Avicii - uma estrada (in)terminável *



https://youtu.be/IcrbM1l_BoI


A estrada é interminável.
O vento acorda o poeta.
Posso ser o sol do teu coração. Mas sou imparável.
Desperto todos os dias contigo.
Os braços estão quase abertos com a cor do teu amor, sem gravidade.
Podemos ser tudo. Os olhos não são suficientes para agarrar a estrada.
Acorda-me. Mesmo que não tenhas planos. O que posso eu fazer? Estou fora de controlo. Fui apanhada de surpresa.
Vamos pelo mar do teu mundo.
A magia está no sol dos teus olhos.
Sinto-me bem quando escuto a voz do teu rosto - uma estrada interminável...

21 de Abril de 2018
Nova Déli, Índia


*Avicii desapareceu esta noite. Tinha 28 anos! 

Na pele de um rinoceronte



Posso tocar? O cuidador anuiu. Não hesitei. A pele do rinoceronte bebé era muito mais dura, muito mais grossa e, ao mesmo tempo, muito mais macia do que imaginava.

O dorso cinzento da cria de nove meses era uma camada protectora forte. O relevo das marcas na pele jovem era tão suave como o seu olhar - quando se desviava dos ramos e folhas para perscrutar a sua observadora.

Saltitei, deslumbrada como se tivesse seis anos, na sua direcção logo que o avistei. A indiferença do animal selvagem surpreendeu-me. Talvez por estar entretido na sua ruminação, como se meditasse. Sentado a seu lado, um homem de cabelo preto recentemente pintado, com olhos rasgados no seu rosto tisnado pelo sol nepalês: o seu cuidador. Informou-me quase no final do encontro. Ah... Até aí ignorava a razão da sua presença, tão-pouco a utilidade da cana de bambu à sua frente e menos ainda o esforço que aparentava fazer para não a usar.

Tenderi estava ferido. Caiu na casa (?), justificou o homem, sem tirar os olhos do telemóvel. Vi sangue em várias partes do corpo. Uma ferida no focinho, uma ferida numa pata, duas feridas no dorso, uma outra numa perna. O jovem animal continuava a intrigar-me. Não parecia nada de grave, mas tendo em conta que os rinocerontes órfãos ficam sob cuidado humano até aos três anos, antes de regressarem à selva - neste caso, para o parque nacional de Chitwan -, presume-se que seja para estarem protegidos dos grandes predadores e outros perigos.

Foi Raj Indra, o guia do sítio onde me hospedei, que me deu a saber a origem do jovem Tenderi. Durante a conversa com o seu cuidador, se é que se pode considerar conversa (as poucas palavras que aprendi em nepalês eram insuficientes para aprofundar o assunto), não me foi possível perceber que o rinoceronte bebé era órfão. Na verdade, a proximidade que me permitiu tocá-lo, sentir a sua pele, escutá-lo e observar a sua boca ruminante, emocionou-me ao ponto de ficar confusa quanto à causa das lágrimas que tentei reprimir. Os olhos húmidos resultavam da alegria da minha criança e da tristeza pelo eventual (?) sofrimento da 'criança' rinoceronte.

O guia atenuou parte da angústia causada por aquele encontro. Pelo menos existem alguns cuidados em relação às crias que perdem os seus progenitores. Pelo que percebi, esta é uma forma de os proteger de grandes predadores, como o leopardo, uma das espécies que vivem naquela área protegida.

Na manhã seguinte, durante o passeio ao amanhecer: outro bebé, outro toque, outra emoção, mais angústias. Um elefante bebé. Outro cuidador que o trazia a passear, como se de um animal de estimação se tratasse. Também senti a pele desta cria, cuja reacção me fez novamente transbordar. O som que emitia era uma novidade, uma espécie de guincho, dando-me a sensação de que estaria a gostar e queria mais (ou talvez fosse o que a minha criança queria acreditar).

Mas o seu cuidador estava com pressa e tive de me contentar em passar a mão por um minuto. E que minuto... Os pêlos negros da pele cinzenta esbatiam a sua rugosidade. Enquanto a mão se movia, tentando agarrar as sensações, para mais tarde as transpor em palavras, o cérebro processava as novidades que o tacto lhe providenciava. A memória deste sentido ficou ainda mais rica.

A minha criança deslumbrava-se.

Não obstante, a pessoa que em mim habita ficava ainda mais em cuidado. Aquele jovem elefante, como muitos outros em Chitwan e outras partes do mundo, estava a ser domesticado, a fim de ser mais um dos entretenimentos para os milhares de visitantes do Parque Nacional.

Pergunto-me se, pelo menos por algum momento, se, pelo menos um ou outro visitante se tenta colocar na pele de um rinoceronte ou de um elefante... quando se deixa passear em cima da sua pele...


15 e 18/04/2018
Chitwan, Nepal
Nova Déli, Índia

O banho dos elefantes


 O banho dos elefantes é uma das atracções de Sauraha, uma das vilas que dá acesso ao Parque Nacional de Chitwan, Nepal. São inúmeras as agências turísticas que oferecem uma série de actividades aos visitantes. Caminhadas de um ou vários dias na selva, passeios de jipe na selva ou até ao lago 20000, passeios de canoa, passeios nocturnos, a pé ou de jipe, noites na torre - presume-se que numa das muitas torres de militares, aqueles que fazem a vigilância do parque nacional -, observação de aves, passeios de elefantes e banhos dos elefantes.

Aluguei uma bicicleta e ontem pedalei até ao lago 20000, onde subi a uma das tais torres de madeira e tecto de alumínio azul. Os seus dois andares têm um impacto discreto na paisagem. O mesmo não se pode dizer das garrafas de plástico à beira-lago, tão-pouco do pó que engoli antes de me sentar num dos bancos providenciados para a contemplação.

 Entre a bilheteira e o parque de estacionamento percorri cerca de cinco quilómetros em terra batida na companhia de um militar, com quem ia trocando impressões acerca de Portugal e Nepal. O cheiro a queimado era resultado de um incêndio recente provocado por algum fumador distraído. Ali, na floresta de Chitwan. A conversa ia sendo interrompida pelo motor e o pó dos jipes, o que me obrigou a lavar o cabelo à chegada a casa.

 Contemplei os muitos verdes das águas e da vegetação em torno do lago, melhor dizendo, lagos. Os diversos leitos de água faziam adivinhar dezenas, não milhares de pequenos lagos. Um local também apreciado pelos mais jovens, a ver pelos pares amorosos que ali se encontravam a passear. Também duas famílias nepalesas desfrutavam do lugar.

 No regresso a Sauraha, cruzei-me com muitos nepaleses deslocando-se bicicleta, sendo abordada inúmeras vezes com um sorriso acompanhado de Namastê. Não era a única estrangeira, mas os poucos que escolhem a bicicleta para conhecerem as redondezas faziam de mim uma atracção local. Os óculos de lentes azuladas e espelhadas também cativavam as crianças sorridentes e curiosas.

 Nas proximidades da vila ultrapassei vários elefantes transportando algumas pessoas no seu dorso. Tão altivas que não tinham como vislumbrar, só assim entendo a sua opção, o olhar tão pesado, quanto triste dos animais. A sensação que tive foi a de que a sua angústia era proporcional ao seu tamanho. Mas o olhar dos turistas não terá captado o rio perdido dos seus transportadores.

 Quando, hoje, me dirigia para o lugar onde os elefantes vão a banhos, não sabia o que ia ver. No dia em que cheguei, Raj Indra, um dos funcionários e guia do hostel, conduziu-me por um curto passeio pelas redondezas, assinalando-me à distância este local, informando-me a hora estipulada para o efeito: onze da manhã.

Passava-me pela cabeça que seriam às dezenas, os maiores mamíferos terrestres no rio, dado o número de locais que oferecem os seus serviços. Durante o caminho observava uma espécie de discurso interior, como que a preparar-me psicologicamente: muito bem, pelo menos levam os pobres animais ao rio; talvez assim se sintam um pouco livres dos seus deveres.
 Qual quê!

Ainda era cedo, dez e pouco, quando alcancei a margem do rio e vi três elefantes. Imagino que o número tenha subido ao longo da manhã. Em cima de cada um deles, estavam outros animais, os humanos. Nem ali os trombudos estavam em paz. Pelo contrário, eram estimulados - espicaçados, melhor dizendo, com um pau - para molharem os humanos com as suas trombas, à laia de mangueira.



 Os grandes paquidermes tinham a pele manchada, parecia gasta e doente. Perguntava-me se as escovas seriam adequadas para aquela pele sem a sua camada de lama protectora face aos raios solares. Acredito que em Chitwan essa protecção seja necessária, uma vez que a cor avermelhada do sol, aquando das suas fases nascente e poente, confirma os elevados níveis de poluição.

 Sentei-me debaixo da palhota com cerca de dois metros de largura e cinco de cumprimento. Insuficiente para a plateia que chegara com antecedência.

Ao meu lado, uma jovem turista perguntava ao seu guia se este iria ao banho, com um dos elefantes. Ele respondeu com a mesma questão. A jovem loira de olhos azuis parecia na dúvida. Talvez estivesse céptica quanto à qualidade das águas. O fraco caudal - estamos em meados de Abril - aguarda o início da monção para recuperar deste clima mais quente e seco. O verde acastanhado era pouco convidativo, pelo menos para esta estrangeira. Mas à beira rio adivinhava-se uma fila de gente a querer saltar para as costas dos elefantes e assim levar com a sua tromba... de água. Escutava a conversa de ambos com curiosidade e até expectativa. O guia dizia à moça que podia tomar banho quando lhe apetecesse, enquanto que ela teria ali a sua oportunidade... única.

Engoli em seco as palavras que voaram numa voz doce e num inglês não nativo, tentando captar traços de ironia: "eu gostava de te ver a tomar banho com o elefante". Sim senhora, um dois em um. O maior animal terrestre, aqui domesticado (na melhor das hipóteses), subjugado aos caprichos dos turistas e a dar banho ao guia local. Uma bela fotografia para postar nas redes sociais.

Não consegui esperar pelo ponto alto do espectáculo circense. Ainda que não tenha poder para evitar este tipo de prática, o facto de estar aqui implica-me o suficiente para, pelo menos, partilhar este texto, ao mesmo tempo que reflicto acerca dos meus próprios comportamentos e atitudes, questionando-me: como posso eu contribuir para um mundo um pouco mais justo, um pouco mais
amoroso e mais sustentável?...


12/04/2018
Chitwan, Nepal