Carta ao Pai Natal







Querido Pai Natal


Chamam-me Ana Luísa e não sei muito bem quantos anos tenho. O calendário diz que estou quase a fazer quatro (mais trinta e seis) anos... mas sinto mesmo que esse calendário está um bocadinho esquisito. A cada dia que passa fico mais confusa com as horas que se me atravessam. Às vezes tenho a sensação que também sou um caso curioso, como o Benjamin Button... pelo menos no que toca aos pensamentos e sentimentos... cada vez mais infantis.
Isso parece-me ser uma boa coisa, sem querer contudo estar a fazer julgamentos. Mas exactamente por isso, senti esta espécie de compulsão: escrever-TE.
Sabes, é que este ano sinto que realmente fui uma menina bem comportada. Quer dizer... nem todos pensam da mesma maneira, mas só a mim e a TI isso importa. TU viste! – eu senti que estava a ser sempre observada por TI. E sabes, tenho mesmo a impressão que alguém me protegia em cada momento. Serias tu? Talvez sim: daí que esta carta seja mesmo para TI. Se não te importares, partilha-a com tod@s aquel@s que estavam ao TEU lado nesses momentos, protegendo-me... basicamente Sempre!
Querido Pai Natal. A minha lista de prendas é muito vasta. E só TU ma podes dar. Antes disso, quero dizer-te uma coisa.
 Muito obrigada! Muito obrigada por cada minuto que vivi, por cada pessoa que esteve comigo mais ou menos tempo... essa coisa do tempo é muito relativa. Houve pessoas com quem estive apenas uma hora, mas que me ficaram para sempre. Obrigada por cada ser que se integrou em mim, transformando cada célula. Deve ser essa a razão porque me sinto progressivamente intemporal...
Muito obrigada por cada lugar que se inscreveu em mim... hoje o meu espaço não é meu: é o infinito – a potencialidade total de ser e estar em qualquer lugar, com qualquer pessoa. Hoje sou, estou imensamente vasta. Muito obrigada!
Em relação à minha lista... é esta: a consciência em cada minuto, cada hora, para, desse modo, escutar e estar atenta a cada pessoa e lugar: só assim posso desfrutar plenamente cada instante precioso que me é concedido viver.
E pronto! Acho que já é muito... esta coisa de viver apenas no presente é um presente nem sempre simples e fácil...
Querido Pai Natal, para terminar gostaria ainda de acrescentar que tenho muito a aprender, por isso, se não TE importares, podes também deixar-me... mas onde? Ainda nem a árvore de Natal fiz! Ah, já sei... podes deixar um pouco de magia nos olhos de tod@s aquel@s que se cruzam comigo, para que eu me lembre que somos todos muito... basta que queiramos!
Obrigada
Ana Luísa

PS: esqueci-me de dizer-TE que gostaria de poder voltar a deslocar-me de bicicleta para todo o lado... obrigada!

A Carta de amor: a única!




11/12/13
Querida Ana Luísa, meu amor

Cheguei-me. Dornes Re-velou-te-me. Hoje quero dizer-te com toda a minha totalidade que te amo profundamente. Já to afirmei novecentas e noventa e nove vezes. Hoje é a primeira vez que me declaro sem ser apenas em palavras. Basta de palavras! Sabes isso melhor que ninguém... com toda a certeza!
Quero expressar-te que finalmente te escuto, que finalmente olho para ti – sem espelhos; sem reflexos. Sem dúvida que o espelho foi muito útil para te reparar mais. No espelho vi-te em mim. Vi o que sabia mas não reparara assim tão bem. Como és linda, como os teus olhos brilham e como expressam tanto... sem que eu tivesse visto.
Hoje quero revelar-te que me revelei em ti. Chego-me a casa, a ti... era tão fácil: sempre estiveste aqui!
Sei o que precisas. E eu dou-te! Recolho-te ao meu colo e embalo-te amorosamente. Trago-te até ao meu coração – que agora se abre plenamente: a ti! Cuido de ti: és a minha adorada filha. Protejo-te no meu colo, aqueço-te – embriago-te de amor!
Faço, farei tudo o que pedires. Sei que tudo o que peças é o que mais precisas. Por isso, ouço-te, reparo-te, faço-te: amo-te. Muito! Revela-me sem pudor, sem vergonha, sem receio e serei tudo o que queiras. Serei tudo contigo. E tu: és muito! Tu és extraordinária. Extra em tudo e ordinária também. Sê tudo, o extra e o ordinário! Sê todas as crianças, adolescentes, mulheres e outros eus que habitem em ti. Não mais calarei uma só voz, uma palavra tua.
A todos esses eus eu acolho e serei com toda a minha presença neste presente. Cuido bem de todas e qualquer que queiras ser em cada instante. Apenas e tanto tu! Tu! Eu! Tu e Eu. Sempre aqui abraçadas amoravelmente.
Um xi-coração
Ana Luísa

Um pneu furado... escutando Keith Jarrett



Clica para ouvir : http://www.youtube.com/watch?v=1FqH9mtxJnQ


Um pianista desabrido. Um pneu furado. A vida às vezes prega partidas. É uma brincalhona. O pianista de negro à frente do seu piano branco. As teclas quase marteladas em delicadeza sentida. Um carro parado com a roda congelada. Uma vida serpentina e às vezes enigmaticamente labiríntica.
As notas sucedem-se sem pausas. Os dedos sempre atentos à leitura da pauta quase desnecessária. O macaco fundamental para que o pneu seja trocado numa estrada deserta, sob o céu em lusco-fusco. É quase noite. O rádio sempre a tocar. O pianista não pára! Umas vezes mais veloz, umas vezes menos rápido. Sempre num ritmo que se paira entre o estonteante e o agitado. O pneu tem de ser mudado. O porta-bagagens tem um sobresselente. Antes disso é imperioso colocar o sinal de perigo. Vá se lá saber se a vida está com mais ou menos humor, mais ou menos negro.
O jovem isolado numa via sem movimento é que não sabe se por ventura vem de lá, sabe-se lá de onde, um qualquer condutor mais ou menos desvairado e emaranhado em congeminações. Não é de arriscar. Antes de arregaçar as mangas para a substituição, o rapaz em vestes negras enverga o colete em florescência para se fazer notado, no caso de vir alguém distraidamente com pressa.
O pianista continua o seu périplo musical acompanhando os pensamentos do jovem atarefado em questionamentos de última hora. Mas não vale a pena gastar muito tempo nesse trabalho intelectual. O manual é o requerido para o momento numa via pouco iluminada e sem vida humana à vista. Os animais nocturnos estão já à espreita. O condutor em azar pressente esse odor animalesco que o cerca com tanta ou mais rapidez que as teclas no interior da viatura que não se aquietam. É de propósito. A música a solo de um instrumento imponente proporciona a banda sonora ideal a quem está só, numa estrada sem vivalma ladeada por pinhais cada vez menos visíveis. O que se começa a perceber são uns olhos curiosos a aproximarem-se da berma. Quem sabe a companhia perfeita de quem tem mesmo de se apressar se não quer chegar ainda mais atrasado para o primeiro encontro, ainda por cima em casa dela.
Dela quem?
O pneu está mesmo furado! “Bolas!”, o queixume silencioso de quem não tem a quem se queixar e muito menos quem o ajude no meio do nada. As mãos sempre muito tratadas, tal qual as de um pianista. Não as do que escuta no rádio num concerto em Colónia. As suas, mil e umas vezes lavadas por dia. Perde a conta à quantidade de água que as suas extremidades conhecem, a fim de não conhecerem as impurezas que a vida providencia. Impurezas da vida. Desta vez é muito mais que isso. Não só as mãos vão ficar que nem esterco oleado, como ainda serão forçadas a um esforço que pensava improvável. Hoje, em particular. Afinal de contas é o seu primeiro encontro. Ainda por cima, em casa dela!
Dela quem?
O melhor é não pensar nas travessuras da vida, neste caso do prego impecavelmente posicionado para o crime perfeito. Um furo no pneu da frente no carro de alta cilindrada. Acabadinho de comprar. Preto, lustroso, macio. Assim estavam as suas mãos, aparte da coloração, apenas a roupa no mesmo estilo. Apenas o exterior. O interior vinha em exultação estimulada pelas teclas imparáveis no mesmo ritmo do coração em tumulto apaixonado. Apaixonado desde que preciso momento? O jovem que se prepara psicologicamente para a mudança do pneu transporta-se para esse primeiro ápice, quando os seus olhos se pararam nos dela.
Dela quem?
Não há muito a preparar sob o ponto de vista psicológico. Apenas e só pegar no macaco para elevar o carro. Parece fácil, lamentou-se uma vez uma amiga em apuros que lhe telefonou desesperada porque não encontrava o material necessário para essa empreitada. É fácil, a resposta peremptória. Hoje, nada parece ser assim tão simples. Nada disto lhe apetecia – como é óbvio. Mas quem é que quer chegar atrasado ao primeiro encontro, quando a cabeça está ocupada com tudo menos com a racionalidade, quando o coração estava quase no seu ponto de estrada... ah, ah, pensa o jovem recentemente apaixonado enquanto encaixa o macaco no sítio certo do carro numa estrada pouco acertada. O carro... novinho em folha. “Caramba, mas porquê?” As queixas à vida que o retém num caminho que mais parece o cenário de um filme que podia ser de terror. O céu cada vez mais escuro, sem a lua que está quase a ser nova e as estrelas... essas, pouco visíveis. Vê melhor alguns olhos que quer confiar amigáveis. A vida não pode ser assim tão arisca com ele. Já lhe bastou o susto provocado pelo estrondo vindo do nada. Logo hoje! Hoje que tem o seu primeiro jantar a dois em casa dela.
Dela quem?
Por ora, ela não é a principal ocupante dos devaneios. Desviou-se do sorriso aberto e timidamente sedutor que o encantou. Não é o momento para se voltar a perder nesse instante que se tornou decisivo. Decisivo é desapertar as porcas do pneu. Porcas ficam as mãos e porca está a ser a vida. Porcaria de prego na porcaria de estrada sem iluminação decente. Decência, decente... assim queria que a sua figura se apresentasse ao tocar à porta dela.
Dela quem?
Aquela que aceitou o seu convite para um café depois de dias a fio em palavras expressas pelo silêncio revelador de olhares continuamente à procura de serem correspondidos. A correspondência sempre em sincronia por um sorriso tão vasto, quanto tímido. Assim lhe parecia – ao jovem que agora não pode estar com essas lamechices de apaixonado. Tem mesmo é de desaparafusar as porcas. E de novo se concentra na tarefa.
Enquanto se foca no pneu não se perde na estrada perdida sem almas perdidas para o acompanharem nesta missão. Nem o brilho do carro em estreia lhe abrilhanta o semblante. “Já está!”. Primeira parte concluída. O pneu furado no chão. Coloca-o debaixo do automóvel, não vá o macaco macaquear e pregar-lhe uma partida com tão ou pior gosto que a vida. Ai a vida... Uma brincalhona. Olha para as mãos... porcas. O que vale é que apesar de novo, é um homem precavido e os toalhetes de bebé estão no porta-luvas. Lembrou-se disso em boa-hora. Em boa-hora é que não foi este prego aparecer nesta estrada de silêncio apenas quebrado pelo pianista que continua a tocar sem descanso. Mais parece que sabe a ansiedade em que se encontra um homem novo em plena preparação para um primeiro encontro. Esta parte da preparação estava fora dos planos. Um furo no pneu. Que interessa agora o que pensa o compositor americano... Encaixa o pneu sobresselente. Aperta as porcas. As porcas, as mãos... espera que os toalhetes sejam suficientemente poderosos para tocar a campainha sem vestígios deste malfadado imprevisto. Logo hoje, a primeira vez que se verá a observar os movimentos da mulher tão jovem quanto ele, na intimidade. Sempre lhe pareceram graciosos no local para onde se tem deslocado todas as tardes. Em parte por ela.
Ela quem?
Calma, está quase, as palavras interiores para calar o exterior. Esse olhos incandescentes e anónimos de pretensos animais. Que quererão eles; talvez que apenas matar a curiosidade, tal como a dos gatos – confia. Ou então estão ali para lhe dar a luz necessária para mudar o pneu – confia. Talvez que a vida seja somente brincalhona neste momento em que música acelera a cadência por outras mãos agitadas que se fazem escutar pelo movimento frenético. Frenético, assim está o moço aperaltado na fase final da sua inesperada tarefa e que lhe suja veementemente as mãos. Essa parte do corpo que se afundará noutra que o espera. As mãos dela... oh...
Ela quem?
A rapariga loira por quem se enamorou no lugar costumeiro das últimas semanas. Tomou a decisão de sair de casa para estudar para o exame que lhe dará entrada na ordem dos advogados. Escolheu um sítio que há muito conhecia... de nome. A esplanada da praia do Aterro. O sol convidava. Porque não? Sempre é mais agradável que a sua casa obscuramente resguardada dessa luz de Primavera avançada. Pelos vistos ela pensou da mesma maneira, confidenciou quando ultrapassadas as barreiras da timidez. Também aí se dirigia para se afastar não da luz mas das dispersões provocadas pela vozes cansativas do mundo virtual.
O pianista recebe agora os aplausos em Colónia. O pneu aparafusado entretanto. O brilho disperso da sua companhia desconfiada permanece. Ainda bem... Ainda necessário para arrumar o resto da tralha. A vida até que pode ser amiga. A providência que a estrada não lhe proporciona. Na rodovia nem um carro, mais ou menos novo para lhe dizer que o tempo prossegue. Só mesmo os seus movimentos em terminação lhe transmitem os minutos incessantes. Nem olhou para o relógio. Para quê? Isso não alteraria a probabilidade mais do que futuramente comprovada de que chegaria atrasado a casa dela.
Dela quem?
Aquela que aceitou o convite para partilhar a mesa da esplanada. E ali ficaram horas em sussurros. Como foi afinal? Ah, já se lembra. Nesse dia, não muito distante do de hoje. Hoje – quando se transporta finalmente para a concretização de um sonho sonhado três noites. O de estar apenas e somente com ela. Gostará ela de Keith Jarrett? O seu músico preferido que tão estranhamente se junta ao seu instrumento. Às vezes parece um tanto louco. O modo como se levanta para tocar, remexe-se todo, mais parece que em transe. Que interessa isso agora? Os toalhetes, isso. Ainda bem que os tem. Que pensará aquela que se juntou a ele no primeiro dia... da sua vida. As duas tardes seguintes foram em constante partilha de ideias, de toques também. Até que... quis convidá-la para jantar. Não aceitou. Oh... numa reacção rapidamente ultrapassada. Ela estava a acabar um curso de cozinha vegetariana e precisava de experimentar o que queria apresentar na sua prova derradeira. Oh... com outra entoação – muito díspar. A surpresa surpreendente. “Em tua casa?” a pergunta engolida em seco. “Claro que sim...” Na casa dela.
Dela quem?
Nem sabia o que pensar. Essas coisas não se pensam, sentem-se, mas isso já se sabe. E ali estava ele a limpar as mãos o melhor que podia, ao mesmo tempo que o seu olhar estava agora pregado nos outros que o iluminavam. Não saíram dos seus lugares noctívagos. Nem por isso menos resplandecentes e muito úteis. “Obrigado”, escutou-se. Esses animais, que não chegou a ver para além da fulgência, também ouviram e desapareceram tal como assomaram. Sem ruído. Sem ruído continua a estrada que continuará então. Tudo pronto para continuar até à morada escrita num papel ontem ao pôr-do-sol. Ontem... onde já vai esse dia. Hoje. Hoje é o dia que vai a casa dela.
Dela quem?
Essa mulher jovem com quem passou as últimas tardes na esplanada. Eram só os dois que ali estavam, na cápsula que os envolveu e em que mais nada existia. Amor à primeira vista? “Isso não existe”, o seu amigo de infância. Claro que sim, calou. É o que está a viver. Neste momento não tão intensamente... a estrada tem de ser a única coisa a prender a sua atenção se não quer tardar ainda mais. O pé carrega no acelerador. Testa então a pujança apregoada na alta cilindrada que lhe aumenta os impostos. Que importa isso face ao aparato que tem conseguido sempre que estaciona? Todos os olhos de cobiça em cima de si... Não foi por isso que escolheu essa marca. O pai assim o presenteou: “Um bom advogado tem que marcar presença desde o primeiro momento!” Sem muita convicção anuiu, como em tudo na vida até à tarde em que conheceu a mulher que deseja sua. Sua, mas quem é ela?
Ainda não lhe sabe muitas histórias, mas as que o adentraram foram mais que suficientes para se ter a certeza que é ela por quem sempre esperou. Como sabe? Essas coisas não se lhes responde a razão. O seu coração sempre em arritmia desde então lho assegura. Quem diria? Um quase advogado guiado pelo sentimento... Que quererá isto dizer? Que importa isso agora! Tem mesmo é de prestar atenção ao caminho, não vá a vida assustá-lo mais... uma vez...
Não se terminou nesse devaneio. João Cabral acabou de embater ruidosa e catastroficamente numa árvore antes invisível... para si. Conheceu, pouco, e da pior maneira possível. O que não conheceu de todo foi a intimidade da casa de Mariana... Aquela que esperou durante toda a noite pelo amor que também acreditava ser o da sua vida.
O carro em choque continua de rádio ligada a fazer ouvir as teclas sublimemente tocadas. O pianista negramente vestido abrandou estranhamente o ritmo noutro concerto, o que soa agora é o de Molde. Adivinharia o músico que seria a banda sonora de um cenário triste de um amor estranhamente incompleto... nesta vida?