Sofia.
A Sofia era a minha amiga. A Amiga. Era a irmã ideal. Um ano mais nova. A minha vizinha. Morava no nono A.
O seu irmão, o Gonçalo, era o amigo do meu irmão. Também
um ano mais novo que ele. O Kiko e a Kika. Acabei de pesquisar: este tipo de
palavra é designado de hipocorístico. Pela sua formação
fonética, são palavras com o objectivo de suavizar o som. (Escrever tem
destas coisas. Sempre que tenho uma dúvida
procuro e aprendo algo mais) Para a
Sofia, porém, não seria necessário
suavizar a macieza da sua voz e de trato.
A
Kika era a minha amiga. Conheci-a quando o meu irmão nasceu. Informação
actual obtida por intermédio da minha mãe. Eu tinha três anos e meio quando ele nasceu, ela dois e meio. Na sua
casa, paredes meias com a minha, a Sofia escutava um bebé
chorar. Pediu muito à
sua mami que fosse tocar na porta ao
lado. Desejava ver o bebé.
Entrou
e brincámos as duas. Até aos meus doze anos: quando os meus pais decidiram
mudar-nos definitivamente para o Porto. Voltámos a ver-nos uma ou duas vezes depois da mudança. Foi em Meruje. Uma vila do mesmo concelho da terra natal
do meu pai: Nogueira do Cravo. Ambas pertencentes a Oliveira do Hospital. Como
eu, a Kika passava parte das férias
escolares na aldeia. Ela na sua quinta, eu na casa com quintal dos meus avós.
Tínhamos alguns aspectos em comum. Tínhamos quase a mesma idade, éramos
adeptas do Sporting – éramos
todos, na verdade. As duas famílias
vizinhas eram unidas pelos afectos, e pelo clubismo. No caso do meu irmão e do Kiko, unidos pelo fanatismo verde.
A
Kika era a amiga perfeita. Não
me lembro de qualquer desavença
entre nós. Perguntei à
minha mãe: “Que
me lembre não... Não! Vocês
estavam sempre a brincar”.
Confirmou, assim, o que a memória
selectiva guardou. Aproveitei a oportunidade de estar em casa dos meus pais
para trazer uma fotografia colada na cortiça
da cozinha. Os quatro amiguinhos mascarados no carnaval. Como na semana em que
escrevo sobre a minha amiguinha. Feliz coincidência (se as houver). Todos muito sorridentes. Como diríamos nessa altura: de taxa arreganhada.
A
Sofia, muito morena, de olhos negros e cabelos castanho escuro, lisos e fartos.
Um sorriso lindo, como o era o riso divertido que escuto neste momento,
enquanto as lágrimas são perseverantemente contidas.
Brincávamos muito. Na sua casa ou na minha. Sobretudo na dela.
Calculo que pela maior diversidade e quantidade de brinquedos. Passávamos horas no seu quarto. Havia uma cozinha com todos os
utensílios. A plasticina amarela, verde, vermelha,
cor-de-rosa, lilás e todas as cores de aroma doce e
superfície macia e maleável era ideal para as formas de onde saíam os bolos e outras a refeições a fingir.
O
quarto de Sofia também
era o lugar do jogo mais apreciado à saída da infância:
o quarto escuro. Éramos ainda muito inocentes. E só
queríamos esconder-nos bem e ser os últimos a ser encontrados e expulsos do quarto. Esse jogo só
decorria quando havia mais meninos a
brincar connosco. Na maior parte das vezes éramos só as
duas, quando muito, os quatro.
O
principal corredor da sua casa era diferente do nosso. Mais curto, mas mais
largo onde cabiam duas ou três
estantes com um metro de altura. Aí habitavam
muitas e muitas aventuras da Anita. Anita vai à escola. Anita vai às
compras. Anita no gelo. Anita vai ao Ballet.
Eu
fui ao Ballet durante dois ou três
anos. A Sofia não. Mas era quase tão desenvolta como eu. Era no terraço do prédio
que tínhamos muito espaço para andar de bicicleta ou trotineta. Quando estavam mais
miúdos jogávamos às
escondidas. Os carros estacionados dos vizinhos dos quatro blocos de prédios todos colados eram os nossos esconderijos. Só
os nossos pais tinham quatro carros.
A
mãe da Sofia, a D. Isabel, professora de Inglês, tinha um carocha da cor de vinho. O pai, o Sr. Carlos,
treinador de Andebol (e mais alguma ocupação
que não lembro de todo), tinha um dois
cavalos descapotável da cor de burro quando foge que
fazia as nossas delícias.
A
minha mãe ficou com o Fiat 124 verde, depois
de ter tirado a carta. Quase a fórceps.
Uma vez a descer a rampa em caracol – entre
o terraço no terceiro piso e a rua, no zero –
uma das portas perdeu o manípulo quando o carro raspou na parede. Um segredo entre nós. O meu pai não
precisava de saber que a minha mãe
tinha medo de fazer aquela rampa estreita.
O
meu pai tinha uma carrinha – cuja
marca não faço a mínima
ideia – também da cor dos lagartos. Tudo era verde para regalar o meu
irmão. Doente que era pelo Sporting. Os
seus olhos brilhantes de felino apaziguavam-lhe o desejo por concretizar de ter
sangue verde.
No
parque de estacionamento havia um carro que se destacava. Era cinzento com a
forma de sapo. Não faltavam, pois, sítios para nos escondermos enquanto alguém contava até trinta
ou quarenta.
Quando
estávamos várias meninas, jogávamos
ao elástico. Estávamos sempre a brincar e a cantar também. Recordo-me de estarmos os quatro com a mãe da Sofia na sala comum. Ela ia repetindo o disco para
cantarmos com a Suzi Paula o areias é um
camelo, tem uma boça
e muito pêlo. No meu quarto também cantávamos
e dançávamos numa roda coreografada, quando
havia outros meninos, para os passarinhos a bailar, mal acabam de nascer, com o
rabinho a dar a dar...
Além de brincarmos muito, eu e a Sofia íamos à mesma
igreja para a missa de Domingo. A igreja do Bairro da Encarnação. Costumávamos
ficar juntas, tentando acompanhar o coro: a piada de ir à
missa era podermos cantar em grupo.
Ao
olhar para a fotografia, onde estamos as duas de bandoletes coloridas com
borboletas a pairar no ar, fico alagada de saudades e nostalgia. As nossas
bochechas rechonchudas – éramos
as duas –
estão exageradamente vermelhas. O batom a substituir o blush
para essa noite de carnaval. Eu e a Sofia éramos
as saloias, o meu irmão
o Zorro com um saxofone e o Gonçalo
não terá permitido
qualquer disfarce para além
do tambor firmemente preso ao tronco. Tenho uma vaga ideia de ele ser muito tímido.
Ao
mudarmo-nos para o Porto, terminava a minha infância feliz. Perdia a amiga. Perdia um grande pedaço de mim: a Sofia. Aparte de Meruje, por uma ou duas vezes,
nunca mais a vi!
Onde estás
Sofia?