êxito sobre a aldeia. O
espião pouco lhe valeu; a informação obtida é do conhecimento geral: a
feiticeira Miriam.
Por conseguinte, Rimami mandou outro informante
percorrer toda a região. O objectivo era averiguar se existiria alguém que
pudesse anular a capacidade de prevenção de Miriam e assim assaltar o castelo
sem que esta pudesse alguma vez prever. Os seus intentos foram finalmente alcançados
e o tirânico Rimami reuniu-se com o bruxo Mairim. Traçaram de imediato um
plano: preparar uma cilada à jovem feiticeira que a obrigue a sair do seu
castelo. Rimami confia que o seu poder se circunscreva às muralhas que a
envolvem e, consequentemente, a protegem.
O bruxo Mairim engendrou o plano malévolo: provocar um
incêndio nas imediações do castelo. Claro que isso poderia ser previsto pela
própria Miriam, no entanto, o desafio é o estímulo que incendeia a maldade do
bruxo e este tem já uma ideia fulminante. O seu poder permite-lhe atear uma
fogueira poderosa sem que tenha de se deslocar à aldeia e, portanto, sem ser
visto ou previsto o seu procedimento malvado.
A bruxaria de Mairim está precisamente em conseguir
transformar o seu corvo – o animal que o auxilia nas suas artimanhas malignas –
num fósforo aceso, no momento em que alcance a janela da torre onde Miriam se
recolhe. O intuito é então queimar até às cinzas a feiticeira. Quando Rimami
escutou o bruxo, os seus olhos fundos e demoníacos brilharam com tal
intensidade, que o seu rosto rugoso se transmudou num esgar que jamais se
poderia comparar a um sorriso, tal a malignidade entrevista.
A noite prevista para o assalto era de Lua nova.
Aquela em que Miriam descansa e restabelece os seus poderes adivinhatórios. As
condições óptimas, por conseguinte, para os planos malvados: assim eles se fiaram.
No entanto, quando o corvo saiu em vôo alucinado até à aldeia da paz, as nuvens
tornaram-se inesperadamente cinzentas. Sem que ninguém contasse, o céu ficou
carregado de uma camada espessa de água repentina e inexplicavelmente acumulada
nas nuvens. A torrente de água rapidamente se tornou numa tempestade incomensurável,
abortando todos os planos anteriormente preparados pelos velhos perversos.
Os muros densos de água alagaram todas as povoações da
região. O palácio do tirano Rimami em aipotsiD ficou, inclusivamente submerso,
e o governante apenas se salvou por um triz. O bruxo, esse, desistiu de tentar
novamente. Confessou mais tarde ao seu mandante que, com efeito, nada mais
podia fazer: era quase certo que houvesse algo mais para além da própria maga e,
como tal, não tinha como aceder ao pedido.
Na aldeia de Miriam ninguém suspeitou do sucedido. O
único vestígio do pretenso ataque foi uma chuva de vários dias, que até foi
muito bem-vinda, dado o calor que se fazia sentia há já algumas semanas. A
protecção que se fazia sentir não foi como tal posta em causa... até um dia.
Passados alguns meses, chegou ao castelo onde Miriam
vivia, há tempo indeterminado, um forasteiro. Não seria caso estranho, se não
suscitasse tanta ou mais curiosidade que a própria feiticeira. Curiosidade é,
naturalmente, um termo redutor para se aplicar à personagem que lentamente percorreu
as calçadas da aldeia onde o castelo morava. Em cada passo em frente, a leveza
que conduzia o homem de capote negro tinha um efeito sonoro: as portas das
casas iam-se encerrando. A altivez do corpo, que parecia deslizar sem tocar no
chão, assustava tudo e todos. Adivinhava-se o seu destino, que só por entre as
portadas semi-cerradas se confirmou pelos olhares escondidos e receosos dos
aldeões.
Jonas (não o bruxo Mairim) alcançou as muralhas e
entrou na torre de menagem. O que aconteceu depois ficou desconhecido aos
habitantes, que de resto não calculam que meses antes se engendrara um assalto
à sua pacatez. Só as pedras das paredes interiores podem informar do sucedido.
Jonas tinha uma missão. Acabar com a eternidade de Miriam. Sem que o soubesse
racionalmente, a feiticeira adivinhava que mais tarde ou mais cedo seria
visitada por um certo mágico a mando de Rimami.
Era Jonas quem chegava. A Lua era nessa noite
completa. Estava, pois, em aberto qual o desfecho que também as estrelas
aguardavam expectantes. Na fase da Lua nova anterior, Miriam procedera como
usual – era ritual que lhe estava gravado na pele e cuja memória não era de
todo necessária. Agora que a Lua chegava ao seu pleno, Jonas ali estava para
suspender uma vida com multi-vidas, tantas vidas que era impossível vislumbrar.
No olhar negro como o capote desse homem ainda mais
alto que Miriam, a feiticeira antecipou o que há muito esperava: o seu fim. Era
quase com satisfação que recebia aquele não tão estrangeiro na sua torre.
-
O que queres?
-
Sabes ao que venho?
-
Tu dir-me-ás.
-
Tu já sabes.
Palavras apenas imaginadas pelas paredes maciças. A
mensagem era telepática e Jonas não precisou de mover os lábios grossos – tal
qual as suas mãos debaixo das compridas mangas. Aproximou-se de Miriam. O que
pareciam ser mãos rudes, eram afinal extremidades poderosas. Miriam recebeu-as
no seu rosto. O toque foi enfim suave e provocou-lhe um choque equiparado ao
que nos dias de hoje se designa de eléctrico. O contacto electrocutou as
formigas – as sardas de Miriam apagaram-se num ápice.
No instante seguinte, Miriam jazia na sua cama. Os
olhos fecharam-se. No instante seguinte àquele instante, Jonas juntava-se-lhe
no leito. Guardava com carinho uma das mãos da ainda jovem. O sono da
feiticeira prolongou-se pelas sete noites de Lua cheia.
No quarto minguante, Miriam despertou. Ao seu lado,
Jonas. Descurando a presença masculina, a maga deu um pulo e abeirou-se do
espelho. Quando viu o seu reflexo, Miriam lembrou-se de repente dos seus pais.
Há quanto fora? Ah, sim... os olhos azuis, e verdes em simultâneo, continuavam
brilhantes, mas...
Durante essas noites de Lua cheia, a aldeia de aipotU
suspendeu-se no tempo. Uma fogueira na praça foi continuamente avivada e todas
as noites, sem falhar, todos os habitantes, sem que algum falhasse, se juntavam
numa espécie de reza colectiva em prol da sua protectora. Quando a Lua alcançou
a sua fase crescente, os habitantes tinham a mesma informação aquando da
chegada do forasteiro: nenhuma! Só não estavam às escuras pelas chamas
incandescentes da fogueira.
Foi então que o inesperado aconteceu. Nessa noite,
enquanto em mantras desconhecidos em redor da fogueira, a população de aipotU
parou o murmúrio ininteligível: em passos muito lentos e muito velhos,
aproximava-se uma figura feminina vinda do castelo. No momento em que o seu
rosto pálido, rugoso, sob um cabeleira farta, mas sem cor, os alcançou, os
aldeões entoaram um ah colectivo de surpresa. Era Miriam, não a jovem oráculo,
mas uma velha muito velha, tão velha que só a conseguiram reconhecer pelos
olhos cintilantes.
Durante essa noite ninguém arredou pé. Todos queriam
saber o que se passara. Mais do que isso, receavam que dali em diante a sua
confiança no futuro estivesse em causa. Miriam juntou-se à fogueira e contou a
sua longa história... pelas sete noites seguintes. Quando finalmente a Lua
atingiu novamente a sua fase plena, Miriam adormeceu... eternamente.