A
Primavera chegou e o azul do céu está mais azul. Um dos motivos que torna esta
estação fonte da minha predilecção. Outros elementos irrefutáveis há,
nomeadamente a exuberância dos aromas das árvores em flor, os cantos apaixonados
dos pássaros esvoaçantes, o toque dos raios solares mais quentes, que se
estendem cada vez mais e por cada vez mais minutos ao longo do dia.
É
tempo de renovação. O clima convida à limpeza, abrindo as janelas que durante o
Inverno permaneceram fechadas; abrindo armários e libertando-os das roupas mais
quentes, mais escuras. Uma das práticas habituais nesta mudança de estação é a de
examinar a roupa: aquela que não é usada há pelo menos dois anos é oferecida a
quem eventualmente possa dar-lhe mais e melhor utilidade. Desse modo, cria-se
espaço no armário, ao mesmo tempo que outra pessoa lhe dá uma nova vida.
Num
dia de Primavera1, os olhos podem demorar-se numa amendoeira em
flor, enquanto o polegar e o indicador podem segurar uma gota do orvalho
reflectindo os primeiros raios de sol. Num resplandecente amanhecer, os ouvidos
podem dilatar-se com o trinar de um rouxinol ou o assobio de um melro.
Num pôr-do-sol, à
beira-mar, as mãos e os pés podem refrescar-se nas águas salgadas que as ondas
mais ou menos rasas conduzem até ao areal (não arrisco a mais que isso nas
águas gélidas das praias do Porto).
Entre
o mar e o parque, entre o parque e o mar, a exuberância de cada segundo é uma
manifestação guardada pelos sentidos, enquanto os pés, apoiados nos pedais,
pressionam languidamente de maneira a prolongar uma cena que só na aparência é
banal. Pedalando com atenção, a experiência de uma manhã de Primavera pode providenciar
uma renovação há muito desejada, pelo menos inconscientemente.
Os
sentidos expandem-se, abrem-se, receptivos à generosidade da Natureza. Perfumes
sem fim, fragrâncias silvestres multicolores espalham-se pelos jardins,
desabrochando curiosidades nas borboletas... azuis, brancas, amarelas. Que
aroma é este? Que odor é aquele?
Assim sopram as
flores azuis florescendo viçosas... Oferecem-se, partilham-se aos olfactos mais
ou menos atentos. Durante as deslocações de bicicleta pelas ruas do Porto e
arredores, tenho tido o privilégio de inspirar estes e outros odores. Enquanto
pedalo por entre os caminhos, ruas e ruelas surgem-me no pensamento inúmeras
coisas. E pergunto-me, então, se as caixas em que vivemos e nos movemos nos
concedem esses encontros com a ternura primaveril? E se os compartimentos, em
que nos guardamos, nos protegerem ao ponto de nem sequer nos apercebermos do
sentido do mundo, dos sentidos do mundo?
Nessas
deslocações diárias, se bem que seja fundamental permanecer em estado de alerta,
observo-me inspirando e pedalando, ao mesmo tempo que o meu olhar pára no
interior das caixas automóveis, nas quais ‘jazem’, com frequência, seres
adormecidos que ignoram aqueles que pedalam a seu lado, por vezes também
distraídos, e até embriagados, pelas cascatas de flores que se sacodem lançando
pétalas (azuis) pelo ar e para a estrada. Note-se que quando o dia acorda de
uma noite com chuva primaveril, essa desconcentração tende a aumentar, por
parte de certos ciclistas. As camélias vermelhas luxuriantes inclinam-se para
os moradores das cidades, oferecendo os seus aromas... quase em vão.
Em
vão... Existe uma grande maioria das gentes das cidades que, sem se aperceber,
vive numa moldura. O alarme que vibra de uma caixa sonora assusta o mais
inocente dos sonhadores. De compartimento em compartimento desloca-se pela casa
até à hora de sair. Da porta de casa caminha sonâmbulo para outra caixa que, em
sentido descendente, o transporta até à garagem, onde entra num compartimento
ambulante. Nesse recipiente fechado segue para outra garagem, a partir da qual
subirá noutra caixa para outro compartimento onde permanecerá grande parte do
dia...
De
caixa em caixa, de compartimento em compartimento, está ausente e protegido do
exterior. A pele deixa de sentir o ar ameno da Primavera, o olfacto não
distingue o cheiro de uma rosa e de uma erva molhada; o olhar só capta, como se
de um écran de televisão se tratasse, imagens fragmentadas: vermelho e pára;
verde e avança; amarelo e abranda. Como pode ser frágil o corpo que vive sem o
vento perfumado de um salgueiro, sem a maresia fresca num dia de Primavera.
Numa
curta viagem de bicicleta os sentidos estão todos abertos ao mundo. De um lado, golfadas de aromas flores de todas as cores. Do
outro, golfadas de gases dos canos de escape. Como os
que alguns autocarros da área metropolitana do Porto lançam sem prurido nos
trajectos entre Leça, Matosinhos, Porto e concelhos próximos. Os da Resende (é
forçosa a sua alusão) serpenteiam a velocidades inquietantes com o objectivo de
cumprir horários. O seu pára-arranque é um atentado ao ciclista e aos
transeuntes que com eles se cruzam. Desfazem-se na rua, ardem nas ruelas, soltando
nuvens negras. Às vezes tenho a sensação que recebo ondas de alfazema de um
lado e baforadas de pura poluição do outro. É desconcertante; ao mesmo tempo,
confesso que é em sorriso que ultrapasso esses autocarros azuis. Não sem sentir
um pouco de tristeza por aqueles que parecem viver de forma contínua em caixas,
vendo tudo através de um écran, como se encaixados numa moldura, ainda que
protectora...
Mas é
tempo de celebrar o toque de uma libelinha, em noite de lua cheia. À beira-mar
ou à beira-rio, contemplando o reflexo do luar. Mas que se cante fora da caixa,
qualquer caixa, caso contrário é impossível sentir a Primavera no espelho
decorado com amendoeiras, camélias ou crisântemos...
1: Intertexto com ‘O eremita viajante’ de Matsuo Bashô
* Este foi publicado no Jornal Chapinheiro