... travessia do Rio
Douro... a nado
Este ano fui duas vezes a Espanha – saí duas vezes de
Portugal. Note-se. É provável que o verbo ‘sair’ não seja o mais adequado.
Em primeiro lugar, atravessar uma ponte de bicicleta
até à fronteira não significa, necessariamente, estar a sair ou a entrar, ou coisa que o valha.
Em segundo lugar, numa travessia a nado só se toca na
outra margem de um rio.
Foi de Segura – aldeia do concelho de Idanha-a-Nova –
que cheguei a Espanha, pedalando e, assim, atravessando a ponte sobre o Rio
Erges. O ponto de partida da ‘viagem’ fora da própria sede de concelho,
Idanha-a-Nova...
Nadei até Espanha desde Peredo de Bemposta –
Mogadouro. Uma praia fluvial, nos confins, não direi do mundo, mas cujo acesso ainda
lhe providencia o carácter de ‘tesouro’ do Douro. Por favor, não divulguem.
Queremos voltar lá, com a esperança de que ainda não esteja transformada numa
algazarra de Agosto.
A aventura até Segura – chamemos assim – jamais
poderia ser empreendida em Agosto. O caldeirão da Beira Baixa não permitiria
uma estafa de quase 100 quilómetros (ida e volta) a pedalar. Foi o meu percurso
mais longo até ao momento, de bicicleta. Valeu a pena!
Não consigo explicar o encanto que Idanha-a-Nova tem
sobre mim. A paisagem quase vazia – ‘limpa’, como alguém afirmou – exerce um
fascínio indizível sobre o meu ser.
Não chega a 100 metros, a distância entre as duas
margens do Rio Douro. De qualquer modo, fui a única pessoa a nadar até à outra
margem naquela tarde de Agosto, no concelho de Mogadouro. Com e sem modéstia à
parte.
A dificuldade estava – segundo o meu companheiro de
aventuras – na incapacidade de ver o fundo do rio. Sabe-se lá o que poderia
saltar, assim de repente, e comer-nos os pés.
Os abutres-negros vagueiam pelo ar em busca de
alimento, por conseguinte, estes necrófagos não eram um perigo para quem
pedalava até ao Rio Erges.
Em Março, as cores primaveris que ladeavam a estrada
com curvas e mais curvas enchiam os meus olhos. O amarelo dourado das flores
silvestres contrastava com o ainda verde da vegetação rasteira. Os olivais
alternantes com os campos de pasto pincelavam as terras ondeantes, cuja
inclinação assegurava um treino forte, sem chegar ao limite do extenuante. As
pernas ressentiram-se – afinal, 50 mais 50 dá que pedalar – mas sem desafio não
seria tão interessante.
Aqueles quase 50 metros até Espanha (mais 50 de volta
até à ‘nossa’ margem) desafiavam o conceito de fronteira – pelo menos a mim,
para quem este é um tema muito caro.
O verde seco e denso das águas do rio davam a sensação
de se estar prestes a pisar um manto sem solo. Mas as pedras e rochas de cada
margem parecem ser suficientes para afirmar: aqui é Portugal; daquele lado é
Espanha.
A ponte romana, que terá sido construída durante o
império de Trajano, no século II, estabelece uma marca territorial que dissipa
quaisquer dúvidas que possam subsistir. A sua imponência é só mais um exemplo
daquele que foi o maior império de todos os tempos. Os resquícios e vestígios
por todo o território português assim o atestam.
Território.
Quando se nada no Rio Douro, as altas fragas em cada
margem acendem a imaginação e ‘edificam’ lendas, como a da “Fraga da serpente”.
Reza a lenda que havia uma serpente que todos os dias cumpria um ritual: ao
acordar, dava sete voltas à ‘sua’ fraga; depois, no seu movimento serpentino ia
até um chafariz para beber água e, no seu regresso a ‘casa’, ia picar os pés de
uma santa que vivia noutra fraga. Todos os dias.
Mas até uma santa perde a paciência; fartou-se de ter
os pés picados por uma serpente caprichosa. Lançou-se para outras terras,
espanholas, a santa. Depois de se encaixar num seixo, rebolou para a outra margem. Mas de Espanha, não há
apenas ventos e casamentos. Os pastores que por ela passavam, atiravam-na arriba
abaixo. Isso aconteceu várias vezes, tantas como aquelas que encontraram o tal
seixo no mesmo sítio de onde o lançavam. Até que a curiosidade os moveu e
abriram o seixo e viram uma santa a quem ergueram uma capela – no lado
espanhol, já se vê. Mas a santa que afinal também parecia caprichosa virava-se
para Portugal. Talvez para mostrar à serpente os seus dedos em forma de
pássaro.
Os pastores compreenderam e remodelaram o santuário,
construindo um duplo altar. Deste modo, também a podemos ver sem ter de nadar
para a outra margem.
O mesmo não se passa em Segura, onde a povoação sente
que nada poderá alterar as suas vidas, as suas terras. As lendas não cabem
aqui, mas os fortes e torres e castelos, ou o que resta deles em toda a faixa
raiana, lembram a história de batalhas, guerras, afrontas...
Hoje: Espanha. Portugal.
Um rio. Uma ponte.
Quem dera se mantenha só assim. Os muros físicos são
tantos e tão ‘duros’...
Enquanto puder nadar e pedalar esqueço-me ou, pelo
menos, sou capaz de me abstrair das cabeças que rolaram arriba abaixo...
* Este texto
foi publicado no Jornal Chapinheiro