... Kuala Lumpur
A minha ignorância é oceânica. Se disso estava segura enquanto
estudante, investigadora e leitora, as viagens têm confirmado cruamente o quão
limitada sou.
Em 2013, voei em direcção a Melbourne, com a
intenção de passar três meses na Austrália. Ao fim de um mês, a chuva era a
minha companheira mais fiel, enquanto subia pela costa do Pacífico. De maneira
que, ao chegar a Sunshine Coast, decidi retroceder a Gold Coast – onde
encontraria o aeroporto internacional mais próximo (onde vivi a minha experiência única de dormir ao relento).
Daí voei para Kuala Lumpur. Foi após a tomada de
decisão, e durante as pesquisas acerca dessa cidade, que me apercebi de que a
Malásia é vizinha da Tailândia e está à distância de uma ponte de
Singapura. Numa ‘Estrada azul’ li isso mesmo, que viajar nos faz entrar na
geografia. Voava para uma nova realidade geográfica: a Ásia!
Durante a interrupção de tempo, no ar, que me
transportava até Kuala Lumpur, as buscas prosseguiram. Era necessário
seleccionar de forma criteriosa os locais a visitar na capital da Malásia.
Um recorte de revista sugeriu-me um local com a
classificação de eco-turismo: o parque de aves – Kuala Lumpur Bird Park. A brochura vendia o parque como sendo o maior
da Ásia, guardando o conceito distintivo de voo-livre. O que significa que (pelo
menos em teoria) os pássaros têm liberdade para voar quando e para onde querem.
A realidade inverosímil transcendeu o cerco da
minha ignorância e vagueei durante horas a fio pelas diferentes zonas do
parque. Passo a passo, o meu rosto iluminava-se com as cores vivas das inúmeras espécies. Emas, mochos, pavões, papagaios, araras, aves de rapina,
flamingos, periquitos, pombos, patos, galinhas da índia e mais uma infindável
série de espécies que desconhecia. Asas de todas as cores
rasgando o céu em cada abrir e fechar de olhos.
O azul não era a cor predominante de um céu
fumado, escapando-se dos edifícios que teimavam em arranhá-lo. Pelos caminhos
das horas asiáticas toquei noutra realidade cinzenta, mas brilhante: as Torres
Petrona. Um par de torres com 88 andares e 452 metros de altura resplandecente.
Característica que lhes confere o sexto lugar na lista dos edifícios mais altos
do mundo. Aí habita um paraíso para os amantes das compras e das marcas de
luxo.
A sua imponência desafia as leis da gravidade.
Exagero. Mas na minha memória inculta não moravam patamares de betão tão elevados. A
minha região desértica das alturas ficou ainda mais preenchida quando subi à
Torre Menara. A sua exuberância terá sido ofuscada pelas outras gémeas. Não obstante,
foi nesta torre com 421 metros que confirmei mais uma vez a minha pequenez.
A vista incrível, que a torre me providenciava em 360 graus,
mostrava-me as torres gémeas e o seu séquito de edifícios de luzes acesas a
iluminarem o caminho da noite.
Guardei as emoções num bolso e calcorreei os
passeios à beira-rio, que me conduziram até Sultan Abdul Samad – o local que
abrigou os colonizadores e a respectiva administração britânica até
1957: data que assinala a independência da Malásia, festejada na Praça
Merdeka – onde antes se jogara o críquete.
A grandeza daquela obra
histórica foi
marcada por discussões do foro arquitectónico que deixam os leigos na dúvida
quanto ao seu estilo mais ou menos mourisco. A torre do relógio destaca-se pela
sua altivez em forma de cúpula, cuja cor do sangue provoca outras quantas
indagações acerca da sua edificação.
Sem estugar o passo, errei pelo mercado central
de China Town, amplamente referido como sendo de visita obrigatória. A
mochila era parca em espaço para quaisquer recordações materiais ou coisa que o valha,
mas os olhos mantiveram-se bem abertos, enchendo-se orgulhosamente de memórias
coloridas.
O hotel em que me alojei por duas noites, antes
de viajar de comboio para Banguecoque,
ficava muito próximo de Brickfields. Uma área habitada sobretudo por gente de origem da Índia,
tornando-a, por isso, mais conhecida por Little India. As cores vivas, os odores quentes e os sabores
picantes são estímulos fáceis para invocar a atmosfera mística daquele
quase continente. Na verdade, foi em Kuala Lumpur que me sentei pela primeira
vez, ao fim de um mês, num restaurante para me deliciar com uma refeição completa. E indiana!
Há que dizer que na Austrália os preços eram dez
vezes mais caros que em Portugal, mas na Malásia os bolsos descontraíram e
respiraram com algum fulgor.
Foi na estação de comboios urbanos que me deparei
pela primeira vez com a possibilidade de viajar numa carruagem exclusiva para
mulheres, onde se visualizavam sinais a proibirem beijos e abraços. O espanto
foi de tal ordem – ai quanta, a minha ignorância – que partilhei uma fotografia nas redes sociais.
Alguns anos mais tarde, em Nova Deli, agradeci vivamente o facto de ter essa
mesma opção.
Apesar do pouco tempo que passei em Kuala Lumpur,
foi possível apreciar e ser alvo da generosidade e sorrisos malaios. Os
farrapos de conversas desenvolveram-se num inglês titubeante, pintando os meus
dias no clima equatorial e ajudando a esquecer a chuva incessante das semanas
anteriores.
Voltei a Kuala Lumpur dois meses depois, mas
dessa feita fiquei-me pelo ‘não-lugar’ aeroporto – estava de passagem, transitando entre a
Tailândia e o Porto... era tempo de guardar os fragmentos e transformá-los em
matéria viva.
*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro. Infelizmente, o Jornal está suspenso, por tempo indeterminado!